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Sermões de Bossuet

Sermões de Bossuet

Sumário

Prólogo

Breve Biografia de Bossuet

Aviso do Editor. Manuscritos dos Sermões de Bossuet

A Nossa Edição

Apreciações

Sermões para os Domingos e Festas de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos à Septuagésima

Festas da Virgem e Panegírico dos Santos

PRÓLOGO

Encetando a tradução dos geniais sermões do imortal Bossuet, não queremos privar os nossos leitores de nenhuma das notas interessantes e judiciosas com que a edição francesa, da qual são fielmente vertidos, acompanha joias de tão puro quilate.

E, pretendendo concorrer quanto pudermos para o conhecimento duma figura tão grande como a do Bispo de Meaux, damos a seguir um breve estudo sobre a sua vida e um breve juízo sobre o seu mérito de reputação universal.

Jacques Benigne Bossuet

Breve Biografia de Jacques-Bénigne Bossuet

– Nasceu em Dijon em 1627.
– Filho de um magistrado venerando, foi educado no célebre colégio de Navarra.
– Cornet, seu professor, viu logo nele o futuro homem de gênio.
– Afeiçoou-se-lhe, orientando-o com carinho.
– Jacques-Benigne Bossuet ordenava-se em 1652, depois dum exame brilhantíssimo que assombrou todos os ouvintes.
– A sua notoriedade foi tal, que se lhe dedicou desde logo o grande general Condé.
– Entretanto, Bossuet deixou Paris e domiciliou-se em Metz, em cuja catedral teve um canonicato, e onde seu pai era membro do parlamento.
– Mas ia frequentemente a Paris onde pregava com êxito extraordinário.
– O rei, a rainha-mãe, toda a corte, o ouviam com admiração.
– Nesses sermões genia.es converteu. muitos protestantes, nomeadamente o célebre general Turenne, rival de Condé.
– Incansável apóstolo, escreveu então a Exposição da doutrina da Igreja, obra magistral, profunda, única no gênero.
– Em 1669, era sagrado bispo de Condom.
– Apesar, porém, do peso do báculo, pregava nesse ano e nos seguintes as suas imortais Orações Fúnebres, o seu título de eterna glória.
– A pintura do nada humano nunca teve pincel mais homérico.
– Bossuet, nestas obras-primas, tem qualquer coisa de Homero e de Eschylo.
– Em 1670, sendo nomeado preceptor do Delphim, escreveu, além doutras obras, o seu monumental Discurso sobre a História Universal que tanto assombrava Chateaubriand, e que é uma das obras mais grandiosas da Literatura universal.
– E, nunca repoisando, o sermão e o livro preocuparam-no constantemente.
– Além de grande filósofo, como o demonstra o seu excelente Tratado do conhecimento de Deus, Bossuet revelava-se um escritor de gênio, talvez ainda superior ao pregador incomparável.
– Mas em 1681, terminava a educação do Delphim. Deram-lhe o bispado de Meaux.
– Na nova diocese, Bossuet foi sempre o apóstolo ardente e infatigável. Pregava sempre e catequizava, e escrevia.
– O Catecismo de Meaux é uma obra célebre desse tempo de vida gloriosamente militante. Do mesmo tempo são as suas admiráveis Meditações sobre os Evangelhos e Elevações sobre os Mistérios.
– Na reunião eclesiástica de 1682, Bossuet desempenhou um papel primacial a favor da Igreja galicana e, entretanto, era o mais formidável combatente do Protestantismo.
– É dessa época de luta a sua História das variações das igrejas protestantes.
– Trabalhou denodadamente com Leibnitz, em 1690, para reunir a igreja luterana à católica.
– Com tudo, neste ponto, teve o maior inêxito.
– Quase moribundo, combateu sempre. Como Fénelon se deixasse levar pelo misticismo quietista de Madame Guyon, sustentou com o bispo de Cambray uma das polêmicas mais ruidosas do seu tempo.
– Morreu, lutando.
– Toda a sua obra; sermões e livros, é combate, fé, vigor de pensamento e sentimento, austeridade de caráter.
– Bossuet vale uma Igreja.
– Filósofo, aproveita o que há de bom de Descartes e corrige-o, dando-lhe uma luz inefável.
– Historiador, deixou uma obra tão lapidar, que só ela vale todo o seu século.
– Enfim, pregador, e tendo rivais como Massillon, Flêchier e Bourdaloue, é um verdadeiro príncipe, inimitável, fonte segura e perpétua de pura e profunda Luz.

AVISO DO EDITOR FRANCÊS

I. Manuscritos autógrafos. — Até ao meio de século XVIII se duvidou de que Bossuet tivesse escrito os seus sermões. Numa das suas preciosas Memórias dizia Ledieu :

«A maior parte dos sermões consiste numa ou duas folhas soltas, vendo-se primeiro um texto e um argumento com esta indicação à margem: Para o exordio; em seguida ao texto e ao plano do exordio há uma divisão em dois ou três membros apontados sempre distintamente; e para o corpo do discurso, apenas algumas passagens dos Santos Padres e muitas dos gregos… Exceptuando os sublimes panegíricos e algumas peças notáveis, nenhum dos seus sermões tem a forma dum discurso completo e muitos deles são em latim». (Memórias, pag. 118)

O abade Bossuet teve nisto a sua influência. Depois da morte de seu tio, foi a ele que entregaram todos os papéis que aquele tinha deixado; e, quando foi nomeado bispo de Troyes em 1710, levou para a sua diocese, esta herança infinitamente preciosa. Copiou muitos dos sermões de seu tio para seu uso e para os tornar públicos. Mas o que é soberanamente lamentável e que este prelado não tivesse guardado, com um cuidado mais perfeito, os manuscritos autógrafos. Cometia a imprudência de os emprestar, do mesmo modo que as cópias, e foi certamente assim que se perderam para sempre um grande número de sermões, e especialmente muitos panegíricos que ficaram na mente dos contemporâneos, existindo ainda muitos outros dispersos por diferentes bibliotecas, e não havendo só dificuldade em os consultar como até ignorância do sitio em que se encontram.

A Biblioteca Real comprou os manuscritos de uns vinte discursos que a incúria do bispo dê Troyes deixara cair em diversas mãos. Foram entregues aos beneditinos dos Blancs-Manteaux que, sob a direção laboriosa de D. Déforis, iam publicar a grande edição das obras de Bossuet. Déforis, duvidando do testemunho de Ledieu, lançou-se à busca dos manuscritos.

A cidade de Meaux apenas lhe deu uns apontamentos redigidos por umas religiosas que tinham ouvido o grande bispo. Mas, por morte do sobrinho, passaram muitos discursos para as mãos dum dos seus herdeiros; o sr. de Chasot, primeiro presidente do Parlamento de Metz, discursos cuja entrega a viúva conseguiu fazer e que serviram para completar quatro grossos volumes, que formaram os tomos IV-VII da nova edição das obras. Dez anos depois, encontraram-se também outros sermões em Metz, em casa do abade de Montholon, irmão do presidente do mesmo nome, e os quais constituíram a segunda parte do tomo VII.

Hoje, os manuscritos dos sermões de Bossuet que existem na Biblioteca nacional, estão inscritos no fundo do Estado, com os números 12:821-12:825, e formam cinco grossos volumes in-folio, tendo as folhas de desigual comprimento coladas em tiras de papel e cuidadosamente encadernadas. O n.° 12:821 está em exposição nos mostruários da sala que precede a dos empregados.

Estes manuscritos, em conformidade dos quais é necessário muitas vezes rever os sermões, ainda mesmo depois de todos os estudos dos sábios críticos contemporâneos, são rascunhos cuja leitura é muitas vezes muito difícil. Umas vezes o orador, arrastado pela impetuosidade duma eloquência muito juvenil, pegara em papel de grande formato e escrevia páginas desde cima até abaixo, sem margem nenhuma; outras vezes, pelo contrário, possuído da sua palavra, mas tão severo para consigo próprio que chegava a ser injusto, dobrava ao meio uma folha de pequenas dimensões e enchia as margens de palavras riscadas, de correções, de aditamentos, de chamadas de todas as espécies.

Quem estudar os manuscritos de Bossuet, é alternadamente surpreendido por três coisas que tornam este orador incomparável: a fecundidade natural do seu gênio que parece dispensá-lo de qualquer esforço, a severidade com que ele faz as correções e o cuidado que tem de sacrificar às riquezas de expressão que só abrilhantavam a palavra e apenas serviam para glorificar o orador.

II. Edições. — Hoje podemos ler com o nome de Bossuet cerca de 235 discursos pronunciados no púlpito, mas o próprio orador só publicou sete, além do discurso sobre a Unidade da Igreja, e apenas seis orações fúnebres.

Sempre completamente indiferente por tudo aquilo que produzia, o que ora contra o costume da época, Bossuet deixou cair no olvido as suas orações fúnebres e os seus sermões, inclusivamente a oração fúnebre da rainha-mãe pronunciada em 1667, e cujo manuscrito ainda não foi encontrado.

O sermão para a profissão religiosa de Madame de la Valière, e em seguida a oração fúnebre de Nicolau Cornet, foram publicados em vida do autor, mas por mãos estranhas. Bossuet nem por isso ocultou o seu desprazer, e, ainda que cada um destes discursos, talvez alterado nalgumas partes, fosse evidentemente dele, chegou a declarar que os não reconhecia como obra sua.

Cada um dos sermões que este grande orador pregava era um ato de apostolado. De tudo tirava vantagem para que a sua palavra fosse eficaz, mas apenas a destinava àqueles que a compreendiam; e, só quando eles se aproveitavam dela, é que o orador tinha cumprido o seu dever. Ceder a uma ambição inteiramente profana não o faria, se julgasse perpetuar-lhe a memória. Poucos momentos bastavam para terminar muitos desses discursos, mas Bossuet entendeu que o não devia fazer; e as obras mais perfeitas que ele publicou não honram mais a sua memória do que esses rascunhos salvos como por milagre e onde nós de ano para ano pudemos acompanhar o desenvolvimento do seu espirito, o progresso da sua eloquência, e a paciência e a humildade e o ardor do seu zelo.

O abade Lequeux morreu precisamente na ocasião em que acabava de reunir os materiais para uma edição completa das obras de Bossuet.

1.° D. Déforis aceitou este difícil e agradável encargo, apesar das mais graves dificuldades que teve de vencer, e ligou o seu nome à 1ª edição, que se publicou em 1772, na tipografia Antonio Boudet. Por este motivo, é pouco todo o reconhecimento que se lhe deve e nunca se pode proclamar bem alto que qualquer outro que não fora um beneditino teria provavelmente sucumbido na tarefa.

D. Déforis publicou perto de 200 discursos de Bossuet. Foi feliz na luta que travou contra a influência do abade Maury, que, na edição das Obras completas de Bossuet, pretendia fazer uma seleção daqueles discursos antes de os dar ao prelo.

Se merece censura pelos aditamentos que fez, alguns há que se devem agradecer, como por exemplo o complemento das citações da Escritura e dos Padres e muitas frases que apenas tinham uma ou duas palavras fáceis de substituir, para bem se compreenderem.

No que Déforis se desvalorizou da maneira mais lamentável , embora com as melhores intenções deste mundo, foi substituindo algumas vezes pela paráfrase o sumário de Bossuet, ou reunindo num único discurso os diferentes desenvolvimentos que Bossuet dera por várias vezes à mesma ideia. Em sua desculpa há a dizer que faz advertências, por meio de sinais tipográficos, a respeito dessas interpolações e dessas disposições que nem sempre são dum gosto irrepreensível.

Infelizmente muitos editores não tiveram essa precaução, e foi preciso recorrer aos manuscritos para distinguir o que é de Bossuet daquilo que se tinha acrescentado.

2.° Os Editores de Versalhes, dando larga publicidade aos erros em que Déforis tinha laborado, declararam que era sempre prudente confrontar a lição impressa com os manuscritos autógrafos e adotaram esta divisa:

«Bossuet, apenas Bossuet e exclusivamente Bossuet»

Magníficas promessas que não foram cabalmente cumpridas, sobretudo relativamente aos sermões.

Estes editores consideraram-se satisfeitos por darem títulos a alguns sermões, por terem resumido os sumários, por verificarem as citações e as chamadas e por suprimirem as variantes no fundo das páginas.

«O próprio texto sofreu tão poucas alterações que é de crer que os novos editores mal tivessem olhado para os manuscritos» (Guilherme, Obras de Bossuet, tomo VI, p. 3)

Durante trinta anos, tanto os sermões como as outras obras de Bossuet tiveram autoridade no texto editado por Lebel em 1815, em 43 volumes in-8.°

O relatório lido à Academia francesa em 1842 por M. Gousim, sobre a necessidade de uma nova edição dos Pensamentos de Pascal, dirigiu os trabalhos da critica contemporânea acerca dos textos do século XVII.

Em 1851 o abade Vaillant também tratou dos sermões de Bossuet numa brochura apresentada à faculdade de Letras de Paris (Paris, 1851, in-8.º de VII – 258 pag., tip. Plon). Graças à leitura dos manuscritos, provou ele muitas infidelidades nas duas edições então existentes e estabeleceu a cronologia dum grande número de sermões; mas a morte prematura não deixou infelizmente que o jovem crítico prosseguisse a sua obra e a aperfeiçoasse.

Em 1855 M. Floquet publicou os seus Estudos sobre a vida de Bossuet (1627-1670), que ele devia continuar era 1864 com o seu Bossuet preceptor do Delphim e bispo da Corte (Paris, Firmin-Didot, 4 vol, in-8.º). Este hábil erudito publicou muitas resenhas inéditas relativas aos sermões de Bossuet e estabeleceu a data certa ou provável dum grande número deles, apoiando-se principalmente nos testemunhos dos contemporâneos o nas alusões contidas nestes discursos.

3.° M. Lachat, na edição que publicou M. Vivès (Obras completas de Bossuet, publicadas em conformidade com os impressos e com os manuscritos, expurgadas das interpolações e restabelecidas na sua integridade), soube aproveitar-se dos trabalhos dos seus antecessores. Fazendo um estudo profundo nos manuscritos, suprimiu os aditamentos de Déforis, restabeleceu as variantes no fundo das páginas, publicou inteiramente os sumários escritos por Bossuet, restituiu na sua integridade os sermões, que impiedosamente haviam sido truncados ou conglobados, e até publicou alguns trechos inéditos.

Não teve, porém, paciência bastante ou tempo disponível para tornar a sua edição tão perfeita como era para desejar; e os críticos notaram nela um certo número de asserções temerárias e tiveram a impressão dum trabalho extremamente rápido e muitas vezes superficial.

A censura mais grave que se pode fazer a M. Lachat é o ter sido demasiado severo para com D. Déforis, de quem ele tanto se socorreu, e que, sempre muito considerado, bem mais do que ele se tornou digno dos admiradores dos sermões de Bossuet. M. Gandar é mais justo para com o primeiro editor das Obras do grande orador. Diz ele:

«Eu terei dado provas de quanto devemos a Déforis; depois de ter dito que, desde a morte de Bossuet, mais de sessenta anos foram volvidos sem que se pudesse imprimir um único dos seus discursos, que os cinco volumes publicados, em 1772, 1778 e 1788 contêm perto de duzentos desses discursos , dos quais cem são verdadeiras obras-primas, é que, há oitenta anos que todos os exames da crítica não têm conseguido enriquecer esta coleção com um único discurso completo» (Bossuet orador, Introd., pag. IX)

4.° M. Gandar, lente  da faculdade de Letras de Paris, editando os sermões de Bossuet, devia ter excedido o mérito de todos aqueles que tinham empreendido esta tarefa antes deles, pois possuía todas as qualidades, dos seus antecessores e desejava aproveitar-se de todos os seus estudos. Mas, conforme sucedeu ao abade Vaillant, a morte arrebatou-o à sua elevada missão. Dele só possuímos: Bossuet orador, estudos críticos sobre os sermões da juventude de Bossuet (1643-1662), e uns Sermões escolhidos da juventude de Bossuet, contendo 16 discursos (Paris, Didier, 2 vol, in -12, 1867).

5.° M. Luiz Molland (Garnier, 1873) editou, separadamente em quatro volumes, as Obras oratórias de Bossuet segundo a edição de Versalhes, muito imperfeitamente corrigida conforme Gandar e Lachat.

6.° O senhor abade Guilherme publicou, na tipografia dos senhores Berche e Tralin, uma edição das Obras completas de Bossuet (1877), a mais exata e a mais accessível que conhecemos, embora seja muito imperfeita.

7.° M. Gazier, mestre das conferências na faculdade de Letras de Paris, editou uns Sermões escolhidos de Bossuet (Paris, E. Belin, in-12, 1882). Este volume compreende 23 discursos publicados em harmonia com as edições originais ou com os manuscritos autógrafos da Biblioteca nacional. O autor é digno de todas as nossas congratulações pela sua paciência e pela sua erudição. Devemos todavia assinalar o espírito jansenista que se manifesta em muitas das suas notas, aliás muito eruditas.

8.° O senhor abade Agostinho Viallard socorreu-se dos trabalhos precedentes e enriqueceu de notas claras e sóbrias 19 Sermões escolhidos de Bossuet. Este volume faz parte da coleção dos clássicos da Aliança das casas de educação cristã. Paris, Prussielgue, 1886.

9.° O senhor abade Lebarg, bacharel, em letras, publica uma nova edição dos sermões de Bossuet. A sua História critica da prédica de Bossuet (Lille, 1888), os Sermões sobre a ambição, edição crítica (Lille, 1890), e as resenhas diversas que este amável crítico teve a bondade de nos comunicar dão-nos a esperança de fazer uma edição completa dos sermões de Bossuet, muito superior às precedentes.

A NOSSA EDIÇÃO

Os que conhecem a Obra dos Bons Livros adivinham facilmente os princípios que nos guiaram na composição deste novo repositório dos sermões de Bossuet. Não podíamos hesitar em entrar no caminho aberto pelo abade Vaillant e tão utilmente percorrido por Lachat, Gandar, e pelos senhores Gazier, Brunetière e Lebarg. Socorrendo-nos do trabalho dos nossos antecessores e consultando propriamente os manuscritos, tanto quanto no-lo permitiam as horas vagas, quisemos dar uma edição exata dos sermões.

A nossa edição em 3 volumes é mais completa do que todos os sermões escolhidos do ilustre orador, e se ela não contiver todos os esboços, todos os fragmentos e, todas as redações do próprio sermão, podemos dizer que coligimos nas obras completas de Bossuet o mais belo discurso de todos os assuntos que ele tratou; e, quando ele encara o mesmo assunto sob diferentes aspectos, publicamos vários, sermões.

Os críticos contemporâneos seguem em geral a ordem cronológica; nós reconhecemos que ela é útil para os que desejarem acompanhar os progressos da eloquência do grande orador (A ordem cronológica dos sermões de Bossuet é difícil de estabelecer. M. Lebarg, servindo-se do estudo da língua, das alusões a fatos históricos, do carácter da letra e sobretudo da ortografia de Bossuet, obteve restituições de data tão certas como imprevistas).

Parece-nos todavia que prestamos melhor serviço aos pregadores e aos fiéis, que desejarem meditar os grandes mistérios da nossa religião na escola de Bossuet, oferecendo-lhes estes magníficos discursos pela ordem do Ano cristão, de maneira que a nossa edição; seja como que o Breviário das prédicas para os eclesiásticos e o Manual de meditações para os fiéis.

Cremos que Bossuet seguiria esta ordem, se tivesse publicado os seus sermões, porque ele compreendia muito bem a influência do Ano cristão sobre as almas.

«A Igreja, disse ele, inspirada por Deus e instruída pelos Santos Apóstolos, dispôs o ano de tal forma que se encontra nele, conjuntamente com a vida, com os mistérios, com a prédica e com a doutrina de Jesus Cristo, o verdadeiro fruto de todas estas coisas nas admiráveis virtudes dos seus servos e nos exemplos dos seus santos, e finalmente um misterioso resumo do Antigo e do Novo Testamento, e de toda a História eclesiástica» (Or. fun. de M. Ter d’Áustria)

Cada um dos nossos volumes compreende três partes:

I. Os sermões para os domingos e festas de Nosso Senhor Jesus Cristo;
II. Os discursos sobre os mistérios da Virgem Maria;
III. Os panegíricos dos Santos.

Para facilitar o estudo dos progressos oratórios de Bossuet, acrescentamos um índice cronológico de todos os discursos que inserimos na nossa coleção.

Deveremos considerar-nos bem recompensados pelo nosso trabalho, se fizermos com que alguns leitores apreciem melhor esta vigorosa doutrina tão magnificamente pregada por Bossuet no século de Luís XVI. Aos sábios críticos, cujos nomes se acham registrados nestes preliminares, é que se deve agradecer a exatidão do texto e dum grande número de notas com que nós o enriquecemos; pois seguimos o sistema de Leibnitz, «que escolhe o melhor de todos os aspectos… e vai mais longe do que ninguém ainda foi». Só nos resta sobretudo deixar aqui exarado o reconhecimento que lhes é devido.

APRECIAÇÕES

Luís XVI nunca se enfadava de ouvir Bossuet e repetia publicamente os seus discursos, acompanhando-os dos mais calorosos elogios. Às rainhas seguiam-no para todas as igrejas da capital e o abade de Choisy traduz-nos nestes termos a impressão do auditório:

«Umas vezes, majestoso e tranquilo como um grande rio, conduzia-nos duma maneira suave e quase insensível ao conhecimento da verdade; outras vezes, rápido, impetuoso como uma torrente, arrebatava os espíritos, enlevava os corações, e só nos causava silencio e admiração». (Elogio de Bossuet)

— E o abade de Clérambault, outro contemporâneo seu, disse-nos que havia a admirar, nesta grande, personagem, um destes homens raros e superiores que aparecem às vezes no mundo para somente lhe fazer sentir até onde pode ser elevado o mérito sublime, sem quase deixarem a esperança de lhes poder encontrar sucessores. (Elogio de Bossuet). Os próprios poetas, tais como Belleville, Maury e Santeuil, proclamaram-no como modelo de zelo evangélico, mestre da doutrina e rei dos pregadores.

Finalmente, os redatores da Gazette de France acompanhavam-no em todos os púlpitos de Paris e teciam-lhe depois nas suas colunas tantos elogios quantos eram os discursos que ele havia pronunciado.

O PRESBÍTERO DE NEUVILLE

(Carta ao impressor dos Sermões de Bossuet)

Ilustríssimo Senhor.

Não podia fazer-me oferta que fosse recebida com mais prazer e reconhecimento do que os Sermões de Bossuet. Oxalá que a Providência me tivesse enriquecido com este tesouro, antes desta idade de enfraquecimento e languidez que já não me permite tirar proveito dele! Na escola deste mestre único do sublime, do enérgico, do patético, eu teria aprendido a refletir, a profundar, a pensar, a exprimir; e desejaria cair nestas negligências de estilo, inseparáveis da atividade e da impetuosidade do gênio. Feliz o século que produziu este prodígio de eloquência máscula, forte e vigorosa, que Roma e Atenas, nos mais belos dias, teriam invejado á França! Mas aí do século que não souber apreciá-lo e admirá-lo!

E deseja o senhor que os meus Sermões sejam publicados, desde que agora aparece Bossuet?! Nem pensar em tal. É certo que me sobejava o desejo para o fazer, e eu trabalhava em aperfeiçoá-los, e muito folgaria em lhos confiar. Li, porém, dois ou três Sermões de Bossuet, e os meus, comparados com os dele, parecem-me frios, inanimados, e, o que é mais, inúteis! Sinto-me pequeno e abjecto; conheço que nada sou, que nada valho! Esta leitura interessou-me vivamente e entusiasmou-me ao ponto de me dar a impressão de que ouvia a própria voz de Bossuet; mas depois, a sós comigo, ouvi que a voz da minha razão me condenava ao silêncio, e o meu amor-próprio rendeu-se, sem murmurar, sem se queixar. Eu creio que com inteligência, e boa vontade pode a gente conseguir imitar o imortal Bourdaloue e aspirar à rivalidade, sem contudo se lisonjear de chegar à perfeição do seu modelo. Mas um Bossuet, oh! Não há expressões capazes de o definir; ele nasce já completo, não se forma por desenvolvimentos, por progressos sucessivos; e haveria quase tanta loucura em tentar imitá-lo como desvario em pretender rivalizar com ele.

O CARDEAL MAURY

Discurso preliminar paca servir de prefácio à primeira edição dos Sermões de Bossuet

Estes Sermões devem ser considerados como a verdadeira retórica dos pregadores. Na verdade, o novel orador que souber compreender bem o gênio de Bossuet, que souber sentir, pensar e elevar-se com ele, não terá necessidade de se afadigar com os preceitos dos retóricos, para se acostumar à eloquência. É tão agradável como difícil notar as incorreções e as repetições deste grande homem; é como um hábil general que sabe ganhar batalhas sem conhecer a arte de esgrima. A crítica que descobre as belezas é mais útil do que o miserável ofício de limitar as suas descobertas a indicar erros de gramática. O que estudasse todas as poéticas, ou antes o que as tivesse composto, avançaria muito menos na carreira da eloquência do que o orador que conhecesse profundamente uma única página destes discursos. O que os outros disseram, fê-lo Bossuet.

M. D. NISARD

Historia da literatura francesa, tomo IV, pag. 263-275, passim

Pode-se dizer que à Oração fúnebre começa e acaba com Bossuet. Como orador neste gênero de eloquência, até ele inaudita, não teve antecessores, nem êmulos, nem sucessores. O mesmo não acontece com o sermão. Não só Bossuet não alcançou nele completa glória, mas, na opinião de certos críticos, não seria ele o primeiro em sermões.

I. A história da eloquência religiosa no sermão tem três épocas, assinaladas por três grandes nomes: Bossuet, Bourdiloue e Massillon.

Bossuet, que é o primeiro na ordem cronológica, é o mais excelente. Como Corneille na tragédia, ele criou o sermão, estabelecendo-lhe o modelo. Todavia, um preconceito, que a crítica ainda não conseguiu destruir, coloca-o em terceiro logar depois de Bourdaloue e Massillon. Ora para ser justo para com Bossuet é necessário colocá-lo em primeiro lugar; Bourdaloue ficará em segundo, e esta ordem dos grandes nomes da prédica na França indicará o progresso e as alterações desta arte, em que a nossa nação se destaca, no meio das outras nações cristãs, e é a única neste gênero de eloquência.

II. Nos sermões de Bossuet realça mais a doutrina que a moral. Só esta proporção é já indicativa do gênio; mas o ponto característico é o dogma que faz respeitar a moral. Provem-me primeiro a origem e a sanção da moral; digam-me em nome de quem a ensinam; convençam-me de que me espera outra vida onde eu gozarei segundo os meus méritos: é por aqui que deve começar o pregador cristão. Se ele não puder combater as minhas paixões, a não ser com o consenso passageiro que lhe dá a minha razão natural, no momento em que ele desenvolve máximas que eu já li nos livros, eu fico, por assim dizer, no mesmo estado. Convencer-me de que podia proceder melhor do que tenho procedido, é apenas dizer-me pouco mais do que eu já sei pela punição terrena que está ligada a cada infração; ora isto não basta para me corrigir. Obrigar a minha razão a estar atenta às provas da fé, causar-lhe admiração, perturbá-la pelo desenvolvimento dos mistérios e das provas do dogma, tal deve ser o objeto principal do sermão.

Pode não conseguir-se isto; mas, pelo menos, é preciso ter vontade de o fazer, e deve ser esta a ambição máscula da tribuna cristã. Ela era digna de Bossuet, e eu admiro como, possuindo um conhecimento tão profundo dos corações, quando, por assim dizer, conseguia exteriorizá-los muito crentes, na tribuna, ele antes quer alargar-se em austeras explicações do dogma para com o seu auditório, e atemorizá-lo com a descrença, do que interessá-lo pela ideia de praticar o bem.

Na sua eloquência não existe, porém, a teologia em forma. Onde é possível o raciocínio sem desprimorar a matéria, Bossuet raciocina, mas raciocina de tal forma que a gente está a ver o cristão que confessa a sua fé dentro do lógico que argumenta. Nem todos os mistérios ele discute com o mesmo método; para cada mistério há uma ordem de ideias. Umas vezes encara o mistério de frente, e caminha impetuosamente para o mais profundo das santas obscuridades, com a generosa coragem dum soldado que se lança numa refrega; outras vezes pára perturbado, num deslumbramento, constrangido para descer a vista, e pede «que dominem o seu pasmo». Mais além, convence entusiasticamente, encaminha, dirige, e este «instinto impulsivo», mais convincente do que a lógica da escola, mais hábil do que todas as sutilezas da retórica, sugere-lhe provas inesperadas e demonstrativas. Finalmente, se falecem as provas, procura com que satisfazer a curiosidade dos homens, esforça-se por penetrar nas causas dos secretos juízos de Deus e canta eternamente as suas misericórdias. Lógica sublime, que até da sua impotência tira as suas provas mais enérgicas!

A grandeza do espírito de Bossuet ocultou para muitas pessoas a sua sensibilidade, como a suavidade dos versos de Racine lhes oculta o seu vigor e o seu casticismo. Mas onde se mostra em toda a sua plenitude o coração do grande pregador é nas descrições do Cristo. Como ele o ama, como ele sofre com os rigores desse mistério do Deus-Homem, oferecendo-se em holocausto para nos salvar! Como ele beija as suas pegadas! Como ele bebe as palavras suas! João, o discípulo amado, não dedicou mais amor ao seu Mestre. E quando, após o mistério dessa vida mortal, pacientemente suportada durante trinta anos pelo Homem-Deus, se realiza o mistério da morte sobre a cruz; quando é preciso representar a paixão desse «querido Salvador», ele recusa-se a descrevê-la, não pelo receio de desnivelar as palavras janto das coisas, mas porque o seu Coração sucumbe aquele espetáculo.

«Meus irmãos, exclama ele, por quem sois, aliviai agora do meu espírito tamanha dor: pensai em Jesus crucificado, e evitai-me o pesar de vos descrever o que igualmente as minhas palavras não são capazes de vos interpretar. Imaginai o que sofre um homem com os membros desconjuntados por uma suspensão violenta, e que, com as mãos e os pés cravados, só se sustenta pelas chagas produzidas pelos cravos; um homem que, na cruz, tem as mãos repuxadas ao peso do corpo anteriormente enfraquecido pela perda do sangue, e que, no meio deste excesso de dor, parece que só foi elevado a tal altura para divisar de longe uma grande multidão zombeteira e revoltada, que dum transe tão deplorável constitui um motivo de escarnio!»

São verdadeiramente dele estas palavras de Cristo a seus discípulos :

«Eu habito em vós, e vós habitais em Mim»

Deus, Jesus Cristo, a Virgem Maria e os Santos, foram a sua companhia durante esses longos anos de ascetismo, em que ele viveu entregue às Escrituras e aos Santos Padres, biografando todas estas personagens com o poder da imaginação e da fé. Em cada um destes perfis parece que se reconhece um irmão. Parece que se vê um companheiro do mesmo mister nestes Padres, que foram seus predecessores na prédica e na interpretação do dogma. Todo este sagrado escol do cristianismo ele havia ressuscitado: profetas que vaticinaram, apóstolos que pregaram, mártires que sacrificaram a sua vida, e Padres que explicaram e transmitiram a doutrina de todos eles. Não são autoridades que ele invoca: são mestres ou amigos que o auxiliam, e que dão à tradição os testemunhos da sua fidelidade.

III. De tudo isto nasce uma primeira moral, mais forte e mais eficaz talvez do que todas as prescrições particulares: é um profundo sentimento da miséria humana da impossibilidade que temos de a evitar. Na verdade, para que tendem todos estes dogmas, senão para aumentar o valor da inocência? Que encerram todos estes mistérios, a não ser as origens sagradas de todas as regras dos costumes? Que é a religião, senão um esforço sublime da natureza humana para lutar contra a sua corrupção original? E que maior objeto da eloquência poderá existir, que não seja o de apresentar o próprio Deus, auxiliando-nos nessa luta e ocupando-se na reparação da sua criatura inteligente!

IV. São infinitas as belezas destes sermões quando se admira a doutrina e a moral com que Bossuet eleva as máximas à altura dos dogmas. Apenas resta o que não tem nome na critica: o calor, a energia, o entusiasmo do pregador: a imagem visível mas indescriptível da sua alma; essa liberdade austera e esse ardor que se adapta à linguagem mais vernácula; essa riqueza de ideias que não admite uma expressão vaga ou um pensamento vulgar. Eu admiro que tenha havido coragem para notar nos sermões de Bossuet a falta duma certa correção de forma, como por exemplo em Fléchier, onde a propriedade da linguagem é sacrificada à eufonia e a índole da língua à gramatica. É mais do que um estilo, é a própria imagem dum homem de gênio saindo duma profunda meditação, onde dispôs a sua alma primeiro do que as palavras, e escrevendo impetuosamente no papel pensamentos em que ele é rico e expressões que perfeitamente se harmonizam com os pensamentos. Os seus esboços são tão admiráveis como os seus melhores sermões. Encontra-se neles tudo que é preciso, e com suma perfeição. O trabalho aperfeiçoado terá outro valor, mas não substituirá a natural beleza do trabalho esboçado.

V. Com esta proporcionada riqueza de ideias, com este brilho sem ouropel, com tantas passagens grandiosas e figuras vivas e naturais, com tal arte para chamar a imaginação às sutilezas da teologia; com eminentes qualidades exteriores. Uma fisionomia nobre, um olhar suave e penetrante, uma voz apaixonada e um gesto grave, como se explica que Bossuet, comparado com Bourdaloue não primeiro pregador? É que Bourdaloue descia mais à inteligência do auditório, ao passo que Bossuet falava-lhe com suma erudição. Ou então, dada a hipótese de que Bossuet não era um orador impecável, nós, para quem está perdido todo o mérito da ação oratória, e que, de olhos fitos num livro inanimado, apenas podemos sentir à muda eloquência das palavras escritas, nem por isso deixaremos de dar o primeiro lugar ao pregador que escreveu com mais vigor do que correção. Eu leio Bossuet e compreendo-o. Se algum pequeno defeito existe, será apenas no gesto; porque o olhar ainda brilha a par de tantas expressões comovedoras e veementes, e se o som da voz me não chega aos ouvidos, penetra-me ao menos o eco no coração.