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A Verdadeira Conversão

4º Domingo do Advento - I. A Verdadeira Conversão

I. Sermão para o 4º Domingo do Advento

Pregado em 22 de dezembro de 1669.

SUMÁRIO

Exordio. — Assim como sucedeu aos judeus, informados por São João Batista cerca do verdadeiro Messias, assim sucede que a paixão não nos deixa conhecer a verdade quando ela nos confunde.

Proposição e divisão. — Tal como São João Batista, assim é o pregador: Vox clamantis in deserto: parate viam Domini. Resta compreendermos:

1.° O que é o deserto onde ela clama;

2.° Que preparação nos exige;

3.° Que equidade nos prescreve.

1.º Ponto. — O deserto em que deve achar-se o pecador que se quis converter é o retiro do mundo, ao menos pelo espírito, e um positivo regresso à própria individualidade, visto que o mundo nos conduz ao mal: Ipsumque aerem… scelestis vocibus constupratum. Foi para chorar os nossos pecados que Deus nos concedeu a faculdade do arrependimento e o dom das lágrimas.

2.º Ponto. — É preciso sofrermos provações, porque a conversão é coisa difícil, o bem custa mais do que o mal e certas afeções viciosas nas quais se envelheceu, não desaparecem com um único esforço.

3.º Ponto. —A pureza de coração que Deus exige ao pecador é a caridade: Diligere incipiunt… ac propter a moventur adversus peccata per odium aliquod ac detestationem. O temor não faz desaparecer o mal, porque é o efeito do amor.

Peroração. — Despertemos nos nossos corações um princípio de amor, e cultivemo-lo, a fim de que ele estenda os seus ramos para toda a parte, e receemos a tentação.

Ego vox clamantis in deserto.
Eu sou a voz daquele que clama no deserto (Jo 1, 23)

Os homens, cuja paixão corrompeu o juízo, não sabem seguir os sinais da verdade, e a própria luz os confunde e os perturba. A vida maravilhosa de São João Batista causa uma tal admiração no concílio dos judeus que se celebrava em Jerusalém, que eles enviam ao nosso evangelista uma solene deputação para lhe perguntar se ele não é Elias, se não é esse grande profeta prometido por Moisés, se, enfim, não é o Cristo. João, esse pobre amigo do Esposo, que só cuida em se humilhar assim que Jesus Cristo pretende aparecer, para lhe dar a glória que lhe é devida, aproveita essa ocasião para apresentar aos judeus esse divino Salvador que estava no meio deles sem que eles o quisessem conhecer. Mas de que erro não são capazes homens preocupados e de juízo corrupto!

Eles dirigem-se a São João Batista para saber dele próprio quem ele é, e consultam-no sobre o que lhe diz respeito, tal é a confiança que ele lhes merece; e ao mesmo tempo julgam-no tão pouco digno de crédito, que recusam o testemunho sincero que ele dá a respeito doutro. Têm em tão alto preço a sua pessoa que o tomam por um profeta e até imaginam que é o Cristo; e ao mesmo tempo têm em tão pouca conta a sua opinião que não querem reconhecer o Cristo que ele lhes apresenta; tal é a certeza, cristãos, de não haver contradição nem extravagância onde não caiam aqueles a quem cega o orgulho e que se atrevem a confundir os seus próprios pensamentos com as verdades que Deus lhes apresenta.

Entreguemo-nos, irmãos, a São João Batista com um espírito oposto ao dos judeus, visto que a Igreja nos comunica as suas divinas prédicas para preparar os desígnios do novo Salvador, e o obriga mais uma vez a desempenhar por este meio o seu ofício de precursor. Escutemos atentos essa voz que nos deve conduzir à Palavra eterna. Mas, para podermos aproveitar os seus ensinamentos, roguemos à Virgem Santíssima que nos obtenha a graça de nos comovermos com a voz de São João Batista, assim como o próprio João Batista se comoveu com a voz dessa Virgem bendita, quando ela comunicou, até às entranhas de sua mãe, uma parte da graça que havia recebido com plenitude. Ave-Maria.

Vindes hoje ouvir um grande e excelente pregador: é o celebre João Batista, facho perante a Luz, voz perante a Palavra, anjo perante o Anjo do grande conselho, medianeiro perante o Medianeiro, isto é, medianeiro entre a lei e o Evangelho, precursor do que o antecede; aquele, cuja mão, julgando-se indigna de se aproximar sequer dos pés de Jesus, se elevou até acima da sua cabeça; que batiza exteriormente O que interiormente o batiza, e espalha água sobre a cabeça do que espalhá o fogo e o Espírito Santo nos corações. É este, irmãos meus, o pregador que vos pede audiência. Razão tem ele em dizer, definindo-se a si próprio, que é uma voz, porque tudo fala nele a sua vida, os seus jejuns, as suas austeridades, aquela palidez, aquela magreza do rosto, o horror daquele cilício de pelo de camelo que lhe cobre o corpo e daquele cinto de couro que lhe aperta os rins, o seu recolhimento, a sua solidão, o deserto terrível que ele habita; tudo fala, tudo clama, tudo tem vida. Assim deveriam de ser os pregadores: «Era preciso que tudo neles falasse e retumbasse» – Totum se vocalem debet verbi nuntius exhibere, como dizia aquele antigo Padre. Ao ver-se aquele pregador tão extenuado, aquele esqueleto, aquele homem que não tem corpo, e cujo clamor contudo é tão penetrante (Var.: E que, todavia, troveja com tanta força…), poderia imaginar-se, com efeito, que era apenas uma voz, mas uma voz que Deus faz ouvir aos mortais para lhes inspirar um temor salutar. Ao som daquela voz, não só o deserto se comove, mas perturbam-se as cidades, tremem os povos e assustam-se as províncias.

Vê-se acudir aos pés de São João Batista toda a Judeia apavorada, tal é o anúncio constante que ele dá aos homens dos severos juízos de Deus que os estimulam e os perseguem.

«Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da justiça futura?» (Mt 3, 7)

Razão tem ele, pois, em dizer que não é o que os judeus imaginaram. Não é o Profeta, não é o Cristo, nem é Elias. É uma voz, é um clamor que avisa os pecadores da sua ruína próxima e inevitável, se em breve não fizerem penitência. Escutemos, atentamente, irmãos, esse divino pregador, profeta e mais que profeta. Sim, visto que todo ele é voz para nos falar, sejamos todo ouvidos para o ouvir.

«Eu sou, diz ele, a voz daquele que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, e abri bem, na solidão as veredas do nosso Deus» – Vox clamantis in deserto: Parate viam Domini; rectas facite in solitudine semitas Dei nostri (Mt 3, 3) (1)

Tal é a voz que nos fala; resta sabermos o que é o deserto onde ela clama, que preparação nos exige e que equidade nos prescreve. É esta a divisão, sem rodeios, do meu discurso, e este o assunto sobre que deve recair a vossa atenção.

PRIMEIRO PONTO

A voz que nos convida à penitência compraz-se em se fazer ouvir no deserto. É preciso abandonar a vida mundana e as reuniões; é preciso amar o recolhimento, o silêncio e a solidão, para ouvir essa voz que não quer ser abafada pelo ruído e pelo tumulto dos homens.

A primeira coisa que Deus faz quando quer comover um homem dado aos prazeres do mundo, é chamá-lo de parte, para lhe falar em segredo:

«Encontrei, diz Ele, essa alma mundana com todos os ornamentos da sua vaidade» – Ornabatar in aure sua et monili suo

Ela só pensava em agradar ao mundo, em ver e em ser vista; «corria como uma insensata atrás dos seus amantes, atrás dos que lisonjeavam os seus maus desejos, e esquecia-se de mim, diz o «Senhor» – Et ibat post amatores suos, et obliviscebatur mei, dicit Dominus (Os 2, 13).

«E eu começarei de criá-la»; e hei de fazer-lhe sentir uma gota, dos prazeres celestes: «Hei de atraí-la à sociedade, e hei de falar-lhe ao coração» – Propter hoc ego lactabo eam et ducam eam in solitudinem, et loquar ad cor ejus (Os 2, 14)

Dir-lhe-ei palavras de consolação e de instrução divina.

E, na verdade, nós erramos desde o princípio, se imaginarmos que o espírito de arrependimento e de penitência pode subsistir neste comércio eterno do mundo, a que entregamos toda a nossa vida. Um penitente é um homem pensativo e atento à sua alma (2). Um penitente é um homem desgostoso de si mesmo e do mundo:

Dormitavit anima mea prae taedio – «A minha alma desfalece de aborrecimento» (Sl 138, 28)

Um penitente é um homem que quer chorar, entristecer-se, que quer gemer:

Laboravi in gemitu meo – «Fiquei sufocado com os meus soluços» (Sl 6, 7)

Um homem assim quer viver só, quer ter horas de dor íntima; o mundo incomoda-o e custa-lhe a suportar.

Causar-vos-ia admiração, irmãos, se vos contasse as leis da antiga penitência. Tirava-se o soldado da milícia, o negociante do negócio e todo o cristão penitente dos empregos do mundo. Eles oravam, meditavam noite e dia; e lamentavam continuamente o bem que tinham perdido. Não havia festas, nem jogos, nem coisas mundanas. Alimentavam-se nas suas casas com o pão de lágrimas. Só saiam publicamente para irem confundir-se à face da Igreja e implorar aos pés dos seus irmãos o socorro das suas preces caritativas; tal era o gosto que tinham pelo recolhimento e pela indispensável solidão.

Que foi então que nos levou a estes prodigiosos tresvarios? Que foi que nos fez esquecer Deus e nós mesmos, senão o tumultuar do mundo que nos distrai por forma a não termos sequer conhecimento dos nossos excessos? A nossa consciência, testemunho verdadeiro, amigo fiel e incorruptível, nunca tem ocasião de nos falar; e temos todas as nossas horas tão ocupadas que nem tempo há para essa audiência. Ora há uma diferença entre a razão e os sentidos, e é que a impressão dos sentidos é muito viva, a sua operação rápida, o seu ataque brusco e inopinado; pelo contrário, a razão carece de tempo para reunir as suas forças, para consolidar as suas resoluções, e de tal maneira que é arrastada pelos objetos que aparecem e arrebatada, por assim dizer, pelo primeiro vento, se ela não der a si própria, pela sua atenção, um certo peso, uma certa estabilidade e um certo refreamento (3). Se, portanto, lhe tirarem a reflexão, tiram-lhe toda a sua força, deixam-na a descoberto e ao abandono para servir de presa ao primeiro adventício. É isto, irmãos meus, o que faz o mundo; sabe agitar tão poderosamente não sei que coisa turbulenta e impaciente que temos no fundo do coração, que nos conserva em constante movimento. Todas as horas decorrem com grande velocidade, todos os dias acabam cedo demais, de maneira que nunca há um momento livre; e quem não é senhor de si, de quem se torna cativo?

Homens errantes, homens vagabundos, que fugis de vós mesmos, já é tempo de escutardes a voz que lá de dentro vos chama. Se vos perdestes com essa prodigiosa dissipação, é preciso que vos cure um recolhimento salutar. Uma parte do vosso mal consiste num certo atordoamento que o bulício do mundo causou, e de que se abalou de todo a vossa mente; é necessário alheardes de tudo e tomardes repouso. É o próprio médico que vos diz pela boca do seu profeta.

Si revertamini et quiescatis salvi eritis; in silentio et in spe erit fortitudo vestra – «Se abandonardes esse grande tumulto e repousardes, sereis salvos; e, no meio do silêncio, as vossas forças começarão de restabelecer-se» (Is 30, 15)

O douto São João Crisóstomo (S. Cris., Homil. XI, in Genes.) condensou numa ligeira palavra uma sentença notável, quando disse que para formar os costumes, e talvez possamos dizer outro tanto do espírito, é necessário desaprender todos os dias. Efetivamente, mil falsos preconceitos corromperam-nos o espírito e o juízo; e a origem desta desordem é que, logo que começamos a ter uma pequena noção das coisas, o mundo tentou ensinar-nos, e juntou às ilusões dos nossos sentidos as da opinião e do costume. Foi daí que tiramos estas belas lições: que é indispensável proporcionar tudo ao nosso interesse, que a verdadeira habilidade consiste em empregar todos os meios para a nossa fortuna, e que é necessário vingar as afrontas. Sofrer, é provocar novos insultos; essa grande moderação é a virtude dos espíritos vulgares; a paciência é o penhor dos fracos e a triste consolação dos que nada podem; numa vida tão curta e tão infeliz como a nossa, é loucura recusar o pouco prazer que a natureza nos dá. São estas as lições mestras que aprendemos todos os dias nas reuniões, de maneira que todos os preceitos de Deus e da razão ficam sepultados sob as máximas do mundo.

Depois disto, irmãos, compreendeis facilmente a necessidade de desaprender; mas certamente, para esquecer semelhantes lições, é preciso abandonar a escola e o mestre. E senão, considerai, por quem sois, de que maneira vos persuade o mundo. Esse mestre perigoso não é como os outros mestres: ensina sem dogmatizar; tem o seu método particular de não provar as suas máximas, mas de as imprimir no coração sem que se de por isso (4). E assim, todos esses homens que nos falam, são outros tantos órgãos que no-las inspiram. Os nossos inimigos pelas suas ameaças, e os nossos amigos pelos seus bons serviços, concorrem igualmente para nos dar falsas ideias dos bens e dos males. Tudo o que se diz nas reuniões, e até o ar que nelas se respira, só deixa prazer e vaidade. Deste modo, nada adiantamos em engolir de repente o veneno da libertinagem, se entre tanto o absorvermos pouco a pouco, se deixarmos chegar até ao coração esse sutil contágio que se respira com o ar da vida mundana nas suas conversações e nos seus costumes. Tudo nos corrompe, tudo nos seduz; e se perguntarmos a Tertuliano o que ele teme por nós no mundo, responder-nos-á esse grande homem:

Tudo, até ao ar que se acha infectado por tantos discursos prejudiciais, por tantas máximas anti-cristãs: Ipsumque aerem…, scelestis vocibus constupratum (Lib. De Spect, n. 27)

Não vos admireis, portanto, se eu disser que o primeiro instinto que se revela num homem tocado por Deus, é o de se afastar do trato mundano. A mesma voz que nos chama à penitência chama-nos também ao deserto, isto é, ao silêncio, à solidão e ao recolhimento. Escutai este santo Penitente:

Similis factus sum pellicano solitudinis, factus sum sicut nycticorax in domicilio; vigilavi et factus sum sicut passer solitarius in tecto – «Eu tornei-me, diz Ele, semelhante ao pelicano dos desertos e ao mocho dos lugares solitários e arruinados; tenho passado a noite a velar, e ando sozinho, como um pardal sobre o telhado duma casa» (Sl 101, 7-8)

Em vez desse ar sempre agradável que o mundo nos inspira, o espírito de penitência põe-nos no coração qualquer coisa de insuportável e de selvagem. Esse homem afável e cortês, que tomava parte em tudo, desapareceu; essa mulher tratável e atenciosa, muito hábil medianeira e amiga muito oficiosa, que facilitava secretas correspondências, já não existe; desapareceram esses expedientes, essas franquezas, essas atenções; agora aprende-se outra linguagem, aprende-se a dizer: Não; a dizer: Não posso mais; a pagar ao mundo com negativas bruscas e vigorosas. Já cada um não quer viver como os outros nem com os outros; já não quer aproximar-se, nem quer agradar, desgosta-se de si mesmo. Um pecador, que começa a compreender o mal que praticou, odeia ao mesmo tempo o mundo que o iludiu e odeia-se a si próprio, porque se deixou dominar por um engodo tão grosseiro. É que ele recorda-se de quantos crimes cometeu, devido aos seus infortunados obséquios. Agora só cuida em separar-se desse sutil contágio que se respira com o ar da vida mundana nas suas conversações e nos seus costumes. Até um rei, penitente dentro da sua corte e dos seus negócios, entra nesse espírito de solidão. Retira-se-muitas vezes para o seu gabinete. Se os negócios do dia não o deixam estar só, passa a noite a velar; e, durante esse tempo de silêncio e de liberdade, entrega-se ao secreto desejo que o leva a suspirar e a gemer. Longe do mundo, longe das reuniões, apenas tem Deus à sua vista para se angustiar na Sua presença, e para Lhe dizer do fundo do seu coração: «Pequei contra vós e só perante vós», e quero também angustiar-me só na Vossa presença; única e invisível testemunha dos meus soluços e dos meus lamentos, ah! Escutai a voz dos meus prantos: Tibi soli peccavi (Sl 6).

E na verdade, se examinarmos com atenção o motivo porque Deus e a natureza entornaram nos nossos corações esse manancial amargo de prantos, ser-nos-á fácil compreender que foi para nos angustiar, não tanto pelos nossos infortúnios como pelos erros nossos. Os males que necessariamente nos acontecem trazem sempre consigo uma espécie de consolação; e nós rendemo-nos a eles, visto que são uma necessidade. Mas nada há que exaspere tanto as nossas dores como quando o nosso infortúnio provém da nossa culpa. Desta maneira são os nossos pecados que constituem o verdadeiro motivo das nossas lágrimas; e não é com o prazer, senão com as lágrimas, que se reparam tantas faltas cometidas, e é esta uma segunda razão pela qual os santos penitentes se entregam à dor. Em todas as nossas outras perdas, as lágrimas e os lamentos são-nos inúteis. A morte arrebatou-vos uma pessoa que vos era querida: podeis chorar até ao fim do mundo e empregar os maiores esforços para a chamar à vida, que a vossa dor impotente não a fará sair do túmulo; e por muito vivas que sejam as vossas dores, não conseguirão reanimar as suas cinzas apagadas. Mas, deplorando os vossos pecados, apagai-los com as vossas lágrimas, dizendo com o Profeta:

«Caiu-nos a coroa da fronte; ai de nós, porque pecamos!» (Lm, 15)

Tornamos a colocar sobre essa fronte, despojada do seu ornamento, a mesma coroa de glória. Deplorando a audácia insensata que vos fez violar a santidade do vosso batismo, outro batismo vós preparais. É o que leva um penitente a prantear eternamente e a procurar o segredo e a solidão para de todo se entregar a uma dor tão justa e tão salutar.

Além de que, não imagineis que vos estou aqui a fazer discursos sem fundamento, ou que vos aconselho lamentos e solidões imaginários. Todas as histórias eclesiásticas estão cheias de santos penitentes que, não podendo já suportar o mundo, a cujos atrativos enganadores se entregavam, foram afinal encher os desertos com os seus piedosos gemidos. Não podiam quebrantar a dor de terem violado o seu batismo, e profanado o corpo de Jesus Cristo, e ultrajado o espírito da Sua graça, e calcado aos pés o Seu sangue precioso com que haviam sido resgatados, e crucificado ainda uma vez o seu Salvador. Censuravam a sua alma, esposa infiel, purificada com o sangue do Cordeiro, porque no meio dos benefícios do seu Esposo, no próprio leito do seu Esposo, se havia entregado ao seu inimigo. Vertiam torrentes de lágrimas. Não podiam já suportar o mundo que os tinha iludido, nem os seus prazeres, nem as suas vaidades, nem o seu triunfo que destrói o reino de Deus. Iam procurar os lugares solitários para darem mais livre curso à sua dor; e então ouviam-se, não gemer, mas uivar e rugir nos desertos: Rugiebam (Sl 37, 9). Eu nada acrescento à historia. Parecia que aqueles penitentes só tinham prazer em ver objetos que tivessem qualquer coisa de medonho e de selvagem, e que lhes fossem como que uma imagem da terrível angústia a que os seus pecados os tinham reduzido (5).

Não se deve esperar efeitos semelhantes da penitência nos nossos dias. Se São João Batista viesse de novo pregar pessoalmente, não nos convenceria a deixar o mundo para irmos chorar os nossos pecados para qualquer lugar desconhecido ou para qualquer vale deserto. A nossa salvação não nos é preciosa, porque não temos a nossa alma em tão alto preço. Devo dizer, porém, que estes extremos sagrados não nos são precisamente impostos, nem talvez absolutamente necessários; mas, ao menos, não nos entreguemos de todo à vida mundana, tenhamos horas de recolhimento; tanto mais que um coração contrito, um coração angustiado deixa de ser sensível a esses prazeres frívolos. Não exponhais ao mundo o espírito da graça, nem frequenteis tanto as reuniões. Introduzi na terra a boa semente; pois foi por a terdes deixado muito ao abandono que ela não pôde criar raízes. Os que passavam calcaram-na aos pés, as aves do céu comeram-na, ou então os cuidados do mundo abafaram-na; e a vossa colheita é antecipadamente destruída no próprio tempo da cultura e da lavoura. Se a vossa penitência não é gemebundo, seja ao menos sincera, e que ao menos não seja extinta. Nem todos podem gemer e derramar lágrimas constantes; a dor pode subsistir sem todos estes indícios, mas o coração deve ficar despedaçado cá dentro. E, pelo menos, é preciso ter como certo que esses ímpetos de alegria sensual são incompatíveis com a dor da penitência. Etiam a licitis (S. Greg. Magn., liv. V in Job., cap. IV). Atendamos à nossa salvação: Sibi ipsa mentis intentio solitudinem gignit, diz Santo Agostinho (De Div. quaes. ad Simplic., liv. II). Procuremos a solidão pela nossa atenção e pelo nosso recolhimento. Estamos no deserto, para onde a voz de João Batista nos conduziu: já lá aprendemos a chorar os nossos crimes; é preciso alguma outra aparição para abrir a Deus o caminho e fazê-lo entrar na nossa alma? Eis o objetivo da segunda parte.

SEGUNDO PONTO

Não duvideis, irmãos meus, que .a penitência exija mais intimas preparações do que as que eu já referi: o recolhimento e a solidão afastam mais o mal do que fazem adiantar o bem. As dores que a minha alma traduziu em lágrimas seriam suficientes, contanto que nascessem sinceramente do fundo do coração; mas, como já sabemos que há falsas dores e falsos pesares, por isso nos vemos obrigados a sofrer provações, às quais eu chamo preparar os caminhos com atenção e exatidão.

Lavamini, mundi estote, auferte malum cogitationum vestrarum ab oculis meis, quiescite agere perverse, discite benefacere, quaerite judicium, subvenite oppresso, judicate pupillo, defendite viduam, et venite et arguite me, dicit Dominus. Si fuerint peccata vestra ul coccinum, quasi nix alba erunt; et si fuerint rubra ut vermiculus, sicut lana alba erunt (6)

 

Facilius autem inverti qui innocentiam servaverint, quam qui congrue egerint paenitentiam. An quisquam illam paenitentiam putat, ubi adquirendae ambitio dignitatis, ubi vini effusio, ubi ipsius copulae conjugalis usos? (S. Ambr., De Paenit., liv. II, cap. X). Renuntiandum saeculo est, somno ipsi minus indulgendum quam natura postulat, interpellandus est gemitibus, interrumpendus est suspiriis, sequestrandus orationibus. Vivendum ita ut vitali huic moriamur usui, seipsum sibi homo abneget, et totus mutetur. Eo quod ipse hujus vitae usus, corruptela sit integritatis. Adam post culpam statim de paradiso Deus ejecit, non distulit: sed statim separavit a deliciis, ut ageret paenitentiam (Idem). Statim tunicam vestivit pelliceam, non sericam. Ne in ipsa fiat paenitentia, quod postea indigeat paenitentia.

Os que indiferentemente fazem penitência, qui negligenter se gesserunt (Concil. Nicaen. Can. Arab., cap. XIX. Lab., tomo II, col. 297)… devem ter compreendido que na fraqueza natural do homem, é mais fácil cairmos do que levantarmo-nos, darmos o golpe mortal do que revivermos, propendermos sempre para o mal do que violentarmo-nos a fugir dele. Devemo-nos convencer de que não obtemos de Deus o perdão tão facilmente como o ofendemos a Ele, e que o homem não verga à Sua bondade com a mesma facilidade que a despreza. Porque é máxima estabelecida que o bem custa-nos mais do que o mal, e que é obra mais custosa de recuperar do que de perder. Mas aqueles de quem estamos falando não o entendem assim; aferem pela mesma medida a penitência e a culpa. Se lhes é fácil pecar, não lhes é menos fácil converterem-se, umas vezes justos e outras vezes pecadores, conforme lhes apraz.

Eles julgam que podem alterar os seus maus desejos com tanta facilidade como têm em se deixar vencer, e corrigir-se das suas más inclinações como dum hábito que se adquire e que se abandona quando se quer: erro manifesto. Na verdade, cristãos, enquanto a doença suprime por algum tempo os ataques mais vivos da cobiça, confesso que nos é fácil representar no rosto, e até para melhor nos iludir, na nossa imaginação assustada, a imagem dum penitente. O coração tem movimentos superficiais que se operam e se anulam num momento; mas não recebe tão facilmente as impressões fortes e profundas. Não, nem um novo homem se forma de repente, nem essas afeições, viciosas, nas quais, temos envelhecido, desaparecem com um único esforço. São paliativos que só curam a fantasia sem tocarem na chaga.

TERCEIRO PONTO

Por estas santas preparações, a alma, que a si mesma dá a provação e que duvida das ilusões do seu amor-próprio, há de retificar as suas intenções e há de dar ao seu coração a verdadeira pureza. Em toda a Escritura abundam bênçãos sagradas para os que têm o coração puro. Mas que pureza é essa, senhores meus? Digamo-lo numa palavra: é a caridade, é o amor santo, é o amor casto; é o puro e íntimo laço da esposa com o Esposo sagrado; é esse deleite dum coração que se compraz na lei de Deus, e que a ela se submete com plena e inteira vontade, «não pelo receio do castigo, mas pelo amor da justiça (S. August., serm. XI in Psal CXVIII, n. 1); não atemorizado pelas suas ameaças, mas encantado com a sua beleza e com a sua retidão» (7).

Purificai, meus caros irmãos, as veredas do nosso Deus. Amai puramente, amai santamente, amai constantemente, e sereis puros. Se apenas receardes as ameaças da lei, sem amardes a sua verdade e a sua justiça, ainda que a não quebranteis abertamente, não estais intimamente de harmonia com ela! Ela ameaça, logo é temível; e às suas ameaças correspondeis vós com o temor. Que fazeis relativamente à sua equidade? Amai-la, ou não? Vede-la com aprazimento, ou com um ódio secreto, com frieza e indiferença? Onde estão os vossos primeiros desejos e as vossas primeiras inclinações? O temor não destrói um desejo, impede o seu efeito, não o deixa manifestar-se, erguer a cabeça; corta-lhe os ramos, mas não a raiz (8). A origem do desejo permanece. Eu não sei que coisa preferiria; que a lei não existisse, ou que não fosse tão reta, nem tão dura, nem tão rigorosa, ou que aquele que a estabeleceu fosse menos forte ou menos clarividente.

Eu sei que há diferença entre o temor dos homens e o temor dum Deus vingador; e que, quando se consegue iludir os homens e roubar-lhes, pelo menos, o coração, é o temor mais penetrante à vista de Deus. Mas, porque é sempre temor, não pode agir contra a sua natureza; não pode desvanecer, nem expungir, nem, por consequência, desentranhar completamente as inclinações depravadas (9).

Purificai, pois, irmãos, as vossas veredas. Um princípio de amor: Diligere incipiunt…, ac propterea moventur adversus peccata per odium aliquod ac detestationem (Concil. Trid., sess. VI, cap. VI, de Justif.). É este o motivo do vosso ódio, é deste princípio de amor que deve nascer a vossa aversão. Uma aversão, a despeito duma inclinação contrária. É preciso que essa planta divina não seja simplesmente semeada, mas que tenha começado a criar raízes na alma antes de receber a graça justificante; aliás, seria incapaz de a obter. É necessário um princípio de equidade e de justiça no coração; mas é necessário depois cultivá-lo, de maneira que ele estenda os seus ramos para toda a parte, e que ocupe todo o coração, a fim de poderdes colher frutos de justiça.

Daí deve nascer um outro temor; não o temor da adultera que teme o regresso do marido, senão o temor duma esposa casta que teme perdê-lo. E daí também se deriva outra equidade: caminhar dentro da lei de Deus com uma nova circunspecção, recear uma fraqueza experimentada, prender-se mais estreitamente à justiça que uma vez se perdeu, honrar a bondade divina pelo receio das tentações e dos perigos infinitos que nos cercam, etc. (10).

Referências:

(1) Nota Marg.: Escutemos, pois, a voz que nos fala, deixemo-nos impressionar distintamente por todos os seus sons; vejamos todos os mistérios da penitência, toda a ordem da expiação dos crimes, todo o método para cuidar deles e para os curar.

(2) Nota Marg.: Cogitabo pro eccato meo«O meu pecado ocupa todos os meus pensamentos» (Sl 37, 19)

(3) Nota Marg.: Iniquitates nostrae quasi ventus abstulerunt nos (Is 64, 6). Esse vento nunca deixará de nos arrebatar, se a nossa própria alma se não fortalecer e se não consolidar por meio duma atenção permanente.

(4) Nota Marg.: Deste modo, não basta opor-lhe razões e máximas contrárias, porque essa doutrina mundana insinua-se mais por um insensível contágio do que por uma instrução expressa e formal.

(5) Nota Marg.: A Esposa do Cântico sagrado ama o campo e a solidão: o tumulto das reuniões e a vista dos homens desvirtua-a e perturba-a. Porquê? Porque ela tem o coração enternecido. «Vem, meu amado, diz a Esposa; saiamos para os campos e vamos habitá-los; levantemo-nos pela manhã para irmos ver as nossas vinhas e para vermos se elas começam a dar flores». Não há nenhuma destas palavras que não respire um ar de solidão e as delícias da vida campestre. O amor, inimigo do tumulto e ocupado consigo mesmo, procura os lugares retirados, cujo silêncio e cuja solidão mantem a sua ociosidade sempre ativa. Amor inocente; amor penitente: deliciosas meditações do amor inocente. No Cântico, solidões agradáveis e solidões terríveis. O amor penitente, cheio de dor e inconsolável: a esposa terna, que pranteia as suas vergonhosas infidelidades. Ele chama a sua amada, não já dos jardins e dos prados, mas no meio dos rochedos e dos desertos mais pavorosos. «Levanta-te, minha amada, diz ele, se bem que infiel, mas penitente, sai das covas dos rochedos e das cavernas profundas. Vem do Líbano, minha Esposa, vem do cume das montanhas e das profundezas dos abismos; sai dos covis dos leões e dos abrigos dos animais bravios». As suas dores, os seus lamentos e os seus desesperos são devidos aos animais ferozes que a dilaceraram.

(6) Is 1, 16-18. Nota Marg.: Um sábio médico prepara-se para ministrar certos remédios eficazes, quando vê que a natureza o excede; depois a graça apodera-se dele, começa a conquistar um coração, e a dominar e a submeter a própria natureza. A força que não guardastes para Deus, perdeu-se para vós. Sofrei provações; é pelas obras que o coração se exprime. Filhos legítimos e naturais: podemos imaginar todos os outros. «Não deis as coisas santas aos cães, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas» (Mt 7, 6). Dizendo um coração simulado, não me refiro a esses disfarces e a essas imposturas grosseiras. Não devemos acreditar nos primeiros lamentos.

(7) Nota Marg.: Qui sunt recti, diz Santo Agostinho, qui dirigunt cor secundum voluntatem Dei (Enarr. II in Psal. XXXII, n. 12). Noutro lugar: Os que querem tudo o que Deus quer, são puros e são justos. Aqui não preciso explicação; pois os que têm ouvidos cristãos ouvem esta verdade. A vontade de Deus é naturalmente reta; é a própria retidão, nem somos o preceito; porque então seriamos impecáveis. E não sendo naturalmente retos, vimos a sê-lo, cristãos, associando-nos ao preceito, à santa vontade de Deus e à lei que Ele nos deu; não atemorizados com as Suas ameaças, mas santamente deleitados com a Sua equidade, e encantados com a Sua beleza e com a Sua retidão.

(8) Nota Marg.: Ele constrange, refreia, abafa, suprime, mas não altera.

(9) Nota Marg.: Si fallere posses, quia non fecisses! Ergo concupiscentiam tuam malam non amor tollit, sed timor premit (Santo Agostinho, CLXIX, n; 8). Não, não o farei: quem vos proibiria disso? Não seria o temor, porque nós imaginamos que ninguém nos vê; seria, portanto, qualquer atrativo interno, qualquer bem oculto, qualquer prazer inocente e casto.

(10) Nota Marg.: Toda a criatura tem um instinto de conservação. Criatura nova. O bulício assusta-nos; esse rumor ameaça qualquer ruína ou qualquer força estranha que vem violentamente de encontro a nós; a natureza ensina-nos muitas vezes a temer em vão. E realmente, no meio de tantos perigos, e cercando-nos os perigos de tantos lados, e tendo, como temos, tão pouco conhecimento para os prever, quem quer estar em lugar seguro deve muitas vezes temer, ainda mesmo que não haja perigo. Se não tiverdes esse receio, duvido que a vossa transformação seja sincera e a vossa conversão verdadeira.

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 234-253)