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Panegírico de São Francisco de Sales

Panegírico de São Francisco de Sales

São Francisco de Sales nasceu em 1567, no castelo de Sales, perto de Annecy. Completou os seus estudos em Paris e estudou direito em Pádua, foi advogado em Chambery, entrou nas ordens sacras e foi toda a sua vida um modelo de zelo e de piedade. Tendo-se feito missionário, converteu muitos protestantes do Chablais e do país de Gex. Depois, nomeado bispo de Genebra, cuidou zelosamente das suas ovelhas, e veio por várias vezes à França, onde pregou pela Quaresma com o mais brilhante triunfo. Fundou a confraria da Cruz e, em 1610 a Ordem da Visitação, confirmada por Paulo V. Era incansável na sua devoção sempre ativa. Três dias antes de morrer, ainda pregava, apesar do quebrantamento das forças. A sua festa celebra-se a 24 de Janeiro, no calendário litúrgico para o rito na forma Ordinária; e a 29 de Janeiro, para o rito na forma Extraordinária.

Pregado em Paris, no mosteiro da Visitação, 28 de dezembro de 1662.

SUMÁRIO

Exórdio.  Não parece ser difícil louvar um Pai tão venerável perante filhas tão respeitosas. Bossuet, porém, deseja que outrem faça o elogio do santo.

Proposição e divisão.  É muito natural quererem os homens elevar-se a lugares eminentes para ostentarem pomposamente o lustre de uma grandeza majestosa. Outro tanto se não dá com São Francisco de Sales, a quem o orador considera sucessivamente:

1.° Como doutor e Pregador;

2.° Como bispo;

3.° Como diretor das almas.

Sob estes três pontos de vista, mostra Bossuet como ele foi na Igreja de Deus um astro luminoso e vivificador.

1.º Ponto. — Como doutor e pregador, São Francisco procurou no Evangelho essa ciência que não só ilumina as almas, mas também lhes dá a piedade, ciência que fortifica o espírito e lhe dá luz, que sabe mostrar o caminho da virtude e conduzir a ele, que sabe ensinar a devoção e até obrigar os pagãos a amá-la.

2.º Ponto. — Como bispo, evitou todos os desvios da ambição, viu apenas no seu cargo eminente mais um meio para ensinar a ciência de Jesus Cristo, e não um degrau para se alcandorar as dignidades eclesiásticas. Insensível aos aplausos e ao favor do público, também o foi aos desagrados em que incorreu e as injustiças de que foi vítima.

3.º Ponto. — Como diretor das almas, insinuou-se ao mesmo tempo no coração e no espírito, e a brandura foi o seu principal meio de triunfo. De extraordinária caridade, teve compaixão e condescendência para com todos os pecadores, mas particularmente para com os hereges.

Peroração. Elogio e carácteres da caridade, segundo São Francisco de Sales e Santo Agostinho. A caridade é dispensada a todos.

Ille erat lucerna ardens et lucens
Ele era uma… luz ardente e resplandecente
(Jo 5, 35)

Não percamos tempo a examinar um espetáculo de crueldade, e recreemos antes a vista com a imagem da própria dulcidão; não façamos caso das crianças que arrebatam a coroa da cabeça dos homens, e admiremos antes um homem que tem a inocência e a simplicidade das crianças; desprezemos as mães angustiadas que não querem alívio para a dor que tiveram em perder os filhos, e contemplemos unicamente um Pai infinitamente bom, que conduziu suas filhas à presença de Deus, a fim de as imolar com as suas próprias mãos pela mortificação religiosa. Não parece ser difícil louvar um Pai tão venerável perante filhas tão respeitosas, visto que elas têm o coração tão bem disposto para escutar os seus louvores; mas por outro lado, esta empresa é tão arriscada, e elas estão já tão sabedoras do valor extraordinário das virtudes do nosso santo, que não há coisa mais difícil do que satisfazer-lhes a piedade, cumprir os seus justos desejos e conciliar as suas ideias elevadas. Isto, irmãs, o poderdes ficar com o pleno conhecimento de tudo quanto se relaciona com a vida desse grande homem, é que me provoca o desejo de que um dia se faça o seu elogio neste lugar augusto onde se pronunciam os oráculos do Cristianismo. Mas enquanto não chega esse glorioso dia, longínquo demais para a realização dos nossos votos, e que fará com que os pregadores exaltem em todos os púlpitos os merecimentos incomparáveis de Francisco de Sales, vosso diretor espiritual, façamos nós uma prática particular das suas admiráveis virtudes, e honremos, na companhia de seus filhos, a sua ditosa memória, que é mais suave para todos os fiéis do que um misto de perfumes deliciosos, como diz a sagrada Escritura (Ecl 49). Demos, pois, começo a essa prática, que o céu se dignará de abençoar, e imploremos o seu auxílio com a costumada Ave Maria.

Há muitos ouropéis que só brilham no mundo para provocar a admiração com a surpresa da vista. É uma coisa muito natural quererem os homens alcandorar-se a lugares eminentes, para pomposamente estadearem de alto o esplendor duma grandeza olímpica; e este vício, tão vulgar no mundo, penetrou muito profundamente, na Igreja, chegando até aos altares. Muitos pretendem subir às tribunas para encantarem os espíritos com a sua ciência e com o brilho dos seus pensamentos delicados; mas poucos aprendem a maneira de aquentar os corações com sentimentos de piedade. Muitos há que tem o ardente desejo de aparecer nos lugares suntuosos para vomitar lavas sobre as turbas (Lc 12, 49); poucos, porém, se dão ao cuidado de acender nas almas esse fogo celeste que Jesus trouxe à terra.

Francisco de Sales, irmãs, vosso santo e admirável diretor espiritual, não foi desses ouropéis que só chamam a atenção dos curiosos e provocam aclamações inúteis. O Evangelho ensinara-lhe que os amigos do Esposo e os ministros da sua santa Igreja deviam ser ardentes e resplandecentes; que não só deviam alumiar, mas também aquecer a casa de Deus: Ille erat lucerna ardens et lucens. Foi o que Ele fielmente cumpriu em todo o decurso da sua vida, e não será difícil provar-vos isto com toda a evidência.

Três coisas houve principalmente na vida desse santo, que lhe assinalaram no mundo um lugar de grande destaque: foi a ciência, como doutor e pregador; a autoridade, como bispo; e o procedimento como diretor das almas. A ciência converteu-o num facho susceptível de iluminar os fiéis; a dignidade episcopal colocou esse facho no candelabro para alumiar toda a Igreja; e o cuidado da direção aplicou essa luz benigna à direção particular das almas. Conhecido o brilho extraordinário que tem esse facho sagrado, admire-se agora como ele aquenta. A sua ciência cheia de unção enternece os corações; a sua modéstia na autoridade inflama os homens na virtude; e a sua ternura na direção das almas conquista-os para o amor de Deus. É, portanto, um facho ardente e resplandecente. Se a sua ciência reluz porque é pura, aquenta ao mesmo tempo porque é terna e afetiva; se brilha aos olhos dos mortais pelo esplendor da sua dignidade, edifica-os, excita-os e inflama-os simultaneamente pelo exemplo da sua moderação; se finalmente os que ele dirige se conhecem felizmente edificados pelos conselhos prudentes e salutares, também se sentem vivamente comovidos pela sua encantadora ternura. É isto o que eu me proponho explicar-vos nas três partes do meu discurso.

São Francisco de Sales e Joana Francisca de Chantal
São Francisco de Sales e Joana Francisca de Chantal

PRIMEIRO PONTO

Consideram muitos Jesus Cristo como um objeto de curiosas indagações, e julgam-se uns sábios na Escritura quando acertam de dar com questões inúteis ou com divagações agradáveis. Francisco de Sales, irmãs, procurou uma ciência propensa a piedade; mas, para que fiqueis compreendendo a fundo a maneira como Jesus Cristo deseja ser conhecido, remontai comigo ao princípio de todos os tempos.

Há duas épocas a distinguir, que compreendem todo o mistério do Cristianismo: há a época dos enigmas, e a época da clarividência: o século das trevas e o século das luzes; e, finalmente o período da crença, e o período da visão. Suposta esta distinção, tiremos agora este corolário. Se o futuro nos há de dar uma época de clarividência, será nessa época que os espíritos hão de ficar satisfeitos com a manifestação da verdades porque lá diz São Paulo na primeira epístola aos Coríntios: «nós veremos a Deus face a face» – Videbimu; facie ad faciem (1Cor 13, 12); e então, descobrindo nitidamente toda a origem da verdade, poderemos plenamente satisfazer todas as nossas curiosidades racionais. Presentemente, que ideia fazemos nós a este respeito? Uma ideia obscura e incompreensível, que nos faz entrever de longe alguns raios de luz através de mil nuvens espessas; uma ideia, por consequência, que não foi destinada para nos guiar e que pertence mais ao coração do que ao espírito. Foi isto que fez dizer ao divino Salvador:

Beati mundo corde, quoniam ipsi Deum videbunt – «Bem-aventurados os que tem o coração puro, porque Eles verão a Deus» (Mt 5, 8)

Videbunt: verão a Deus um dia; e nesse dia cessará o tempo de trabalhar pelo coração, purificando-o com o amor sagrado, e isso constituirá todo o objeto da nossa ciência.

Profundemos mais esta matéria importante, e procuremos saber pelas sagradas Escrituras qual é a ciência dessa vida. O apóstolo São Pedro compara-a a um facho aceso no meio das trevas: Lucernae ardenti in caliginoso loco (2Pd 1, 19). Traduzamos literalmente estas sublimes palavras:

«É uma lâmpada acesa num lugar tenebroso»

Ora se esse facho tem luz, também deve arder, porque o ardor consome; é como que uma eletricidade que atrai, conforme nos ensina o Evangelho. Na época da clarividência, como no período da visão, o nosso espírito há de ficar satisfeito em todas as suas curiosidades racionais, porque «nós veremos a Deus face a face» – Faciem ad faciem.

Por enquanto não, porque «só o vemos em enigma» – Speculum in aenigmate (1Cor 13, 12). Desta forma, não vale pensar em saciar nesta vida a curiosidade e o desejo de saber, porque podemos deixar de pertencer ao número daqueles de quem Jesus disse:

«Felizes os que tem o coração puro, porque verão a Deus» – Beati mundo corde, quoniam Deum videbunt (Mt 5, 8)

Videbunt: verão a Deus. Nesse caso, será tempo de purificarmos o coração, porque bem sabemos que o Filho de Deus nos deu luz, não tanta quanta era precisa para nos satisfazer, mas a luz indispensável para nos guiar. Quando, por exemplo, de noite alumiamos a qualquer pessoa, não é para que ela nos recreie a admirar o brilho da luz, porque para isso está destinado o dia; há o sol que anima toda a natureza e que dá uma alegria intensa com a sua luz viva e fascinadora. Essa pequena luz com que nós alumiamos a uma pessoa, serve-lhe apenas para mostrar o caminho que ela deve seguir. Ora outro tanto sucedeu com os homens; e é a própria Escritura, e não eu que compara a sã doutrina «com uma lâmpada acesa durante a noite» – Quasi lucernae lucenti in caliginoso loco (2Pd 1, 19). Eis o tempo das trevas; trevas por toda a parte. Todavia, receando que tropecemos nalgum obstáculo, «quis Deus alumiar-nos com um pequeno luzeiro» – Luminare minus ut praeesset nocti (Gn 1, 16). Há o grande luzeiro que preside ao dia, e que representa a luz da glória que havemos de ver no futuro. Faltava, porém, um menor para presidir à noite, e esse é a doutrina do Evangelho, no meio das trevas que nos circundam.

«É um pequeno raio de luz que nos traça um caminho estreito por onde podemos andar com segurança, até que a aurora nasça e o claro sol desponte em nossos corações» – Lucerna in caliginoso loco, donec dies illucescat, et lucifer oriatur in cordibus nostris

Mas não detenhais os vossos passos para contemplardes unicamente essa luz. Se quiserdes receber o pleno gozo do espetáculo da luz, esperai pelo repontar do dia; entretanto, caminhai e caminhai sempre com o auxílio dessa luz, que vos foi dada para vos servir de farol: Inspice, et fac secundum exemplar quod tibi in monte monstratum est (Ex 25, 40). O facho que vos alumia tem brilho, mas ainda tem mais ardor. São João, que, foi o primeiro que inaugurou a ciência da salvação pela luz do Evangelho (Lc 1, 77), mereceu de Cristo estas palavras importante: IIle erat lucerna ardens et lucens; et voluistis ad horam exultare in lace ejus (Jo 5, 35). E aqui estão agora os nossos curiosos a quererem regozijar-se com a luz; e, dividindo o facho ao meio, admiram-lhe o brilho e desprezam-lhe o ardor. Se mais não valera juntarem este com aquele e deixarem-se abrasar nesse fogo bendito. Porque, embora esse facho tenha luz, tem ainda muito mais ardor. A luz está como que oculta: Thesauri scientiae absconditi (Cl 2, 3); só o ardor da caridade é que se manifesta em todos os sentidos: Apparuit humanitas et benignitas (Tt 3, 4). Jesus Cristo apenas nos mostra uma centelha da luz da verdade através de nuvens e de parábolas; e só a caridade é que se manifestarem toda a sua nudez. Pela primeira, profere algumas palavras; pela segunda, dá todo o seu sangue. Para que será isto, senão para nos dar a entender que quer resplandecer, mas que quer ainda mais aquentar e abrasar os corações pelo seu santo amor?

Por tudo isto foi que o nosso santo prelado estudou no Evangelho de Jesus uma ciência luminosa com efeito, mas muito mais ardente ainda; e por isso, ainda que Ele soubesse convencer, sabia muito melhor converter, e o grande cardeal du Perron deu um belo testemunho a tal respeito. Esse gênio, tão raro como admirável, cujas obras quase divinas são a mais indestrutível barreira da Igreja contra os hereges modernos, disse por várias vezes que seria capaz de convencer os homens perdidos; mas que se quisessem que eles se convertessem, havia mister conduzi-los ao nosso prelado. E na verdade, é inacreditável o número de ovelhas perdidas que ele chamou de novo ao rebanho; e isto porque a sua ciência cheia de verdadeira unção só brilhava para aquentar. Da boca saiam-lhe grandes labaredas que iam penetrar no fundo dos corações, porque demais sabia ele que o calor penetra muito mais profundamente do que a luz. Esta apenas toca ao de leve na superfície, dourando-a ligeiramente; ao passo que o calor penetra até as entranhas, para delas tirar frutos maravilhosos e nelas produzir riquezas inestimáveis. E era esse calor benigno que dava uma eficácia tão extraordinária as suas divinas prédicas, que num país muito povoado da sua diocese, onde não havia mais que cem católicos ao tempo em que ele começou a pregar, apenas ficaram restando outros tantos hereges, depois de ter derramado essa luz ardente do Evangelho.

Não imagineis, porém, que ele só tenha convertido os hereges; porque essa ciência ardente e brilhante atuava ainda muito mais energicamente nos servos da fé. Nestes últimos séculos apareceram dois homens duma santidade extraordinária, São Carlos Borromeu e Francisco de Sales, cujos talentos e ações eram muito diferentes, porque cada um recebeu o seu dom, conforme aprouve a Deus; mas ambos trabalharam com o mesmo proveito na edificação da Igreja, ainda que por diferentes vias. São Carlos despertou no clero esse espírito de piedade eclesiástica; e o ilustre Francisco de Sales restabeleceu a devoção no seio dos povos. Antes de São Borromeu parecia que toda a classe eclesiástica havia esquecido a sua vocação, tal era a corrupção que lançara no caminho do dever; e até pode dizer-se, irmãs; que antes do santo diretor da nossa consciência, o espírito de devoção quase que já nem era conhecido dos mundanos. Havia quem relegasse nos claustros a vida interior e espiritual, porque a reputava extremamente selvagem para ter entrada na corte dos príncipes e na alta sociedade; e Francisco de Sales foi escolhido para ir buscar ao seu retiro, e desiludir os espíritos dessa crença perniciosa. Fez renascer a devoção no seio dos mundanos, mas não pensou em disfarçá-la para a tornar mais agradável a seus olhos; apresentou-a com as suas vestes naturais, com a sua cruz, com os seus espinhos, com a sua abnegação e com os seus sofrimentos. Ora no estado em que esse digno prelado a apresentou, e em que ela nos aparece na sua Introdução à Vida Devota, pode reconhecê-la o religioso mais austero; e o cortesão mais exigente, quando não lhe dedique a sua afeição, não lhe pode recusar a sua estima.

Na verdade, cristãos, se há erro mais intolerável e criminoso que tanto tenha preocupado os espíritos, é o que obriga a dizer que neste mundo não se pode ser devoto. Os que continuamente se queixam de que não podem por este meio alcançar aí salvação, desmentem Jesus Cristo e o seu Evangelho; porque Jesus Cristo declarou-se Salvador de todos, e com isto nos prova que não há condição alguma que Ele não tenha consagrado e à qual não tenha aberto o caminho do céu; e a doutrina do Evangelho, como diz excelentemente São João Crisóstomo (In Ep. ad Rom., hom. XXVI, n.4), será quase impotente, se não conseguir civilizar os grandes centros, e regularizar; as sociedades e o comércio dos homens.

Se para vivermos cristãmente, é mister abandonar a família e cortar as relações com o gênero humano para irmos habitar os desertos e os lugares recônditos e inacessíveis, tem nesse caso os impérios de ser destruídos e as cidades abandonadas completamente. Não é esse, porém, o intento do Filho de Deus; pois ordena a todos os seus servos que, pelo contrário, resplandeçam perante os homens (Mt 5, 16). Ele não falou nos bosques, nos ermos, e nas montanhas solitárias e inóspitas; falou nas cidades e no seio dos homens, porque é onde a sua luz deve resplandecer, a fim de que o Pai celestial seja glorificado. Louvemos, pois, os que vão procurar o recolhimento, mas não desalentemos os que cá ficam no mundo; porque se eles não seguirem o caminho da virtude, devem acusar dessa falta unicamente a sua covardia e não os seus cargos, nem os homens, nem os atrativos da corte, nem as ocupações da vida civil.

Mas que digo eu, Cristão? Os homens certamente hão de abusar desta doutrina e hão de tomar um pretexto para se insinuarem no amor mundano. E então que havemos dizer e para onde nos havemos de virar doravante, se todos os nossos discursos são transformados em veneno? Se pregamos que ninguém se pode salvar neste mundo, grande desespero causamos ao nosso auditório; se dizemos que realmente todos se podem salvar, é motivo para nele se embrenharem o mais profundamente possível. Não vos iludais, ó mundanos, e acendei somente ao que dizemos. Nós afirmamos que todos se podem salvar neste mundo, contanto que nele vivam com espírito de abnegação; que todos se podem salvar nos grandes empregos, contanto que os exerçam com a maior justiça; que é possível a salvação no meio das riquezas, contanto que sejam aplicadas com espírito de caridade; e finalmente, que todos se podem salvar nas dignidades de que se acham investidos, contanto que usem delas com essa moderação de que o nosso santo prelado nos dará um ilustre exemplo na segunda parte deste discurso.

SEGUNDO PONTO

De todas as paixões humanas que corrompem e flagelam a alma, a mais altiva nos seus pensamentos e a mais assomada nos seus desejos, mas também a mais dócil nas ações e a mais reservada nos intentos, é a ambição. São Gregório representou-nos o seu verdadeiro caráter, quando disse estas palavras no seu Pastoral, que é uma obra-prima de prudência e a mais perfeita de todas:

«A ambição, disse esse grande pontífice, é tímida quando procura, mas soberba e audaciosa quando encontrou» – Pavida cam quaerit, audax cum pervenerit (Past., part. 1, cap. IX)

Não se podia descrever melhor o caráter extraordinário da ambição, senão pela união monstruosa destas duas qualidades opostas, a timidez e a audácia. Como a última lhe é natural e lhe provém do seu próprio íntimo, por isso ela a manifesta em toda a sua energia, quando alcança a sua plena liberdade: Audax cum pervenerit. Mas logo que tenha realizado o seu intento, cristãos, reprime-se então violentamente e doma as suas perversas inclinações: Timida cum quaerit. E a razão que a isso a obriga é, como diz São João Crisóstomo (In Epist. ad Philipp., hom. VII, n. 5) o fato dos homens serem naturalmente dum temperamento irritante e refutador: Contentiosum hominum genus. Ou porque o veneno da inveja lhes não deixe ver o progresso dos outros com olhar imparcial, ou porque, encontrando obstáculos aos seus planos, experimentem um prazer secreto e maligno em os remover com o poder que exercem, ou porque qualquer outra inclinação funesta os obrigue a oporem-se uns aos outros, o que é certo é que o ardor duma perseguição declarada nos ocasiona infalivelmente concorrentes e adversados. É por isso que a ambição requintada avança com passo tímido; e procurando acobertar-se com o seu adversário para ficar melhormente disfarçada, apresenta-se em público com todo o aspeto do recato.

Vede esse ambicioso, vede Simão o Magico diante dos Apóstolos (At 8, 19.24), rastejando-lhes aos pés e falando-lhes com a voz trêmula! Por que excesso de arrogância não se deixará ele dominar, quando tiver criado reputação, iludindo os povos e os imperadores com os seus engôdos e os seus prestígios? E quanto não há de trabalhar para deprimir esses mesmos Apóstolos, diante dos quais parecia tão vilmente respeitoso?

Mas eu não me admiro, cristãos, de que a ambição se esconda dos outros, visto que não se descobre a si própria. Não sabemos nós perfeitamente que esse ambicioso foi um homem que se não conheceu, nem sentiu o ardor que o excitava e o abrasava? Nas primeiras, tentativas de fortuna, só cuidou em se tirar da lama; depois intentou servir a Igreja em qualquer emprego honroso; e mais tarde manifestou outros desejos que o seu coração ainda lhe não tinha explicado; e tudo porque esse fogo, que andava pegando nos alicerces, ainda não tinha chegado a cumeeira do edifício. Vai queimando gradualmente a matéria que lhe serve de repasto, subindo de violência a medida que se vai elevando. É esta a índole dos ambiciosos, que forcejam por se convencer a si e aos outros de que só tem sentimento modestos. Mas por muito profundos que sejam os abismos onde eles procuram esconder-nos as suas vastas pretensões, quando investidos das suas dignidades, há de a sua glória, por muito tempo oculta, manifestar-se a seu pesar, por meio destes dois efeitos que perfeitamente se concatenam, embora a primeira vista pareçam opostos: um é eles desprezarem aquilo que são; e o outro é exaltarem-no excessivamente.

Digo que desprezam aquilo que são, porque o seu espírito não se satisfaz convenientemente, e eles queixam-se a cada passo da sua má fortuna, imaginando nada terem conseguido ainda. A virtude que professam mereceria, na sua opinião, um palco mais, grandioso; o grande gênio que os ilumina comprime-se nos estreitos limites dum, emprego mesquinho; e essa púrpura que os atavia não lhes parece suficientemente brilhante, porque, para os satisfazer, era necessário que ela lhes desse maior esplendor. E nestas elevadas pretensões têm eles em nenhum preço tudo aquilo que possuem. Mas vede o desvario da ambição: enquanto desprezam todas as honras de que se acham investidos, querem que toda a gente os considere como umas personagens augustas, e por pouco que se lhes toque neste ponto delicado, vomitam, logo palavras de autoridade para provarem a sua grandeza e o seu poderio. São como esse soberbo Aman, tantas vezes citado nas tribunas como o modelo duma ambição desmedida, que, tendo a louca pretensão de ser adorado, por toda a terra na sua prodigiosa soberania, a desprezava contudo intimamente, convencido de nada ter conquistado, quando considerava no mais que lhe faltava ainda: Haec cum omnia habeam, nihil me habere puto (Est 5, 13). Tal é a injustiça da ambição, que se não contenta com aquilo para que requer a admiração do mundo, ou que exige subido respeito para o que é incapaz de a satisfazer.

Os que se entregam a estes sentimentos desregrados, irmãs, podem realmente brilhar e resplandecer no mundo por meio de dignidades eminentes; mas só resplandecem para provocar escândalo, e não conseguem inflamar os corações em desprezo das vaidades terrenas e pelo amor da modéstia cristã. O nosso santo bispo é que foi verdadeiramente um astro ardente e muito brilhante, que, estabelecido na primeira ordem da dignidade eclesiástica, se afastou igualmente destes dois efeitos ordinários da ambição: do desejo de ascender a lugares muito elevados, e do de manter faustosamente a autoridade da sua classe por um soberano desprezo. Para o elevar ao episcopado, fora mister violentar a sua humildade com uma ordem absoluta; e ele tão dignamente desempenhou este lugar, que não havia prelado algum na Igreja a quem o conceito público julgasse tão digno de subir aos primeiros sólios. Mas não era somente a fama, cujo sufrágio ordinariamente peca por deficiente valor. O rei Henrique o Grande instou muitas vezes com ele para que aceitasse as primeiras prelazias deste reino; e no reinado de seu filho, houve um ilustre cardeal, que era chefe dos conselhos do rei, e que o queria nomear para seu coadjutor no bispado de Paris, com extraordinárias vantagens. Em Roma era ele respeitado de tal maneira que facilmente poderia alcançar a púrpura sagrada, se alguma vez tivesse manifestado o desejo de ser elevado a esta dignidade. No meio de propostas favoráveis como estas, ser-nos-ia impossível compreender qual era a sua abnegação, se a Providência Divina não tivesse permitido, para nosso ensinamento, que ele próprio comunicasse tudo isto a uma pessoa, sua confidente, no último momento da morte, momento em que todos parecem como que evolar-se.

E agora vos pergunto, cristãos: Baltasar, esse grande rei dos assírios, na véspera dessa noite fatal, em que Daniel lhe profetizou da parte de Deus o termo da vida e a transferência do trono, ainda se sentia enlevado nessa regia pompa, ao avizinhar-se o último momento? Não vos parece, pelo contrário, que via o cetro cair-lhe das mãos, a púrpura desbotar-se-lhe nos ombros, e o brilho da coroa embaciar-se-lhe visivelmente na cabeça, por entre as sombras da morte, que começavam a envolvê-lo? Pode alguém glorificar-se ainda com a majestade dum navio, sabendo que está prestes a encalhar num recife, contra o qual se vai despedaçar? Esses cegos adoradores da fortuna têm alto apreço a sua grandeza, quando veem que, num dado momento, toda a glória terminará no seu nome, todos os seus títulos no túmulo, e talvez as dignidades nos seus inimigos em indiferentes, pelo menos? Nesse caso, irmãs, nesse caso, todas as suas vaidades serão confundidas; e se ainda lhes restarem alguns vislumbres de luz, serão obrigados a confessar que tudo o que desaparece é verdadeiramente desprezível. Mas esses sentimentos forçados de pouco lhes hão de servir; serão talvez, pelo contrário, a sua condenação, a que virá pôr termo a morte, violentando esses monstros de ambição a reconhecerem verdades tão inegáveis.

Francisco de Sales, irmãs, não quer chegar a estes extremos para extinguir em seu coração todo o amor mundano. No maior vigor da sua idade, no meio do aplauso e do favor alheio, considerado ele com os mesmos olhos com que o consideraria nesse dia derradeiro, em que perecem todos os nossos pensamentos, e assim eternamente permanece como se fosse um homem moribundo. E realmente, cristãos, Ele não é apenas um moribundo; é, com efeito, desses mortos felizes, cuja vida está oculta em Deus, e que em plena vida se sepultam com Jesus Cristo. E se ele é tão prudente e tão moderado a respeito de dignidades que não possui, do mesmo modo procede a respeito do poder que lhe está confiado. Disto deu um brilhante exemplo, quando a sua Introdução à Vida Devota, essa obra-prima de piedade e de prudência, esse tesouro de salutares conselhos, esse livro que guia tantas almas para Deus, e em que todos os espíritos puros veem gozar com tanto prazer as sagradas delícias da devoção; da sua prudência deu um brilhante exemplo, dizíamos nós, quando esse livro foi rasgado publicamente, até nas tribunas evangélicas, com todo o azedume e arrebatamento que pode inspirar um zelo indiscreto, para não dizer maligno. Se o nosso santo bispo se tivesse sublevado contra esses pregadores temerários, teria encontrado pretextos suficientes para ocultar o seu ressentimento com o interesse do episcopado, que era violado na sua pessoa, e cuja honra, dizia um antigo (Tertul., de Bapt., n. 17), estabeleceu a paz da Igreja. Mas pensou, cristãos, que se era uma chaga para a Igreja ver um bispo ultrajado, muito maior seria ainda essa chaga se a Igreja visse um bispo encolerizado, e empenhado na defesa da sua própria causa e dos seus justos interesses. Esse grande homem convenceu-se de que a injúria feita a sua dignidade ficaria melhormente reparada pelo exemplo da sua modéstia do que pelo castigo dos seus invejosos; e então não usou da censura, nem da apologia, nem da resposta; dissimulou a afronta. A este respeito refere-se ele como que de passagem num lugar das suas obras, em termos tão moderados, que nunca poderíamos imaginar a atrocidade da injúria, se a memória tivesse sido ingrata na retenção do fato.

TERCEIRO PONTO

Quem quer que vós sejais, cristãos, que sois chamados pelo Espírito Santo para guiar as almas que o Filho de Deus resgatou, não intenteis seguir as regras da política do mundo. Lembrai-vos de que o vosso modelo está no céu, e que o primeiro diretor das almas, Aquele, cujo exemplo deveis imitar, é esse mesmo Deus a quem adoramos. Ora esse diretor soberano das almas não se satisfaz com derramar luz no espírito, também a quer derramar no coração. Quando pretende dar a conhecer o seu poder aos seres inanimados, não consulta as suas naturais disposições (Var.: inclinações); compele-os e violenta-os. Só o coração humano é que Ele parece não governar tanto com o poder como por meio da arte; dirige-o com a destreza e doma-o com a suavidade. O mesmo deverão fazer os diretores das consciências, empregando essa suavidade cristã como sendo o principal instrumento para guiar as almas, visto que devem enviar a Deus vítimas voluntárias, e preparar-lhe filhos em vez de escravos.

Para termos uma ideia sublime dessa suavidade evangélica, parece-me que bastaria contemplarmos (Var.: basta contemplarmos) o rosto de Francisco de Sales. Não obstante, remontando à origem, procuremos no seu coração a fonte dessa suavidade atraente, que outra não é senão a caridade. Os que mais privaram com o santo varão e melhor o conheceram, asseguram-nos que era propenso a ira, isto é, dotado do temperamento que a suavidade mais se opõe. Mas o que agora devemos admirar é o papel que desempenha a caridade nos corações e a maneira como os transforma, e ao mesmo tempo descobrir-vos o que é a suavidade cristã, que parece ser a virtude particular do nosso ilustre prelado. Para bem compreendermos estas coisas, devemos notar que a maior mudança que a natureza opera nos homens, é quando lhes dá filhos; então é que os temperamentos mais rígidos e mais indiferentes recebem uma nova ternura e sentem desvelos que anteriormente lhes eram desconhecidos. Não há ninguém que não tenha observado as inclinações extraordinárias que nascem de repente no coração das mães e das amas, que são como que umas segundas mães. Ora, Santo Agostinho diz-me que «a caridade é uma mãe, e que também é uma ama» – charitas natrix (1) charitas mater est (2). Com efeito, nós, lemos nas Escrituras que a caridade tem filhos; tem entranhas onde os traz, seios que lhes oferece, e um leite que lhes dá a beber. Não é, pois, de admirar que ela transforme os que possui, e sobretudo os diretores das almas; nem que lhes amacie o temperamento, inspirando-lhes no coração sentimentos maternais.

Foi esta unção da caridade, irmãs, que transformou o vosso bem-dito Pai; foi esse óleo verdadeiramente celeste, esse bálsamo espiritual que acalmou o temperamento ardente e agitado que nele excitava cólera. E daqui deveis agora depreender o que é a suavidade cristã, que outra coisa não é mais do que a flor da caridade, que, tendo aromatizado o interior, espalha depois exteriormente uma graça simples e natural e um ar de sóbria cordialidade, que rescende um afeto sacratíssimo. Foi por este meio que Francisco de Sales começou a conquistar os corações.

Mas a suavidade cristã não se manifesta somente na aparência; acolhe interiormente estas três virtudes principais que a compõem: a paciência, a compaixão e a condescendência, virtudes absolutamente necessárias aos que dirigem as almas, para suportarem as culpas; a compaixão, para as lamentar, e a condescendência, para as curar. A direção das almas é uma agricultura espiritual; e diz-me o apostolo São Tiago que a virtude dos lavradores é a paciência!

«Vede, diz ele, como o lavrador esfera o fruto da terra, suportando tudo pacientemente» – Ecce agrícola expectat pretiosum fructum terrae, patienter ferens (Tg 5, 7)

E na verdade, cristãos, para abrandar a dureza da terra, vencer a desigualdade das estações e suportar sem tréguas a assiduidade dum tão longo trabalho, que coisa é mais necessária do que a paciência? Mas vós, ó lavradores espirituais, tendes tanto maior necessidade dela, quanto é certo ser o grão que semeais mais delicado e mais precioso, o campo que cultivais mais estéril, os frutos que esperais, geralmente mais tardios, e as vicissitudes, que receares, incomparavelmente mais perigosas. Para vencer estas dificuldades, é mister uma paciência invencível, como era a de São Francisco de Sales. Em vez de se desgostar ou de moderar o zelo, quando a terra que cultivava não lhe dava frutos temporãos, aumentava, pelo contrário, o seu ardor, quando ela só lhe produzia espinhos. Houve homens ingratos, a quem ele dedicava muitas vigílias para os guiar ao bom caminho, que, em vez de reconhecerem os seus desvelos, exaltavam-se ao ponto de lhe fazerem mil recriminações ultrajantes. Era um surdo que não ouvia e um mudo que não falava: Ego autem tanquam surdus non audiebam, et sicut mutus non aperiens os suum (Sl 37, 14). Suplicava muito a Deus que lhe proporcionasse ocasiões de vencer, pela sua paciência, os que resistiam aos seus bons conselhos. Por muito assomados que ele os visse, nunca deles se queixava; mas também nunca deixou de ter compaixão deles, de usar desse segundo sentimento que exorna o coração dum bom diretor.

E vós bem o sabeis, ó pecadores, leprosos espirituais a quem a Providência Divina enviava a esse Eliseu; vós especialmente, pobres transviados dessa grande diocese de Genebra, e vós, pastores dos rebanhos errantes, instrumentos de iniquidade, que profanais as fontes de Jacó e procurais desviar as suas águas nativas para uma terra estranha; vós bem o sabeis, quando tivestes a felicidade de cair nas mãos desse pastor caritativo, e experimentastes as delicias da sua compaixão.

E assim, é, cristãos, que não há coisa mais eficaz para enternecer os corações, do que essa sincera demonstração duma compassiva caridade. A compaixão comove muito mais quando manifesta o desejo de salvar; e por isso as lágrimas do pai angustiado, que deplora os desregramentos do filho prodigo, fazem-lhe sentir muito melhor o seu desvario do que as admoestações sutis e estudadas, com que ele poderia convencê-lo. O que fez dizer a Santo Agostinho (3) que melhor era persuadir os hereges com testemunhos de caridade do que com acaloradas discussões. E a razão disto é evidente: é que o ardor do que discute pode porvir do desejo de vencer; e a compaixão lisonjeia mais, quando manifesta o desejo de salvar. Um homem pode irritar-se contra vós, quando ofendeis os seus pensamentos mas ficar-vos-á eternamente grato, se lhe desejardes a salvação. Receia servir de troféu ao vosso orgulho mas nunca se molesta de ser o objeto da vossa caridade.

Entrai por essa aberta favorável; mas não ataqueis a praça do lado dessa eminência; onde o orgulho se entrincheira, no meio de alturas tão grandes e de precipícios tão escarpados e ruinosos; aproximai-vos pelo lado mais acessível, e, por esse coração que se vos entreabre, procurai conquistar o espírito que se perde em ínvios caminhos.

É esta, meus senhores, uma astúcia inocente e salutar que nunca homem algum melhor praticou do que o santo bispo de quem estamos falando. Não lhe era difícil convencer os pecadores e especialmente os hereges que com ele conversavam, de quanto lhe era penosa, a miséria que os afligia, e então eles sentiam-se logo comovidos com isto, e ao santo parecia-lhe ouvir uma voz segredar-lhes no íntimo do coração estas palavras de Santo Agostinho: Veni, columba te vocat gemendo te vocat (4): pecadores, acudi a penitência; hereges, vinde à Igreja, que Aquele que vos chama é a personificação da suavidade; não é uma ave selvagem, que vos atordoa com os seus gritos importunos, ou vos dilacera com as suas garras aduncas; é uma pomba que geme, e que procura atrair-vos, gemendo pelo esforço duma compaixão mais paternal: Veni, columba te vocat, gemendo te vocat. Um homem tão cheio de ternura, irmãs, e sem dúvida, tão caritativo, não tinha dificuldade em se humilhar por uma misericordiosa condescendência, que é a terceira parte da suavidade cristã e a qualidade mais necessária a um fiel diretor das almas, condescendência que a unção da caridade produz nos corações da seguinte maneira.

Há pouco estava falando dessas transformações maravilhosas que opera nos corações o amor dos filhos, de entre as quais a mais notável é a humildade. Olhai para essa mãe e para essa ama, ou até para esse pai, se quiserdes, e vede como ele, para assim dizer, se faz menor com a criança que tem junto de si. Acaba de chegar do tribunal, diz Santo Agostinho (5), onde pronunciou sentenças e onde fez pasmar os advogados com o brilho da sua eloquência; mas em casa, no meio dos filhos, parece-vos outro homem. Essa voz austera e imponente degenerou numa voz balbuciante e quase ininteligível; esse aspecto, ainda há pouco tão grave e tão autoritário, tomou de repente uma expressão infantil; e esse grupo de crianças que o cerca, impera de tal modo na sua vontade, que ele vê-se obrigado a ceder a todos os seus caprichos e a dar tudo o que elas pedem, exceto o que lhes pode fazer mal. Ora já que o amor das crianças produz estes efeitos, bem é que a caridade cristã, que dá sentimentos maternais, especialmente aos pastores de almas, e que tudo concede, exceto o que é contrário a salvação, bem é que ela inspire ao mesmo tempo a condescendência, qualidade tão sublime como indispensável. E vós bem o sabeis, ó ilustre Paulo, que tantas vezes descestes do terceiro céu para vir balbuciar com as crianças, que até parecíeis uma criança no meio dos fiéis: Facti sumus parvuli in medio vestrum (1Ts 2, 7), pequeno com os pequenos, grande com os grandes, enfermo com os enfermos, tudo em todos, para a todos salvar.

Que direi agora de São Francisco de Sales?

«A caridade, diz-nos ele, gera uns e enfraquece com outros; cuida em edificar estes e receia ofender aqueles; humilha-se para com uns e rebela-se contra outros; afável para com certos, severa para com alguns, é inimiga de ninguém e declara-se mãe de todos; cobre com as suas penas macias os seus ternos pintos; chama com voz solicita os que se lastimam; e os soberbos, que não querem acolher-se debaixo das suas asas fagueiras, ficam sendo presa das aves de rapina» – Ipsa charitas alios parturit, cum aliis infirmatur; alios curat aedificare, alios contremiscit offendere; ad alios se inclinat, ad alios se erigit; aliis blanda, aliis severa; nulli inimica; omnibus mater (6)…; languidulis plumis teneros faetus operit, et susurrantes pullos confracta voce advocat; cujus blandas alas refugientes superbi, praeda sunt alitibus (7)

Rebela-se contra uns sem se enfurecer, e humilha-se perante outros sem abdicar da sua missão; severa para com aqueles sem rigor, e afável para com estes sem lisonja, compraz-se de estar junto dos fortes, mas abandona-os para acudir às necessidades dos fracos (7).

Para o Panegírico de São Francisco de Sales pode consultar-se: Fléchier, Bourdaloue, De Mac-Carthy, Houdry, De la Rue, etc.

Referências:

(1) De catech. rud., cap. XV, n. 23
(2) Ad Marcel., Ep. CXXXIX, n. 3
(3) In Joan, Tract. VI, n. 15
(4) In Joan, Tract. VI, n. 15
(4) In Joan, Tract. VII, n. 22
(5) S. Agost., De catech. rud. cap. XV, n. 24
(6) Idem, cap. X, n. 15
(7) Bossuet, para a conclusão do seu sermão, remete para o Panegírico de São Tomás de Vila Nova, que nós não pudemos conseguir, apesar de todas as nossas pesquisas (Ediç. de Déforis)

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 115-139)