Água. Os homens buscaram sempre construir suas cidades junto à água, a beira-mar, ou às margens dos grandes rios; lá onde corre impetuosamente ou onde se remansa placidamente num lago. Dirigi vossos passos ao centro da Europa, entre a Suíça, França e Itália, e procurai um lago tranquilo, circundado por suaves colinas, com os cimos ornados de abetos e as planícies cobertas de prados e vinhas. Se mais ao longe avistais os Alpes e o Monte Branco, então é provável que já tenhais encontrado o lago de Annecy e, junto dele, uma pequena cidade que leva o mesmo nome, cujos jardins se estendem em frente ao lago e cujas ruas estão sulcadas por antigos canais do rio Thiou.
Annecy é uma cidade encantadora, que conserva suas ruas tradicionais, a sólida prisão de velhas pedras em uma ilhota formada pelos canais, um impressionante castelo, sobre a colina, que pertenceu ao Duque de Nemours e, mais acima, dominando todo o panorama, o Mosteiro da Visitação. Este privilegiado lugar lembra um nome do qual está impregnada toda a cidade: Francisco de Sales.
Francisco percorreu aquela região entre 1567 e 1622, mas a sua lembrança, passados os séculos, continua hoje viva em toda a Comarca, desde a bonita cidade de veraneio Thonon le Bain, até a industriosa Anemmase, ou desde a cidade – por tantas razões internacional – de Genebra, com seu lago, até o de Bourget, conhecido pelos versos que sobre ele escrevera o poeta romântico Lamartine.
No ano de 1924, a Academia Florimontana erigiu um precioso monumento de bronze a Francisco de Sales, príncipe das Letras em língua Francesa, e o Papa [São] João Paulo II lembrava uma página formosa do seu livro Introdução à Vida Devota, que apresenta de maneira simples e esplêndida a vocação de todos os cristãos à santidade e, ao mesmo tempo, o modo específico com que cada um a realiza.
Mas, quem é Francisco de Sales?
Uma figura apaixonante: um sábio e um santo. Doutor em Direito Civil e Direito Canônico, sacerdote, missionário e apóstolo, bispo, diplomata, pastor e diretor espiritual, fundador e reformador de Ordens Religiosas, místico, escritor… sua rica personalidade consegue estabelecer um perfeito equilíbrio entre sabedoria humana e santidade.
Infância e juventude
Francisco nasce no Castelo de Sales em 1567, filho dos Senhores de Boisy, Francisco de Nouvelles e Francisca de Sionnaz, pertencentes à nobreza do ducado soberano de Sabóia. Seu pai, militar, já bem maduro em anos e provado nas batalhas; sua mãe, uma jovenzinha que mal completara quinze anos. Diferença de idade nada surpreendente naquela época, mas que marca com frequência o temperamento dos filhos.
É o primogênito e, além disso, durante nove anos filho único. Experimenta, assim, a delicadeza e ternura de sua mãe, junto com sua acendrada piedade. Diz-se que as primeiras palavras que pronunciou foram:
“Deus e minha mãe me amam muito”
O amor marcou sua vida. É o distintivo de sua personalidade.
Nas palavras de sua ama-de-leite, Francisco era “um menino muito gracioso, valente, afável, suave e comunicativo. Tão prudente e edificante nas palavras que todos o amavam”.
Mas, um menino também guloso e travesso. Um dia, se encanta com as fitas coloridas que vê na camisa de um carpinteiro que vai ao castelo e, às escondidas, as pega, o que lhe vale uma boa reprimenda de seus pais, atenuada porque confessa ingenuamente sua culpa. Outra vez, prefere suportar a queimadura na mão, provocada por um doce recém-tirado do forno, do que renunciar ao gosto de comê-lo; a seguir, guarda silêncio, para não acusar o cozinheiro imprudente que lhe quisera pregar uma peça.
Seu temperamento é vivo e, com frequência, ante a menor contrariedade fica vermelho pelo esforço que tem de fazer para dominar-se.
Assim, desde os primeiros anos sua personalidade se manifesta muito atraente. O encanto consiste na união que nele acontece entre qualidades contrárias.
Seus pais sabem orientar a educação de todos os traços de seu caráter. Querem fazer dele um perfeito cavalheiro e um bom cristão.
Logo mandam-no estudar fora de casa: primeiro no colégio de La Roche, a seguir no de Annecy e, quando tem apenas onze anos, mandam-no a Paris, centro da cultura europeia da época.
Ali passa dez anos aprendendo humanidades, retórica e filosofia. Sua inteligência e sensibilidade encontram no estudo uma fonte de desenvolvimento e de equilíbrio. O humanismo, para Francisco, não é um adorno ou jogo de espírito, mas a conquista da verdade, a busca da verdadeira vida: em seus estudos compromete todo o seu ser, inclusive seu destino espiritual.
Quinze… vinte anos… são para ele, como para todos uma idade crítica: o ambiente mundano que o rodeia está muito longe do de Sales. Frequenta a corte os palácios dos príncipes; destaca-se nas artes próprias da nobreza: manejo da espada, equitação, dança… é um jovem cavalheiro que agrada em qualquer lugar… e ele tem consciência disto. Seu coração não é de pedra. Quer permanecer fiel aos ensinamentos recebidos, e por isso luta, se mortifica, ora… não cubramos com falsas aparências este adolescente. Deixemos-lhes a honra de seu combate.
De dezembro de 1586 a janeiro de 1587 sofre uma profunda crise existencial: desde os doze anos tem a convicção de querer única e totalmente ser um homem de Igreja. Agora sente atração pelo mundo. Terá o coração dividido? Procura solução para suas inquietações na teologia, mas resposta se faz esperar. Chega inclusive a perguntar-se:
“Serei do número dos eleitos? Ou dos condenados?”
O que está em jogo, neste drama, é o Amor de Deus, cujas delícias já tinha experimentado e do qual teme ser privado para sempre. Mas, num ato de generosidade, heroico, exclama:
“Aconteça o que acontecer, Senhor, que pelo menos eu possa amar-Vos nesta vida, se não vou poder fazê-lo na eternidade. E se tiver que ser maldito entre os malditos, que não seja eu daqueles que maldigam vosso Santo Nome”
Desta longa prova, Francisco sairá, afinal, vencedor. Um dia, orando na igreja de Santo Estevão, diante da imagem da Virgem Negra, recita o Lembrai-Vos. De repente a tentação se desvanece e ele recobra a paz. Passou por uma etapa decisiva, capital. Conheceu um dos estados mais elevados da vida mística, um dos mais purificadores, “a desesperança do amor”. Saiu mais puro, mais forte, mais enamorado de Deus e decidido a levar este amor aos homens, seus irmãos.
Quando regressa para casa, aos 21 anos, quase não conhece sua família. Durante este tempo nasceram muitos irmãos aos quais nunca vira.
A alegria do encontro com os seus dura pouco. Querendo seu pai que ele seja senador, manda-o à Universidade de Pádua, para doutorar-se em direito.
O ambiente estudantil de Pádua não é nem pacífico nem fácil, mas Francisco sabe harmonizar o estudo do direito com a teologia e as relações sociais – aqui firma bonitas e duradouras amizades –; ademais leva uma intensa vida espiritual.
Sem embargo, esta perfeição tão simples e tão atraente incomoda aqueles que não sabem agir como ele. Três companheiros saboianos, buscando fazê-lo cair no ridículo, armam-lhe uma emboscada. Uma noite, saem-lhe ao encontro, armados, e começam a provoca-lo. Francisco, rápido nos reflexos e hábil no manejo da espada, desarma-os e os obriga a fugir, envergonhados.
Em outra ocasião, intentam novo assalto, porém de outra espécie: pretextando uma entrevista com notável jurisconsulto, querem vê-lo cair nas malhas de uma cortesã. Percebendo, Francisco faz frente e se retira com dignidade.
A tentação de Paris agrava-se em Pádua. Uma página de seus apontamentos pessoais, verdadeira joia da literatura mística, nos dá a conhecer o resultado de seu próprio combate espiritual, que termina com um admirável ato de confiança e abandono:
“… Estou disposto a ignorar tudo para melhor conhecer Aquele que é a Sabedoria do Pai: Cristo, e Cristo Crucificado (…). Sim, Pai, porque isto é do teu agrado, meu coração, oh meu Deus, está pronto, por teu amor, a ser condenado; por teu nome está igualmente disposto para a glória, oh Jesus. Amém. Oh Jesus, oh Maria”
Também desta vez, como em Paris, a crise moral é acompanhada por uma enfermidade que o leva à beira da sepultura. Seu preceptor lhe diz:
“Dize-me Francisco, se Deus te chamasse neste momento, aceitarias Sua vontade?”
A resposta não é só afirmativa. Francisco recebe a notícia com um coração dilatado. Confessa-se com seu diretor, Pe. Possevino, e faz um testamento memorável:
“Entrego minha alma a Deus. Meu corpo, após a morte, entregai-o, vo-lo rogo, aos estudantes de medicina, a fim de que, não tendo servido para nada durante a vida, possa ser útil após a minha morte. Sentir-me-ia feliz se por este meio pudesse impedir alguma das lutas e assassinatos que cometem os estudantes quando querem os corpos dos justiçados para fazer suas práticas”
Gesto de caridade e de humildade, no qual também se vê outro dos traços de Francisco de Sales: interessa-se vivamente pelas ciências naturais, e, especialmente, pelo estudo do corpo humano, que se lhe depara como a mais excelente das maravilhas da criação.
Uma vez terminado seu breve testamento, recebe das mãos de seu diretor o Santo Viático e a Extrema-Unção, e, de um modo imprevisto, recobra a saúde e retoma, com novo ânimo, seus estudos.
Aos 24 anos de idade, já doutor em direito, depois de um brilhante exame, volta para casa. Seu pai lhe concede o título do Senhorio de Villaroget, prepara-lhe a melhor biblioteca jurídica da Sabóia e fala com os nobres para que admitam seu filho como advogado e senador no Parlamento de Chambery. Mas os projetos de Francisco são outros; por opção pessoal, estudou teologia e se prepara para ser clérigo. Enquanto isso, o Senhor de Boisy preocupa-se em encontrar-lhe uma esposa. Francisco, porém, anseia por vestir uma batina.
O pai vê que todos os seus planos acerca deste filho extraordinário caem por terra. Insiste para que, pelo menos, harmonize seu cargo de senador com o ministério presbiteral. Francisco não aceita a proposição. Não quer ficar dividido entre Deus e o mundo. Deseja ser total e exclusivamente da Igreja.
Sacerdote e Missionário
Enfim, o Senhor de Boisy cede e Francisco é ordenado sacerdote no dia 18 de dezembro de 1593. Tem 26 anos.
Seus sentimentos nesta ocasião são uma mescla de temor, esperança e alegria, ante a grandeza e sublimidade do sacerdócio. Anos mais tarde escreve para Madre de Chantal:
“Naquele primeiro Sacrifício, Deus tomou posse de minha alma de maneira inexplicável”
Mesmo antes de sua ordenação, manifestara um zelo extraordinário, o que fez o Bispo exclamar:
“Temos um novo apóstolo”
Poucos meses depois o envia a uma difícil e perigosa missão no Chablais, para qual ele se oferece voluntária e generosamente.
Nesta época a Europa está envolvida em guerras de religião entre católicos e protestantes. Todos os habitantes do Chablais professam a doutrina de Calvino há cerca de sessenta anos. Em 1589, firmara-se o tratado de Nyon, pelo qual sacerdotes católicos podiam voltar para região. O Duque de Sabóia manda, então, cinquenta sacerdotes, um para cada povoação, mas eles são expulsos a pedradas, simplesmente.
O que pode fazer Francisco entre aquela população hostil? Acompanha-o seu primo Luís, também sacerdote e leva credenciais tanto do Duque como do Bispo, para apresenta-las ao governador da região que é o barão de Hermance. E isso é tudo.
Seu pai considera uma loucura ir pregar a fé católica a uma gente que só entende uma linguagem: a que sai da boca dos canhões. Por isso, não lhe oferece nem um ajudante, nem mesmo um cavalo. Tem de ir a pé, quilômetro a quilômetro.
O inverno de 1594-1595 é muito rigoroso, muito duro, por causa do frio, da fome, da perseguição, do desprezo… Ainda que teoricamente seja-lhe permitido pregar aos domingos na igreja, após o término dos ofícios protestantes, de fato, os administradores proibiram terminantemente que o papista fosse escutado. Apesar disso, para lá se dirige Francisco, todos os domingos, falando a bancos vazios com o mesmo zelo que expressaria se a igreja estivesse repleta de fieis.
Propõe-se visitar as famílias em suas casas, mas batem-lhe com a porta no rosto ou soltam os cães em seu encalço.
Certa vez, a noite o surpreende em pleno campo coberto de neve. Como ninguém quer dar-lhe abrigo, é obrigado a subir a uma árvore. Ouvindo o uivar dos lobos, amarra-se aos galhos para evitar que, vencido pelo sono, caia e seja devorado por eles.
Diariamente atravessa o rio para celebrar a Santa Missa em um povoado católico. Certa ocasião encontra a ponte semidestruída e não vacila em colocar umas tábuas, passando com grande risco para a própria vida.
Não lhe faltam tampouco ameaças por parte dos protestantes, que contratam assassinos para matá-lo, por dinheiro, bem como a todos os que ele, com sua mansidão e valor, converte.
Francisco não se dá por vencido com as dificuldades. Apoia-se em sua fé. Está profundamente persuadido da verdade do catolicismo. Sabe que se a doutrina da Igreja Romana for apresentada com toda a clareza por sacerdotes instruídos e santos, aquela gente voltará de novo à fé dos antepassados. Não evita nenhum esforço e decide escrever em folhas soltas o que pensa dizer no Domingo seguinte. Depois vai de casa em casa e as lança por debaixo das portas:
“Já que não me querem escutar, que pelo menos possam ler-me”
Destas simples folhas nasce um livro que se publicada mais tarde com o título Meditações sobre a Igreja ou Controvérsias. Ideia genial que revela Francisco não só como um grande escritor, pai da língua francesa, mas também como um profeta do jornalismo que faz chegar a todos, mediante uma linguagem atraente e simples, a mensagem da verdade. E em 1923, Pio XI o proclamará Patrono dos Jornalistas e dos Escritos Católicos.
Como as tardes de inverno são longas, no aconchego do lar as mulheres costuram e os homens mais cultos leem. Por curiosidade também começam a ler as folhinhas. Depois, comentaram-nas entre si e as discutem com pastores protestantes. Pouco a pouco, à medida que se aproxima a primavera e nos cumes nevados dos Alpes começa o degelo, também aqueles corações se tornam sensíveis às insistentes chamadas do missionário.
Começam a converter-se, primeiro os homens mais cultos e poderosos da cidade, depois também o povo simples. No ano de 1596 respira-se outra ar: a igreja de São Hipólito fica repleta de pessoas que querem escutá-lo; as conversões são cada vez mais numerosas. Chegam novos missionários para diferentes povoações e já aparecem grupos católicos em todas as aldeias, até que, em 1597, com a presença do Duque de Sabóia, do Bispo Granier e do Núncio do Papa, todos os principais das regiões renunciam solenemente ao calvinismo.
Posteriormente, Francisco escreve uma carta ao Papa Clemente VIII:
“Quando cheguei aqui, podia-se contar uns cem católicos numa população de cerca de 30.000 pessoas. Hoje, restam apenas uns cem hereges”
Ele que em criança havia investido a chicotadas contra as galinhas, fustigando-as como a hereges, consegue a conversão do Chablais convencendo por amor.
Coadjutor do Bispo de Genebra
Após a conversão do Chablais, Francisco volta a Annecy e em 1598, quando tem 31 anos e apenas cinco de fecundo ministério sacerdotal, Monsenhor de Granier o propõe como auxiliar e sucessor seu. Reiteradamente, nega-se a aceitar, considerando-se indigno e só aceita quando lhe dizem que está se opondo à vontade de Deus. Assim é preconizado Bispo de Nicópolis em 1599, mas adia a sua consagração por respeito filial para com seu Bispo, a quem venera e admira. Neste tempo assume os encargos do Bispado mas não as honras. É nesta condição que vai a Paris para resolver alguns problemas da zona francesa que pertence à diocese de Genebra.
Suas gestões diplomáticas fracassam, mas mesmo assim é uma época fecunda em pregações em todas as igrejas de Paris e até na Corte, conseguindo um êxito apostólico considerável. Conhece o rei Henrique IV, já convertido ao catolicismo, e personalidades como os cardeais De Retz e Richelieu.
Frequenta, sobretudo, o círculo de Madame Acarie, filha e esposa de magistrados; recebida na alta sociedade, torna-se uma instituição na Paris dos princípios do século XVII. Em sua casa se reúnem os nomes mais destacados da espiritualidade da época: o jovem Bérulle – com quem Francisco projeta introduzir na França o Oratório de Felipe Néri – Benoît de Canfeld, Dom Beaucousin, André Duval, Jaques Gallemand, Asseline, Marillac…
O encontro de Francisco com Madame Acarie é providencial: vendo-a atuar se convence de que é possível viver no meio do mundo e cultivar uma profunda vida interior. Conceito de santidade original para aquela época e que é uma das grandes intuições de Francisco de Sales, confirmada três séculos mais tarde para o Vaticano II.
Madame Acarie e seu círculo introduzem o Carmelo na França. Nesse tempo é que está sendo gestado, e talvez daí é que surja o conhecimento e admiração que Francisco de Sales sente por Teresa de Jesus e pelos místicos espanhóis, conhecimento e admiração que comunica através de seus escritos.
Bispo de Genebra
Quando regressa a Sabóia – Monsenhor Granier já havia falecido –, Francisco de Sales é sagrado Príncipe Bispo de Genebra, no dia 8 de dezembro de 1802, festa da Imaculada Conceição da Virgem Maria, “em cujas mãos” – como ele mesmo diz – “coloquei o meu destino”.
Fixa sua sede em Annecy, por estar a capital ocupada pelos calvinistas. Mora numa modesta casa, reservando para si o pior quarto. Adota um estilo de vida austero, não usa carruagem e quer que sua residência esteja sempre aberta para todos.
Como Bispo, o amor segue impulsionando toda a sua ação pastoral. Mudam suas funções, suas responsabilidades… mas não o seu modo de ser e agir. Por isso diz que quer reconquistar Genebra pela caridade, usando nesta batalha, como únicas armas, a oração e a penitência.
Ainda antes de sua sagração episcopal percorrera parte de sua diocese, que é uma das mais extensas da Europa nesta época. Agora, prepara uma grande visita pastoral para viver de perto todas as suas realidades. Quer conhecer todas as suas paróquias. A tarefa tem início em 1604 e se revela bem difícil. Tem que andar muitos quilômetros a cavalo ou a pé e, inclusive, como ele conta:
“Visitei uma igreja paroquial situada sobre uma alta montanha, à qual ninguém pode chegar senão andando de gatinhas, com ajuda dos pés e das mãos”
Pés e mãos que com frequência se ferem, sem que isto constitua um obstáculo para que o Bispo continue seu caminho até chegar onde moram os pastores alpinos. Com eles compartilha a vida, a solidão e o frio. Suas cartas nos revelam os sentimentos que estes encontros lhe inspiram.
“Os aldeões me contam que um pastor que saíra em busca de uma de suas vacas, que se extraviara, resvalou numa geleira e morreu de frio. Oh, meu Deus! disse comigo. Este gelo não foi capaz de inibir o ardor com que este pastor procurava a sua vaca. E por que eu sou tão negligente na busca de minhas ovelhas? Realmente, isto me tocou, e meu coração tão gelado aqueceu-se um pouco”
Que humildade a de Francisco! Ele, que está abrasado por um fogo que o devora.
Vai ensinar aos aldeãos a fé em Jesus Cristo e estabelece relações encantadoras com aquela simples gente, como por exemplo no caso da camponesa Pemette Boutey, que se converte “pela graça de Deus em uma de suas grandes amigas”.
Em seu caminho encontra ignorância que às vezes provoca atitudes arrogantes – superstições, abusos, que corrige com autoridade e doçura. Assim vai conseguindo a conversão, o arrependimento dos que levam uma vida licenciosa..
Fala, catequiza, encontra-se com o povo, reconcilia as gentes, aconselha os sacerdotes… são jornadas extenuantes, como nos revela uma carta de 1608:
“Quando me retiro, não consigo mover nem meu corpo nem meu espírito, de tanto cansaço! E de manhã me sinto mais animado do que nunca. A cada noite Deus realiza um pequeno milagre”
Esta ajuda extraordinária de Deus não impede, às vezes, de cair gravemente doente. Mas, também por intermédio de sua fraqueza consegue conversões, como a de um jovem calvinista, que o observava. Ao saber Francisco que o rapaz o escarnecia por considerá-lo um trapaceiro, impostor, mandou chamá-lo. Acolheu-o com tanta confiança e bondade que o jovem não resistiu e lhe confessou:
– “Monsenhor, vejo que tendes o dom de ler o íntimo dos corações. Fui enviado por nossos ministros para saber o que vindes fazer nestas paragens”
– “Venho, meu filho, buscar minhas ovelhas e vós sois uma delas”
E dizendo isto, abraçou-o com ternura. O jovem, comovido, caiu de joelhos aos pés do Bispo e pediu-lhe que o instruísse na fé católica.
Este é Francisco de Sales.
Em qualquer circunstância, admirável. É decididamente um gênio completo. Nele todas as qualidades e virtudes se equilibram, se fundem umas nas outras. Tudo isto acrescido de um maravilhoso dom de comunicação: sua bondade, sua paciência atraem para ele os corações. Consciente desta graça divina, escreve:
“O coração de meu povo é quase todo meu”
Ele, que no começo desta visita temia encontrar “cruzes de todo o tipo a cada passo”, obtém grandes frutos, e pode dizer, ao terminá-la, que as cruzes “se converteram em louros e palmas”.
A Reforma do Clero
Esforça-se também em preparar seus sacerdotes na linha do Concílio de Trento, recém-findo. É uma tarefa difícil, porque se encontra com um clero inculto, às vezes pouco virtuoso, e somente preocupado com o lucro de seus benefícios. É obrigado a enfrentar alguns homens poderosos que manipulam os bens eclesiásticos em favor de seus protegidos, tenham ou não vocação sacerdotal. Custa-lhe esta reforma mais de um desgosto. Ma, pouco a pouco, vai conseguindo dignificar os sacerdotes. Reúne-os frequentemente, para atualizar seus conhecimentos, e, o que é mais importante, estimula-os à santidade.
A pregação e o culto são outros objetivos a alcançar. Se não, o povo voltará ao protestantismo. Fazem falta as cerimônias celebradas com dignidade e animação. Os pastores protestantes estão intelectualmente bem preparados. Por isso, Francisco de Sales se ocupa em organizar os estudos dos sacerdotes. Que obtenham títulos universitários e conheçam bem as Escrituras. Diz que “a ciência, para um sacerdote, é o oitavo sacramento”. Deste modo, os pregadores alcançam uma alta estima entre o povo.
Francisco, o Evangelho Falante
Ele mesmo dá o exemplo. Vai de cidade em cidade pregando a Palavra de Deus, sem jamais se negar. Fá-lo de um modo simples, para que todos o entendam. Fala com entusiasmo da beleza da fé católica, em vez de censurar os erros da heresia, e só com sua presença já convence. É um “Evangelho falante”, vivo. Mais tarde, quando mesmo Francisco disser que a única diferença que existe entre o Evangelho escrito e a vida dos santos é a que existe entre uma partitura de música escrita e a executada por um regente, não fará mais do que manifestar o que é a sua própria vida: os santos são o Evangelho colocado em prática.
Para instruir o povo, além de sua dedicação pessoal, Francisco de Sales chama os jesuítas e os barnabitas para que fundem colégios (em que se ensine gramática e humanidades), na região. Cria, também, a Santa Casa de Thonon, pioneira de nossas escolas de artes e ofícios. E, para fomentar o cultivo das letras e das ciências, a Academia Florimontana, muito antes do nascimento da Real Academia da Língua Francesa.
Preocupa-se, também, em organizar na diocese a catequese infantil. Tem prazer em instruir as crianças toda semana. Elas se sentem à vontade com o Bispo, gostam muito dele e o rodeiam em toda parte, inclusive quando caminha pelas ruas. Seus servidores se inquietam e querem afastá-las, mas Francisco lhes recorda com um sorriso que Jesus Cristo repreendeu os apóstolos pelo mesmo motivo… Um dia surpreende a sua mãe, ao fundo da igreja,, escutando sua aula de catecismo. Ao terminar, pergunta-lhe por que vem, diz que se distrai vendo-a. Afinal, fora ela mesma que lhe ensinara estas verdades. Madame de Boisy responde que ela lhe ensinou a letra, mas que só agora está entendendo o significado.
A presença de Francisco de Sales suscita um crescente interesse em todos os ambientes. Querem transferi-lo a alguma outra diocese mais importante, como a de Paris.Fala-se inclusive de elevá-lo ao Cardinalato. Ante semelhantes proposições recusa-se sempre com humildade. Seu único comentário é:
“Somente a glória de Deus, manifesto em meu superior, o Papa, pode tirar-me de Genebra”
E, referindo-se à púrpura cardinalícia:
“Peço a Deus que afaste de mim esta dignidade porque não a mereço. Oxalá minhas vestimentas se tornem rubras somente com o meu sangue”
Diretor Espiritual
É constantemente convidado para pregar, sobretudo no Advento e na Quaresma, em não poucas cidades, em sua diocese e fora dela.
Dedica longas horas ao confessionário, onde acolhe e escuta com paciência e bondade todos os que se aproximam. Quando o recriminam por empregar tanto tempo neste ministério responde simplesmente:
“Não há ninguém que queira mais aos pecadores que Jesus Cristo e eu”
Também há muitas pessoas que querem colocar-se sob sua direção espiritual, mesmo que seja somente através de cartas. Isto ocupa um outro capítulo da vida de Francisco: sua correspondência particular.
Tem um notável dom para personalizar cada carta. Nenhum destinatário é igual a outro e nem mesmo se encontra sempre na mesma situação. Na intimidade de sua correspondência, mais do que em suas outras obras, apoia toda a sua espiritualidade no coração. Se na missão do Chablais se mostra combativo, audaz, jurista e diplomata, na correspondência espiritual se apresenta como um maravilhoso amigo das almas, cuja finura psicológica se embasa numa doutrina mística firme em si mesma.
Madame de Brulart, esposa do presidente do Parlamento de Borgonha, é uma de suas destinatárias. O santo bispo lhe oferece uma direção simples, compatível com seu estado de vida, colocando o acento em pontos elementares de toda a vida espiritual:
“Aconselho-vos visitar de vez em quando os hospitais e consolar os enfermos… os enfermos se beneficiarão do vosso adiantamento espiritual, se se traduz num trato mais caritativo… vosso marido verá que, quanto mais avançais pelo caminho da perfeição cristã, mais cordial sois para com ele, e mais suave será o carinho com que o tratais… É necessário, pois, que vossa espiritualidade vos torne cada vez mais amável, útil e agradável… Definitivamente, deveis fazer com que vossa devoção se torne cada dia mais atraente”
A “Introdução à Vida Devota”
Especial destaque merece seu relacionamento com a Senhora Charmoisy, a qual, quando jovem fora educada como dama de honra de Catarina de Cléves, duquesa-consorte de Guisa. Mais tarde casou-se com o Senhor de Charmoisy. Embora vivendo em Annecy, ausentava-se frequentemente, acompanhando seu marido a Chambery, onde ele era membro do Parlamento.
É quando roga ao Bispo que lhe dê seus conselhos por escrito. Assim, no decorrer do tempo, reúne um pequeno volume e o mostra a um jesuíta, que, admirado, anima Francisco a publicá-lo. Ele, com simplicidade, o revisa, ordena e acrescenta outros escritos. Assim, surge, em 1609, seu famoso livro, “Introdução à Vida Devota”, um dos clássicos da espiritualidade cristã, pleno de unção sem ser enfadonho, claro sem ser superficial, de uma beleza sem artifício. Poderia ter-se intitulado “Introdução à espiritualidade cristã secular”.
O que atrai nele, principalmente, é que põe a santidade ao alcance de todos e responde ao desejo fundamental do coração humano:
“Nascemos para buscar a felicidade. Por isso, nosso pobre coração, ao correr atrás das criaturas, corre ansioso, crendo poder satisfazer seus desejos; mas apenas os alcança, comprova sua vaidade e não se satisfaz (…) Minh’alma, se tu podes conhecer e amar a Deus, por que buscas contentamento em coisas menores? Se podes alcançar a eternidade, por que paras no tempo? És capaz de Deus. Desgraçada és se te contentas com menos”
A obra é um monólogo dirigido à alma que ama a Deus, ou seja Filotéia – nome pelo qual se conheceu o livro em outro tempo – e se destina tanto a homens como mulheres.
Francisco dá-lhe início explicando que a devoção “não é outra coisa senão um verdadeiro amor a Deus”. É a “perfeição da caridade”.
“A devoção nada prejudica quando é verdadeira; ao contrário, tudo aperfeiçoa. Com ela o cuidado da família se torna mais aprazível; o amor do marido e da mulher se torna mais intenso; o serviço ao soberanno, mais fiel, e todas as ocupações, em geral, mais suaves e amáveis”
Prontamente vai conduzindo passo a passo, o batizado que vive no meio do mundo, desde a saída do pecado até a plenitude da vida cristã, e lhe oferece os meios para consegui-lo: oração, sacramentos, prática das virtudes. Dá-lhes conselhos simples e práticos, aplicáveis a toda época:
“A humildade nos faz perfeitos diante de Deus, a suavidade nos torna agradáveis diante dos homens
Não te encolerizes nunca, e, se for possível, não busques pretexto algum, qualquer que seja, para dar entrada em teu coração à ira, pois o Apóstolo São Tiago diz, incisivamente, que a ira do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus. Devemos resistir ao mal e opor-nos aos vícios dos que estão submetidos aos nossos cuidados, com constância e firmeza, mas de uma maneira suave e tranquila.
O mesmo te digo do teu modo de falar. Guarda-te da duplicidade, dos artifícios e enganos. Que seja suave, franco, sincero, espontâneo, ingênuo e fiel”
Não lhe falta o gracejar quando trata das circunstâncias comezinhas da vida do dia a dia:
“Todavia, quero pedir-te algo mais: quero que suportes com doçura as pequenas incomodidades de cada dia. Essa dor de cabeça ou de dentes, ou outra indisposição, ou a palavra inoportuna do marido ou da esposa, a quebra de um cristal, a perda de uma luva ou de um lenço, o pequeno mal esta que exige o deitar-se mais cedo, ou levantar-se de madrugada para fazer oração antes de comungar. Numa palavra, todos os sofrimentos recebidos e praticados com amor agradam muito à Bondade Divina”
“As grandes ocasiões de servir a Deus se apresentam raramente, mas as pequenas, mas as pequenas são constantes; pois bem, quem for fiel no pouco, disse o Senhor, será constituído sobre o muito. Faze, então, todas as coisas em nome de Deus e tudo estará bem feito. Quer comas, quer bebas, quer durmas, quer te recreies, quer cuide de panelas, enquanto cumprires bem teus deveres, ganharás muito diante de Deus, fazendo todas as coisas porque Deus assim o quer”
Francisco adverte Filoteia sobre as dificuldades que terá e como deve proceder. Mostra o conceito cristão de pobreza de de riqueza:
“Deixa-me dizer-te uma palavra sobre a pobreza. Olha, as riquezas que possuímos não são nossas; Deus no-las confia para que as administremos e as tornemos úteis e produtivas. Tenhamos, pois, um cuidado zeloso na conservação e aumento dos nossos haveres quando se apresentar justa a ocasião de fazê-lo e enquanto nossa condição o permitir. Deus quer que o façamos por seu amor…
Mas quero também que ames os pobres e a pobreza, porque o amor nos assemelha à pessoa amada. Se és pobre, será verdadeiro partícipe de sua pobreza e pobre como eles; se amas os pobres, frequenta sua companhia, alegra-te em recebê-los em tua casa e visitá-los nas suas; participa de bom coração de suas conversações; seja para ti um prazer que se aproximem de ti na igreja, em toda a parte. Sê pobre em tua maneira de falar-lhes, expressando o que queres dizer como um companheiro, e sê rica em obras, repartindo os teus bens entre eles com abundância”
Como bom psicólogo, exorta, anima, convida ao otimismo…
“Quando te vires envolvida pela tristeza, emprega os remédios seguintes contra ela: se alguém sente tristeza, diz o Apóstolo São Tiago, que faça oração. A oração é o remédio soberano, pois eleva o espírito para Deus, nossa única alegria e nosso consolo; mas, ao rezar, emprega afetos e expressões que aumente a confiança e o amor, como por exemplo ‘Oh Deus de misericórdia! Meu bom Deus, meu amável Salvador. Deus de meu coração, minha alegria, minha esperança, meu querido Esposo, benfeitor de minha alma’, e, assim, outras expressões semelhantes.
Quando experimentares alguma tentação, faze como as crianças quando veem o lobo ou o urso no campo: imediatamente correm para os braços do pai ou da mãe, ou pelo menos os chamam para que as ajudem. Recorre a Deus invocando seu auxílio e sua misericórdia; este é o remédio que o Senhor nos prescreveu e ensinou: orai para não caírdes em tentação.
Contra as pequenas tentações de vaidade, suspeita, melancolia, inveja, ciúmes e semelhantes, que como moscas esvoaçam diante de nossos olhos e algumas vezes nos picam a face ou o nariz, sendo impossível livrar-se de suas impertinências, o melhor remédio é não nos inquietarmos, uma vez que não nos podem trazer mal algum, senão um pouco de aborrecimento, contanto que seja mantida firme a resolução de servir a Deus”
Termina convidando a alma que ama a Deus a retirar-se de vez em quando para refazer as forças e avançar com alegria neste caminho.
“Finalmente eu te conjuro, por tudo o que há de mais sagrado no céu e na terra; pelo batismo que recebeste, pelo Coração Ardente de Caridade com que Ele te ama, e pelas entranhas de misericórdia nas quais tanto esperas, que continues e perseveres em teu feliz empreendimento de abraçara a vida devota”
A Introdução à Vida Devota constitui o maior êxito editorial do seu tempo, e continua vivo hoje, com mais de mil edições em todas as línguas.
O “Tratado do Amor de Deus”
Francisco de Sales não escreve pelo prazer de escrever. É o zelo pelo bem das almas que o move a transmitir, através da pena, tudo o que sabe vive, desejando atingir o maior número possível de pessoas. Nunca tinha pensado em escrever a Introdução, que surgiu sem embargo providencialmente. Mas, em outro livro, sim trabalha desde 1606: é o Tratado do Amor de Deus, que será dado à luz dez anos mais tarde, fruto de sua experiência própria e das pessoas com quem se relaciona. É sua obra prima e termina com uma oração, êxtase de amor, reflexo do que é sua vida e do que será sua morte:
“Oh Amor Eterno, minha alma Te busca e Te elege livremente! Vem, Espírito Santo, inflama nossos corações com Teu amor. Ou amar ou morrer! Morrer e amar! Morrer para qualquer amor para viver no Amor de Jesus e para não morrer eternamente. Que vivendo em Teu Amor Eterno, Salvador de nossas almas, possamos cantar eternamente: viva Jesus! Viva Jesus a Quem amo! Eu amo Jesus, que vive e reina pelos séculos dos séculos, amém”
No Plano Pastoral de Francisco de Sales, a Vida Religiosa, que ele muito preza, ocupa um lugar muito importante. Mantém uma grande amizade com os cartuxos, dominicanos, capuchinhos, jesuítas. Admira o oratório de Felipe Néri e favorece as ermidas dos Montes Voiron. Incontestavelmente, durante toda a sua vida terá de lutar para reformar as abadias e mosteiros de sua diocese que haviam caído no relaxamento. Sua suavidade não exclui nele nem a força nem a firmeza.
A ampla experiência que possui sobre a vida religiosa, e a profunda estima que lhe dedica, levam-no a fundar uma Congregação que preencherá um vazio no panorama conhecido até então, sendo ao mesmo tempo uma grande novidade.
A ideia foi amadurecida durante muito tempo em seu coração de sacerdote e pastor. Encontrou muitas mulheres que lhe falaram de seus desejos de retirar-se do mundo para viver somente para Deus, mas que não podiam realizá-los nos mosteiros existentes porque uns estavam relaxados, e em outros se praticavam grandes austeridades corporais, que não tinham forças para assumir.
Francisco espera em silêncio a hora de Deus.
Seu encontro com a baronesa de Chantal
No ano de 1604, vai a Dijon, capital da Borgonha, para pregar durante a Quaresma. Em frente ao púlpito, uma jovem senhora de cerca de 32 anos, vestida como as viúvas, parece absorta diante da persuasiva palavra do pregador. Francisco reconhece nela a mulher que Deus lhe havia mostrado dias antes em uma visão no castelo de Sales, e compreende que é a que lhe permitirá realizar seu projeto. Ela, por seu lado, também identifica o bispo com o clérigo que há tempos havia visto passeando pelo bosque e que o Senhor lhe revelara como o futuro diretor de sua consciência.
Francisco pergunta intrigado a André Frémyot, futuro Arcebispo de Bourg, sobre aquela senhora que o escuta com atenção. Ele orgulhosamente responde tratar-se precisamente de sua irmã Joana Francisca, baronesa de Chantal.
Joana Francisca Frémyot era filha do presidente do Parlamento de Dijon. Nascera em 1572. Órfã de mãe quando contava pouco mais de um ano de idade, recebeu de seu pai uma sólida formação humana e cristã.
Aos vinte anos casou-se com Cristóvão de Rabutin, barão de Chantal. Foi um matrimônio muito feliz. Tiveram seis filhos. Após oito anos de intensa felicidade conjugal, numa caçada e em razão de lamentável acidente, o barão morre dando um testemunho extraordinário de perdão e grandeza de alma.
Ela teve de suplantar sua imensa dor e dedicar-se à educação dos quatro filhos que lhe restavam, cuidar de suas propriedades e atender seu pai e seu sogro. Além disso, desdobrou-se servindo pobres e enfermos, encontrando a fortaleza de que necessitava nas suas práticas de piedade. Era conhecida e admirada por todos como a “perfeita senhora”.
Fundador da Ordem da Visitação
O encontro providencial entre Joana Francisca de Chantal e o santo bispo de Genebra, Francisco de Sales, dá início a uma das amizades mais santas e fecundas que houve na história. Dele nascerá a Ordem da Visitação.
Após alguns anos de comunicação sobretudo epistolar, e alguns encontros decisivos (nos quais vai sendo gestada a obra), no dia 6 de junho de 1610, festa da Santíssima Trindade, Joana Francisca junto com as senhoritas Carlota Bréchard, Jaqueline Favre e Ana Jaqueline Costa iniciam uma surpreendente aventura nas proximidades do lago de Annecy.
O que poderia instituir o Doutor do Amor, senão lares, focos de amor? Francisco não teme inovar profundamente. Não pretende fundar uma grande Ordem, apenas uma pequena congregação na qual não haverá “outro laço, outro vínculo senão o amor de Deus”.
Embora vivam retiradas, as Irmãs podem sair para visitar e cuidar dos pobres e enfermos. Mas esta não é a sua finalidade principal. Trata-se apenas de uma prática que já vinham realizando por devoção e de acordo com a necessidade do lugar.
A ausência de grandes austeridades corporais supõe uma revolução na ideia que se tem até então sobre a vida religiosa, monástica, e dá origem a muitas dificuldades e ataques. Francisco porém não diminui o valor da vida religiosa; interioriza, isto sim, as suas exigências. Ele sabe até que ponto o amor penetra: até a medula da alma. As Irmãs devem progredir na perfeição interior mais do que nas mortificações exteriores. Por exemplo:
“Terão os pés bem calçados, mas bem despojado e desnudo o coração”
Coloca a pequena comunidade sob a proteção de Nossa Senhora da Visitação. Ama este mistério, no qual descobre “mil particularidades para o espírito do Instituto, e por ser um mistério escondido, não solenizado na Igreja”.
Agora, Francisco de Sales, além de fundador, torna-se Mestre de noviças. Todos os dias visita suas filhas e, em conversa familiar, vai formando-as na vida religiosa que pretendem seguir. Responde simplesmente as perguntas, dedicando-se a uma espécie de direção espiritual comunitária.
Juntos organizam o horário, desenham o hábito, ensaiam o Ofício Parvo de Nossa Senhora para evitar os erros de pronúncia de em latim. Ele mesmo compõe a melodia que as Irmãs devem usar. Ensina-as a “fazer tudo por amor e nada por força”, a “amar mais a obediência do que temer a desobediência”, deixando-lhes o que ele chama “o espírito da liberdade dos filhos de Deus”. Destes colóquios, recolhidos fielmente por escrito pelas primeiras Visitandinas, nascerão em 1628 os Entretenimentos ou Conversações Espirituais, obra póstuma em que se revela viva a presença do autor.
Apesar das críticas, que não faltam, as vocações afluem e se pedem muitas fundações. É evidente que este novo Instituto responde à necessidade das almas e da Igreja. Mas a fundação de Lião, em 1615, obriga Francisco a rever alguns pontos importantes de seu projeto: se quiser que se estenda na França, deverá transformar sua pequena congregação em Ordem Religiosa segundo as leis do Concílio de Trento, com votos solenes e clausura.
Na disciplina eclesiástica da época não se entende aquilo que, anos mais tarde será uma realidade com São Vicente de Paulo, baseado precisamente em Francisco de Sales: as congregações de vida ativa, que tornam a Igreja presente em todos os âmbitos da sociedade. O Bispo de Genebra, inovador audaz e inspirado, tivera esta intuição. Não obstante, com uma grandeza espiritual extraordinária, com grande humildade, condescende diante de um Arcebispo, Primaz das Gálias, dez anos mais jovem que ele e muito menos clarividente. Também neste momento crucial de sua vida identifica-se com Jesus Cristo, que, mesmo sendo Deus, aniquilou-Se tornando-Se Um entre tantos. E, como Ele, morrendo, renunciando à sua própria iniciativa, triunfa… Mantém-se firme no que considera essencial: sua Ordem é, em todos os sentidos, algo totalmente novo, diferente e, como o banquete do Evangelho, está aberta para todos.
A Ordem é aprovada definitivamente em 1618, estendendo-se rapidamente pela França, Sabóia, Itália… Quando Francisco morre, em 1622, já há 13 mosteiros. Em 1641, data do falecimento da Madre Chantal, 87. Os fundadores palpitam vivos, hoje, em cerca de 168 mosteiros espalhados pelos quatro continentes. A Visitação conserva o espírito recebido:
“Humildade para com Deus e grande doçura para com o próximo”
Mas uma doçura que é “virtude dos fortes”, dos “corações vigorosos que amam apaixonadamente”. Por isso, as Irmãs consagram “toda sua vida e exercícios para o bem da Igreja e a salvação do próximo mediante orações e bons exemplos”.
Filhas do Doutor do Amor e conscientes da missão que lhes foi confiada em Parayle-Monial, através de sua Irmã Santa Margarida Maria Alacoque: expandir a devoção ao Coração de Jesus –, as Visitandinas do mundo inteiro querem que cada um dos mosteiros seja um foco ardente, a partir do qual a caridade de Cristo se estenda aos corações de todos os homens.
Na Espanha, as religiosas da Visitação são mais conhecidas como Salesas, honrando assim o sobrenome do Fundador.
As Visitandinas não são as únicas herdeiras do espírito de São Francisco de Sales. Ao longo dos séculos foram surgindo na Igreja muitas famílias religiosas, associações de leigos ou de sacerdotes unidos por este modo peculiar de praticar o Evangelho: os Missionários, os Padres e Oblatos de São Francisco de Sales, a Sociedade de Dom Bosco ou Salesianos, as Filhas de Maria Auxiliadora, a Fraternidade da Visitação, o Insituto Secular São Francisco de Sales… A família salesiana é, na expressão de um dos seus mais insignes conhecedores, o dominicano Pe. Lajauni, a mais numerosa na Igreja atual.
Francisco se faz “tudo para todos”
Francisco de Sales, em todas e em cada uma das circunstâncias que se lhe apresentam em suas múltiplas atividades e relações, faz-se “tudo para todos”: sabe tratar com o Papa, com os reis e os poderosos, com os religiosos, com as mulheres, com os mais simples do povo.
É encantadora, por exemplo, sua relação com Martín, um surdo-mudo de 25 anos. Encontra-o abandonado. Recolhe-o e o educa com paciência e tato, conseguindo fazer dele uma pessoa útil que passa a viver em seu palácio e sobre o qual há um anedotário muito afetuoso. Isto valeu a São Francisco de Sales o título de Padroeiro dos Surdos-Mudos.
Tem um coração maternalmente paternal. Um dos seus criados chega bêbado à noite. Ele mesmo o retira da rua e o põe na cama com ternura. Este ato do Bispo, mais do que qualquer repreensão, leva o criado a emendar-se de seu vício.
Em outra ocasião, surpreende seu camareiro empenhado em escrever uma carta na qual pede a mão de uma viúva em casamento. O Bispo a lê e percebe que o assunto poderia ser colocado em melhores termos. Com simpatia lhe diz:
“Tu não entendes destas coisas”
Senta-se e ele mesmo redige outra, dizendo ao camareiro que a copie com sua letra. E o anima:
“Logo verá como tudo dará certo”
Dias depois a viúva vai aconselhar-se com Francisco, que abençoa com satisfação este matrimônio.
O distintivo de São Francisco de Sales é o amor e um amor que chega ao extremo: amar aos inimigos.
O Bispo de Genebra, mesmo sendo afável ante o Papa, ante o Duque de Nemours, e de Sabóia, levantam calúnias de toda a espécie, fazem zombarias de muito mau gosto. E ele retribui sempre o mal com o bem. Alcança os píncaros do amor.
“Se Deus quisesse que eu não amasse meus inimigos, isto seria muito difícil para mim”
Chega a tais extremos que o povo comenta “Se quereis receber algum benefício, injuriai nosso Bispo”. Mas Francisco não tem uma natureza insensível. Em face das injúrias, diz que “lhe ferve o sangue na cabeça”. Tem no entanto domínio de si, tem sempre a alma em suas mãos. Não quer perder em um minuto o controle que conseguiu conquistar com esforço, ao longo de muitos anos.
É conhecida a a expressão:
“Apanham-se mais moscas com uma colher de mel do que com cem barris de vinagre”
Ele sabe disso por experiência própria. Seu temperamento colérico foi-se transformando à força de uma constante luta consigo mesmo. A autópsia nos revelará o preço que esta luta lhe custou: sua bílis aparecerá endurecida, ressequida e dividida em trezentas pedrinhas. A única explicação que os médicos darão para este fenômeno: a violência que praticou consigo mesmo.
Vive totalmente esquecido de si, entregue aos outros. Dá seus pertences – até os candelabros de sua capela, e inclusive a própria camisa, a um pobre necessitado –, dá seu tempo, todos os seus talentos… dá-se a si mesmo. A morte o surpreende em plena doação.
Última viagem. Última missão.
Em outubro de 1622, embora se sinta enfermo e cansado, não recusa empreender uma longa e difícil viagem para cumprir um desejo do Duque de Sabóia, seu soberano. Todos procuram dissuadi-lo, vendo seu estado, mas ele responde:
“É preciso ir aonde Deus nos chama”
Ao sair de Annecy despede-se de todos com grande serenidade, consciente de que já não mais voltará com vida.
Em Avinhão, e mais tarde, Lião, recebem-no apoteoticamente:
“O Santo Bispo de Genebra, o fundador da Visitação, o autor da Introdução à Vida Devota e do Tratado do Amor de Deus…!”
Ele, que tem tão baixo conceito de si mesmo, sente-se tentado a fazer algo que o rebaixe aos olhos de todos, como já havia feito uma vez em Paris, ante a expectativa e a curiosidade que sua presença despertara.
Entretanto, fiel ao seu costume, não se nega a ninguém. Atende a todos os que buscam seus conselhos e sua ajuda. Somente vai às festas da Corte quando sua presença é presença indispensável. Prefere ficar alojado na pobre casa do jardineiro da Visitação e justifica a escolha dizendo a escolha dizendo que gosta de ficar perto de suas filhas. Acorre a ele tão grande número de pessoas que de manhã à noite tem todas as horas tomadas. Havia sonhado em terminar seus dias como ermitão e vai extinguir-se no meio da Corte, esgotado pelas obrigações do mundo.
Quando lhe resta um momento livre, dirige-se ao locutório da Visitação. Acontece ali o seu último encontro com a Madre Chantal. Há três anos que não se viam. Durante mais de quatro horas tratam de diversos da Ordem, adiando para um “mais tarde”, que ele sabe não chegará, suas confidências pessoais.
Outras vezes fala com todas as Irmãs, dando-lhes seus últimos conselhos. No dia 26 de dezembro deixa-lhes como testamento uma regra de ouro:
“Não peçais nada. Não recuseis nada. Nestas palavras se encerra tudo”
É nesta ocasião que acontece outra das cenas amáveis e ternas de sua vida: as monjas o advertem que a porta está aberta e que o frio lhe fará mal. Francisco se levanta para fechá-la, mas volta sem fazê-lo. Ante a estranheza que causa sua atitude, ele esclarece:
“Há um grupo de crianças que me olham com tanto gosto que não tive coragem de fechar-lhes a porta em pleno rosto”
Celebra seu último Natal como quem já não está na terra. Entrega-se ao extremo. Na manhã do dia 27 de dezembro, apesar de estar muito mal, continua recebendo visitas e respondendo cartas.
É surpreendido por uma apoplexia. Os médicos aplicam-lhe remédios dolorosíssimos, pontas de fogo na cabeça (que lhe arrancam a pele), com a intenção de reanimá-lo. Conseguem apenas submetê-lo a um autêntico martírio. E Francisco deixa que façam tudo, sem um lamento, uma queixa. Santo na saúde, santo na enfermidade.
No dia 28, festa dos Santos Inocentes, ao entardecer, morre extenuado de tanto amar e servir a Deus, à sua Igreja, ao seu povo… Tem 55 anos de idade e 20 de episcopado. Deixa após si um modelo para todos. Oferece-nos, em sua doutrina e em sua vida, a riqueza de uma “mística pascal” que nos ensina a passar, como Jesus, deste mundo para o Pai, fazendo o bem, indo a Deus ao ritmo do Amor.
O Papa Alexandre VII reconhece oficialmente a santidade de Francisco de Sales e o canoniza a 19 de abril de 1665. Pio IX o declara Doutor da Igreja em 1877.
O Pe. Ravier, um dos seus grandes biógrafos atuais, olhando um retrato de Francisco de Sales, pintado em 1606 por Martellange, comenta:
“Que contrastes neste formoso rosto! Bondade e força, paz e certa melancolia, ternura e reserva, olhos penetrantes mas não indiscretos, sorriso grave, com certa picardia…”
Em São Francisco de Sales tudo está em harmonia, uma harmonia que vem do interior, da alma que se esconde atrás deste rosto. Uma alma que não ama senão Deus e todas as almas por Deus.
Antes de ser Doutor do Amor foi um coração que viveu de Amor, para o Amor, pelo Amor…
Mas são os santos aqueles que melhor são capazes de definir os outros santos. Seus encontros na terra são sempre inefáveis. São Vicente de Paulo conheceu o Bispo de Genebra em Paris, em 1618. Teve início, então, uma amizade que deixou uma marca profunda no “Pai dos pobres”, imprimindo-lhe a bondade e a mansidão, que depois o caracterizariam. São muitos os testemunhos acerca de Francisco de Sales. Em seu processo de canonização declara:
“… tinha o desejo ardente de ser um retrato do Filho de Deus. Conformou-se tão bem a Este Modelo que muitas vezes me perguntei com assombro como uma simples criatura podia chegar a um grau de perfeição tão elevado, dada a fragilidade humana… Seu fervor brilhava tanto nos discursos públicos quanto nas conversações familiares… Quando repassava suas palavras no meu íntimo, sentia-me impelido a ver nele o homem que melhor reproduziu os traços do Filho de Deus quando vivia na terra”
(Resumo biográfico baseado em várias obras de V. Viguera, SDB, A. Ravier, SJ, M. H. Coüannier, R. Devos, A. Hamon e outros pelo Primeiro Mosteiro da Visitação de Madrid – Espanha. © EDIBESA, 1997 – Obra concedida pela leitora Camila do Vale)