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Do terceiro fruto da segunda palavra

Capítulo VII. Do terceiro fruto da segunda palavra
Um terceiro fruto se poderá colher da mesma palavra do Senhor, advertindo-se, que três foram os Crucificados, no mesmo lugar e na mesma hora; um inocente, Cristo, outro penitente, o bom ladrão; o terceiro obstinado, o mau ladrão: ou, se antes quiserem assim, que foram três os crucificados ao mesmo tempo; Cristo, sempre e excelentemente santo; um ladrão, sempre e excessivamente mau; outro ladrão mau numa época da sua vida, e santo na outra. Disto podemos entender, que não há neste Mundo ninguém, que possa viver sem cruz; e que baldados são os esforços dos que confiam, que podem absolutamente escapar-se a ela; e, que sensatos são os que aceitam a sua cruz da mão do Senhor, e, que até o fim da vida a levam não só com paciência, mas até com gosto. Que todos os bons tem a sua cruz, se entende das palavras do Senhor: “Se alguém quer viver após de mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (Mt 16); e em outra passagem: “O que não leva a sua cruz, e vem em meu seguimento, não pode ser meu discípulo” (Lc 14). Isto mesmo claramente, o diz o Apóstolo: “Todos os que querem viver piamente em Jesus Cristo, padecerão perseguição” (2Tm 3), com o qual concordam os Santos Padres, gregos e latinos, dos quais por brevidade só citarei dois, Santo Agostinho no comentário dos salmos (1) diz:

“Esta vida de curta duração é tribulação: se não é tribulação não é peregrinação: se, porém é peregrinação, ou pouco amas a pátria, ou sem dúvida te vês em tribulação”

E em outra parte (2):

“Se julgas que ainda não sofres tribulações, ainda não começaste a ser cristão”

São João Crisóstomo numa homilia aos Antioquenos (3) exprime-se assim:

“A tribulação é laço indissolúvel da vida do cristão”

O mesmo Doutor (4) diz:

“Não podes dizer, que seja justo, quem viver sem tribulação”

Finalmente a razão prova isto mesmo de modo, que não deixa dúvida: coisa de natureza contraria não podem existir juntas. O fogo e a água, enquanto estão separados, estão em sossego: quando se juntam no mesmo ponto, começa logo a água a lançar fumo, agitar-se, a fazer ruído até que ou se consome, ou o fogo se apaga. Contra um mal há um bem, diz o Eclesiástico (33), e contra a morte a vida. Assim também contra o justo há o pecador. Os justos são semelhantes ao fogo; brilham, ardem, tendem para o alto, estão sempre em ação, e tudo quanto fazem, é sempre com eficácia. Os injustos, pelo contrário, são semelhantes á água, frios, arrastados, e fazendo lodo em toda a parte. Que admira, pois, que todos os bons sejam perseguidos pelos maus? Até o fim do Mundo há de estar o joio misturado com o trigo no mesmo campo, a palha e o grão na mesma eira, os bons peixes e os que não prestam, na mesma rede; isto é, os bons e os maus não só no mesmo Mundo, mas até na mesma igreja; por isso não podem os bons e santos deixar de sofrer tribulações dos maus e perversos. Mas nem mesmo os maus vivem neste Mundo sem cruz, porque, ainda que não sofram perseguição dos bons, sofrem-na de outros como eles, sofrem-na dos próprios vícios, sofrem-na dos remorsos.

Mesmo Salomão, sapientíssimo, e que foi reputado o mais feliz dos homens, não pode deixar de confessar, que também tinha sua cruz, dizendo: “Em tudo achei vaidade e aflição de espírito”, e pouco mais abaixo:

“E aborreceu-me a vida, ao ver, que debaixo do Sol tudo são infortúnios, tudo vaidades e magoas” (Ecl 2)

E o Eclesiástico, homem também de muito saber, apresenta a seguinte máxima geral (Eclo 40, 1):

“Grandes trabalhos foram criados para todos os homens, e pesado é o jugo, que oprime os filhos de Adão”

Santo Agostinho, sobre os salmos (5) diz:

“De todas as tribulações não há nenhuma maior que o remorso”

São João Crisóstomo, na homilia de Lázaro (6), diz largamente, que os maus não podem passar sem a sua cruz; pois, se é pobre, a pobreza lhe é cruz; se não é pobre é ambicioso, o que é ainda maior cruz; se está doente de cama, está na cruz; se não está doente, é acometido da ira, que também é cruz. São Cipriano demonstra mesmo do nascer do homem, que ele nasce para a cruz e tribulação, e que naturalmente o prognostica com o seu choro.

“Cada um de nós, quando nasce, diz ele (7), e é recebido na hospedaria deste Mundo, começa a sua vida com lágrimas e, não obstante ser então de uma ignorância absoluta, já no ato do seu nascimento sabe chorar; por natural providência lamenta as aflições e os trabalhos; e logo, ao começar da existência protesta, chorando e gemendo, contra os trabalhos do Mundo, em que entra”

Em vista disto ninguém pode duvidar de que todos, bons e maus, têm a sua cruz.

Resta-nos provar, que a dos primeiros é de pequena duração, pouco pesada, e frutífera; e que, pelo contrário, a dos maus é de grande duração, muito pesada, e estéril.

Que a cruz dos bons é de pequena duração, não admite dúvida; não pode prolongar-se além da vida neste Mundo, pois, quando os justos estão para morrer, já o espírito lhes está dizendo, que vão descansar dos seus trabalhos, e que Deus lhes vai enxugar as suas lágrimas (Ap 14; 21). Que esta vida é curtíssima apesar de parecer dilatada, enquanto vai correndo, claramente o diz a divina Escritura:

“Curtos são os dias do homem: O homem nascido da mulher, vivendo pouco tempo, e que é a nossa vida? Um vapor de pequena duração, e que logo desaparece” (Jó 14)

O Apóstolo não obstante ter tido cruz pesadíssima, e por muito tempo, pois foi desde a adolescência até a velhice, diz na Epístola aos Coríntios — “Esta tribulação, momentânea e ligeira, produz em nós de um modo todo maravilhoso no mais alto grau um peso eterno de glória” (2Cor 4): onde compara a um momento indivisível mais de trinta anos de tribulação, que ele chama leve, tendo passado fome, sede, nudez, bofetadas, contínuas perseguições, tendo sido três vezes varado pelos Romanos, cinco vezes flagelado pelos Judeus, apedrejado uma vez, e ter três vezes naufragado; tendo-se finalmente visto em muitos trabalhos, muitas vezes encarcerado, excessivamente espancado, e freqüentes vezes às portas da morte (1Cor 4; 2Cor 11). Que tribulações haverá então que possam dizer-se pesadas, se estas com verdades se chamam, e são leves? E que se me dirá, se eu acrescentar, que a cruz dos justos não só é leve, mas até agradável e aprazível pelo superabundante conforto do Espírito Santo? O mesmo Cristo declara a respeito do Seu jugo, que também se pode chamar cruz:

“O meu jugo é suave, e o meu peso leve” (Mt 11)

E em outra parte:

“Chorareis e gemereis, e o mundo se há de alegrar; haveis de estar tristes, porém a vossa tristeza se há de converter em gozo” (Jo 16)

E o Apóstolo:

“Cheio estou de consolação, exubero de gozo em toda a nossa tribulação” (2Cor 7)

Finalmente, que a cruz dos justos não só é pequena e leve, mas até frutífera, proveitosíssima em deliciosíssimos frutos, não pode negar-se; pois Nosso Senhor clarissimamente o diz em São Mateus:

“Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor de justiça; porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5)

E o Apostolo, na sua Epístola aos Romanos, clama:

“As penalidades da presente vida não tem proporção alguma com a glória vindoura, que se manifestará em nós” (Rm 8)

E com ele concorda o seu co-Apóstolo Pedro:

“Folgai de serdes participantes das penalidades de Cristo, para que folgueis também com júbilo na aparição da sua glória” (1Pd 4)

Ora, que a cruz dos maus é grandíssima, mortificantíssima, e sem proveito nem utilidade nenhuma muito facilmente se prova. A cruz do mau ladrão com certeza não acabou com esta vida, como a do bom, mas ainda hoje dura no inferno, e durará por toda a eternidade. O verme dos ímpios não morrerá no inferno, nem se apagará o fogo que os devora (Is 66): A cruz do Rico avarento, isto é, a sede de amontoar riquezas, que o Senhor proprissimamente comparou com os espinhos, que não podem tocar-se, nem ter-se na mão, sem magoarem (Lc 16; Mt 13), não terminou com a morte, como a do mendigo Lázaro; mas, acompanhando-o ao Inferno, com ele dura eternamente, atormentando-o, e obrigando-o a dizer:

“Quem me dera uma gota d’água, para refrigerar a minha língua neste fogo, que me abrasa!”

Assim, a cruz dos maus não há de ter acabamento; e o peso e mortificação, que ela causa neste Mundo, certificam-no as vozes daqueles, em cujas bocas o livro da Sapiência põem estes queixumes:

“Cansamo-nos no caminho da iniquidade e da perdição, e andamos maus caminhos” (Sb 5)

Pois então? Não são maus caminhos a ambição, a avareza, a luxúria? Não são maus caminhos as conseqüências, que nascem destes vícios, as traições, as injúrias, as difamações, os ferimentos, os homicídios? São sem dúvida estes vícios e os seus resultados, que não raras vezes levam o homem a suicidar-se desesperado, e a fazer cair sobre seus ombros uma cruz mais pesada, pretendendo livrar-se de uma, que já o oprimia. Qual é, porém a utilidade da cruz dos maus? Que vantagem tiram eles dela? Nenhuma certamente: porque nem os espinhos produzem uvas, nem figos os abrolhos. O jugo do Senhor produz a tranqüilidade, Ele mesmo o diz:

“Tomai sobre vós meu jugo, e achareis descanso para vossas almas” (Mt 11)

Que pode produzir senão cuidados e aflições o jugo do Diabo, que é contrário ao jugo de Cristo? De todas as provas a de mais peso é que a Cruz de Cristo é degrau para se subir à eterna felicidade.

“Convém, que Cristo sofra, e assim entre na Sua glória” (Lc 14)

Eque a cruz do Diabo é grau para descer aos eternos suplícios, pois no dia do Juízo dirá o Senhor:

“Ide para o fogo eterno, que está preparado para o Diabo e para os seus anjos” (Mt 25)

Por isso, os que são sensatos, não busquem descer da sua cruz, se nela estão crucificados com Cristo: não façam, como loucamente fez o mau ladrão, mas antes, seguindo o exemplo do bom, gostosamente se apeguem ao lado de Cristo, e peçam a Deus paciência, para poderem suportá-la, e não que Ele dela os livre; pois, sofrendo juntamente com Cristo, com Ele também terão parte na Sua glória, como diz o Apóstolo:

“Se com Ele padecemos, com Ele seremos glorificados” (Rm 8)

Os que estão sendo vítimas da cruz do Diabo, se não querem ser néscios, tratem de trocá-la sem perda de tempo: deixem, se não são cegos de todo, cinco cangas de bois pelo jugo de Cristo (Lc 24). As cinco cangas de bois nada mais parece significar do que os trabalhos e penas a que os homens se sujeitam, tornando-se escravos dos cinco sentidos corporais e trocam-se por um jugo, suave e leve, de Cristo, as cinco cangas de bois, empregando o homem os trabalhos que sofria, pecando em exercícios de penitência, ajudado de Deus. Feliz a alma, que sabe mortificar os vícios e a concupiscência da sua carne, e, que se acostuma a exercer a caridade, fazendo esmolas com o dinheiro que gastava em satisfazer os seus apetites, e, que emprega as horas, que, escravizado da incomodantíssima ambição, perdia em acompanhar e visitar os grandes do Mundo, na oração, ou na leitura devota, forcejando por ganhar a graça de Deus e dos Príncipes da corte do Céu; pois assim se troca a Cruz do mau ladrão pela cruz de Cristo, isto é, a cruz pesada e estéril pela cruz leve e frutífera. Avisado é sem dúvida o modo por que um soldado honrado se dirigia a um seu camarada, falando-lhe a respeito da troca da cruz; e se lê em Santo Agostinho (8):

“Não me dirá, onde nós pretendemos chegar à custa de todos estes nossos trabalhos? Que nos ambicionamos? Porque motivo militamos? Que maior esperança pode ter no Palácio além de sermos amigos do Imperador? E a que acidentes e perigos não andam expostos os cortesões? E porque perigos se não caminha para um perigo maior? E suponhamos mesmo, que chegamos a ser áulicos; quando o chegaremos a ser? Ora, se eu quiser ser amigo de Deus, sou-o desde este instante”

Assim discorria quem prudentissimamente julgou que muito mais útil era, sem comparação, trocar trabalhos pesadíssimos, e por muito tempo, e muitas vezes sem resultado nenhum, para conseguir a graça do Imperador, pelos mais suaves, menos duradouros, e sem dúvida mais proveitosos para alcançar a amizade de Deus. Foram o que fizeram aqueles felizes soldados, pois deixando a milícia do século, dedicaram-se ao serviço de Deus; e duplicou-lhes o seu contentamento a resolução das suas desposadas, que mui gostosamente depois de saberem a deliberação, que eles tomaram, consagraram a Deus a sua virgindade.


Referências:

(1) Ad. Psalm. 137
(2) Ad. Psalm. 11
(3) Hom. 67 ad pop.
(4) Hom. 29 in epist. ad . Hebr.
(5) In Psalm. 45
(6) Hom. 3
(7) Serm. de patientia
(8) Lib. 8. Confess. c. 6

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 81-93)