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Do terceiro fruto da terceira palavra

Capítulo 11: Do terceiro fruto da terceira palavra
Em terceiro lugar aprendemos da cadeira da Cruz, e das palavras por Cristo dirigidas a sua Mãe e ao discípulo, quais são as obrigações dos bons pais para com seus filhos, e os deveres dos bons filhos para com seus pais. Comecemos por aquelas.

Devem os bons pais amar seus filhos; de modo, porém, que este amor não se oponha ao amor de Deus: e é por isto, que o Senhor diz no Evangelho:

“Quem ama seu filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10)

Isto cumpriu com todo o rigor possível a Bem-aventurada Virgem; pois estava junto da Cruz, sofrendo a maior dor com a maior constância. Aquela dor era a prova do sumo amor a seu Filho, pendente da Cruz; aquela constância asseverava a sua muito submissa obediência a Deus: doía-se de que seu Filho inocente, que afetuosissimamente amava, fosse atormentado de cruelíssimas dores; mas nem por isso a elas obstaria por palavras ou por obras, ainda que pudesse, porque sabia que Ele padecia aqueles martírios por determinação e presciência de Deus Pai (At 2). O amor é a medida da dor; por isso Maria sofria muito, vendo seu Filho em tamanhos tormentos, porque O amava muito. E como não amaria extremosamente seu Filho a Virgem Mãe, sabendo como ninguém sabia que aquele Filho se avantajava em todos os predicados a todos os filhos dos homens, e que lhe pertencia mais do que a suas mães pertencem quaisquer outros filhos? Por dois motivos amam as mulheres seus filhos, por os terem gerado; e por eles sobressaírem em merecimento por alguma excelente qualidade; pois não sendo assim, não faltam mães que ou pouco amor tenham a seus filhos, e que até os aborreçam, ou por serem muito feios, ou por serem maus, desobedientes e ingratos a seus pais.

Por ambos aqueles motivos a Virgem Mãe amava seu Filho mais do que nenhuma outra mãe; primeiramente porque as outras mulheres não geram os seus filhos, sem cooperação de marido, a Virgem Bem-aventurada na geração do seu, não teve cooperador; pois Virgem gerou, e Virgem pariu; e assim como Cristo Senhor na geração divina teve Pai sem ter Mãe, do mesmo modo na geração humana, teve Mãe sem ter Pai, e, ainda que com verdade se diga, que Cristo foi concebido do Espírito Santo, com tudo o Esprito Santo não é Paí de Cristo, mas o formador do corpo de Cristo; nem o Espírito Santo formou da Sua própria substância o corpo de Cristo; o que propriamente pertence ao pai; mas formou-O das puríssimas entranhas da mesma Virgem. Em verdade, pois, a Virgem Santíssima só de por si, e sem cooperação do pai, gerou seu Filho, e por isso mesmo ela podia reclamá-lO, porque só a ela pertencia; e assim mais O amava, do que outra alguma mãe amou seus filhos. Quanto ao outro motivo, o Filho da nossa Virgem não só foi, e é o mais formoso, que todos os filhos dos homens (Sl 44); mas até se avantaja em todos os predicados aos homens e aos Anjos; e assim a Virgem Bem-aventurada, que amou seu Filho, como nenhuma outra mãe ama os seus, também sentiu mais que todos os seus sofrimentos e morte, e é isto tão verdade, que São Bernardo num sermão (1) não dúvida afirmar, que a angústia da Bem-aventurada Virgem na paixão de seu Filho, se pode chamar martírio do coração, segundo o que Simeão tinha profetizado: “E a tua mesma alma será traspassada de uma espada de dor” (Lc 2), e, porque o martírio do espírito parece ser mais doloroso do que o do corpo, Santo Anselmo no seu livro das excelências da Virgem (2) diz, que a sua pena fôra mais atormentadora do que de qualquer martírio corporal. Nosso Senhor, quando orava no horto de Getsêmani, sofria sem dúvida o tormento do espírito, meditando atentamente em todas as dores e martírios, que havia de sofrer no dia seguinte, e, largando de certo modo as rédeas à tristeza e ao pavor, em tal aflição se viu, que de todo o corpo derramou suor de sangue; coisa, que não se lê que lhe acontecesse nos tormentos de que Seu corpo foi vítima. Assim a Virgem Santíssima sofreu indubitavelmente daquela espada de dor, que lhe traspassou a alma, uma dor intensíssima e acerbíssimo tormento; e, não obstante, porque preferia a honra e glória de Deus aos martírios de seu Filho, estava junto da Cruz, cheia de resignação e tranquila, vendo-O nas torturas do patíbulo.

Não caiu desfalecida, e quase morta, como alguns imaginam; não arrancou o cabelo; não fez o pranto que as mulheres costumam fazer, mas suportou com a firmeza com que devia a execução dos decretos de Deus. Amava muito seu Filho; mas aquele amor era subordinado à honra do Pai e à salvação do Mundo: e estas duas circunstâncias eram também de mais peso para o Filho, do que os tormentos que tinha de sofrer. Além disto a fé, em que a Virgem nunca vacilou, de que seu Filho havia de ressuscitar no terceiro dia, dava força à sua grande constância, para não precisar de consolação de ninguém: pois sabia, que a morte de seu Filho havia de ser como um sono curtíssimo, segundo dissera o profeta:

“Adormeci e dormi; e acordei, porque o Senhor foi comigo” (Sl 3)

A exemplo da Virgem deviam imitá-la todos os fiéis, para amarem seus filhos, sem preferirem o amor que lhes tenham, ao amor de Deus, que é Pai de todos, e que os ama muito mais e melhor, do que nós sabemos amá-los. Os cristãos devem amar seus filhos com amor discreto e prudente, não sendo indulgentes com eles, quando eles faltam aos seus deveres: mas educando-os no temor de Deus, repreendendo-os, e castigando-os, quando o ofenderem, ou não cumprirem as suas obrigações literárias. É está a vontade de Deus, a qual Ele declarou nas Santas Escrituras, pois diz o Eclesiástico:

“Educa teus filhos, e faze-os dóceis desde tenra idade” (Ecl 7)

E de Tobias se lê, que educou seu filho desde a infância no temor de Deus e na abstenção de todo o pecado (Tb 1); e o Apóstolo (Col 3) exorta os pais, a não provocarem seus filhos à indignação, para se não tornarem pusilânimes, recomendando-lhes, que os, eduquem em disciplina e correção do Senhor, isto é, que tratem como filhos, e não como escravos.

Os pais que são demasiadamente austeros com seus filhos, e que os estão sempre repreendendo e castigando por qualquer falta, mesmo das mais desculpáveis, tratam-nos como escravos, e não como filhos, e fazem que eles se tornem tímidos e lhes fujam. Os excessivamente indulgentes tornam os filhos viciosos, e criam nos não para o Reino do Céu, mas sim para o fogo do inferno.

A boa educação dos filhos consiste em instruí-los a respeito da obediência que eles devem a seus pais e mestres, e em castigá-los paternalmente, quando eles delinquirem, para que conheçam que seus pais os castigam por amizade, e não por cólera. Se Deus der a algum a vocação de se ordenar, ou de ser frade, não lhe impeça o pai esta vocação para que não pareça que quer contrariar à vontade de Deus, que é pai mais respeitável; mas diga com o Santo Jó:

“O Senhor o deu, o Senhor o levou, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1)

Finalmente se morte prematura levar os filhos, como aconteceu principalmente a Bem-aventuradíssima Virgem, considere seus pais nos juízos de Deus, que muitas vezes chama para si alguns, para que a malícia lhes não perverta o seu bom natural e para livrá-los da eterna condenação (Sb 4). Certamente se os pais algumas vezes soubessem o fim com que Deus assim faz, não só não chorariam, mas teriam muito contentamento, e se a fé na ressurreição velasse tanto em nós, como na Santíssima Virgem, não teríamos mais sentimento por alguém, cujo dias terminem antes da velhice, do que temos por quem comece a dormir antes de anoitecer, pois a morte do fiel é um sono, como diz o Apóstolo na sua primeira epístola aos de Tessalonicense:

“Não queremos irmãos, que vós ignoreis coisa alguma a cerca dos que dormem, para que vos não entristeçais como os outros que não tem esperança” (1Ts 4)

Menciona primeiramente a esperança, do que a fé, porque não se refere a qualquer ressurreição, mas sim a feliz e gloriosa, que é a vida eterna, como foi à ressurreição de Cristo: pois, quem firmemente crê na ressurreição da carne, e tem a esperança de que seu filho, arrebatado por morte prematura, há de ressuscitar gloriosamente, não tem motivo nenhum para se, entristecer, mas sim para se alegrar, pela certeza que tem da sua salvação.

Vou agora tratar dos deveres dos filhos para com seus pais; deveres, que Cristo cumpriu sobejamente. Tem os filhos obrigação de retribuírem a seus pais, como ensina o Apóstolo (2Tm 5), e cumprem-na, se subministrarem o necessário a seus pais já velhos, assim como seus pais lhes fizeram, quando eles, ainda pequenos, não podiam granjear nem alimento nem vestido. Por isso, Cristo vendo que sua Mãe ia entrando na idade, e que não tinha ninguém que depois dele morrer, cuidasse dela, encarregou-a a São João, para tratá-la como Mãe, dizendo à Virgem: Eis aí o teu filho, e ao Discípulo: Eis aí tua Mãe. Cumpriu o Senhor perfeitamente para com sua Mãe as obrigações de filho por muitos modos: primeiramente nomeando, para ficar em lugar do filho de sua Mãe, São João, que era da mesma idade de Cristo, ou antes, mais novo um ano, e por este motivo, em muito boas condições para amparar a Mãe do Senhor; em segundo lugar designando dentre os seus doze discípulos, aquele que mais amava (Jo 13), e de quem sabia que era correspondido; podendo assim confiar, que ele desempenharia com pontualidade e desvelo o encargo de cuidar de Sua mãe, além disto nomeou aquele que sabia que havia de chegar à idade muito avançada, e que por isto lhe havia de sobreviver. Finalmente não deixou Cristo de cumprir os Seus deveres para com sua Mãe, posto que fosse obrigado a fazê-lo em ocasião tão pouco própria, porque estava sofrendo tais dores em todo o corpo, e recebendo tais injúrias dos Seus inimigos, e quase esgotando o amargosíssimo cálice da morte, que parecia que não poderia prestar atenção a mais nada, apesar, porém de tudo isto, o amor a sua Mãe foi superior, e não se importando de Si, só tratou de lhe procurar consolação e arrimo; e não se enganou na confiança, que pôs na boa vontade e desvelo de São João, pois desde àquela hora ele se encarregou da Virgem como de pessoa que lhe pertencesse (Jo 19).

O cuidado que Cristo teve de sua Mãe, com maior razão o devem ter de seus pais os outros filhos; porque Cristo não lhe devia tanto como os outros homens devem aos seus progenitores. Os outros lhes devem tantas obrigações, que nunca lhas podem pagar; pois lhes devem a vida, que não pode ser recompensada.

“Lembra-te, diz o Eclesiástico, de que, se não fossem eles nunca virias ao Mundo” (Ecl 7)

Cristo e só Cristo, é excetuado desta regra, pois da Virgem, sua Mãe, recebeu uma vida, a humana; mas deu-lhe três vidas; a humana, quando a criou com o Pai e Espírito Santo; a da graça quando antecipando-a nas bênçãos de doçura, a criou, santificando-a, e a santificou, criando-a; a vida da glória, quando a criou para a glória eterna, e exaltou sobre os coros dos Anjos. Pelo que, se Cristo, que a sua Bem-aventurada Mãe deu mais do que a vida, que dela recebeu, nascendo; quis cumprir a lei, retribuindo-lhe como filho; quanto maior não é a obrigação que os outros homens têm de retribuírem a seus pais? A isto acresce, que, ainda que nós, honrando os nossos pais, nada mais fazemos do que cumprir uma obrigação; contudo a benignidade de Deus nos promete prêmio, dizendo-nos na Lei:

“Honra teus pais, para viver largo tempo sobre a terra” (Ex 20)

E pelo Eclesiástico o Espírito Santo acrescentou:

“Quem honrar seus pais, ter alegria em seus filhos, e será ouvido no dia da sua oração” (Ecl 3)

Nem somente Deus prometeu prêmio aos filhos que honrarem seus pais, também impôs pena a quem assim não fizer; pois diz o Senhor:

“Deus diz — O que desatender seu pai, ou sua mãe, morra irremissivelmente” (Mt 15)

E o Eclesiástico acrescenta:

“O que fizer irar sua mãe, seja maldito de Deus” (Ecl 3)

Disto aprendemos que a maldição dos pais tem uma grande força, porque Deus a confirma.

Não poucos são os exemplos que a história nos apresenta em prova do que digo, e um bem notável conta Santo Agostinho nos Livros da Cidade de Deus. Em suma é assim: em Cesárea da Capadócia dez filhos, sete machos e três fêmeas, amaldiçoados por sua mãe, foram imediatamente castigados por Deus com um tremor horrível de todos os membros; e, não podendo suportar as vistas de seus concidadãos, por se verem neste terribilíssimo estado, andavam vagabundeando por quase todo o orbe Romano, cada um por onde lhe parecia, dois deles foram finalmente curados na presença de Santo Agostinho pelas relíquias de Santo Estêvão, Protomártir (3).


Referências:

(1) Serm. in illud., Signum magnum
(2) Cap. 15
(3) Liv. 21, cap. 8

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 107-119)