Skip to content Skip to footer

Necessidade da Penitência

3º Domingo do Advento - I. Necessidade da Penitência

I. Sermão para o 3º Domingo do Advento

Pregado na capela real de Saint-Germain-en-Laye, em 1669.

SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET

Os pecadores adormecem, porque imaginam estar muito longínquo o seu infortúnio, mas Jesus Cristo prova que está disposto a ferir dois golpes: um tira a vida, o outro a esperança.

O pecado sai da vontade humana contra a vontade divina. Duplamente contrário: a Deus, porque é ofensivo, ao homem, porque é prejudicial.

Porque é prejudicial? Inimigos impotentes provam a sua inimizade: Deo resistendi voluntate, non potestate Iaedendi (S. Agost., De Civit Dei, liv. XII, cap. III). O pecado não caiu em Deus, a quem ataca; deixa todo o seu veneno em quem o comete. Comparação com a terra e as nuvens: Arcus eorum confringatur (Sl 36, 15). A empresa contra Deus é inútil. Gladius eorum intret in corda ipsorum (Ibid.); ele próprio se manifesta…

O pecado é o próprio indivíduo: Ne putemus illam tranquillitatem et ineffabile lumen Dei de se proferre unde peccata punientur (S. Agost., Enar. in Psal., V. I, n. 16). Provas pela Escritura (Ez 7).

A separação, a pena do sentimento. A primeira, pelo pecado; a segunda, perducam ignem de medio tui qui comedat te (Ez 28, 18).

Os pecadores insensatos na sua certeza, tendo neles o principiam desse fogo.

Contrariedade entre a lei e o pecador. Moisés e as Tábuas.

Acerca da lei de justiça: Quod faceris patieris. Vós destruís a lei; a lei aufert eam de hominum vita (S. Agost., Epist., C. II, n. 24); a justiça divina sempre armada contra o pecador. Jam enim securis.

Jam enim securis ad radicem arborum posita est: omnis ego arbor non faciens fructum bonum, excidetur et in ignem mittetur.
O machado já chegou à raiz da árvore; portanto, toda a árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo (Lc 3, 9).

Por maior que seja o esforço que empreguemos todos os dias para dar a conhecer aos pecadores o estado funesto da sua consciência, não nos é possível comovê-los, nem pela vista do mal presente que eles fazem a si próprios, nem pela terrível aproximação do juízo futuro com que Deus os ameaça. O mal presente do pecado não os comove, porque não lhes impressiona os sentidos, a que eles entregam toda a norma das suas ações. E, se para os acordar daquele sono letárgico, lhes fizermos ressoar aos ouvidos essa trombeta temerosa do juízo final que os há de lançar em penas tão sensíveis e tão cruciantes, eles não se rendem a esta ameaça, por não ser de efeito imediato, e respondem:

«Essa visão do profeta Ezequiel não se há de efetuar tão depressa» – In dies multos et in tempora longa iste prophetat (Ez 12, 27)

Deste modo, a sua malícia obstinada resiste às mais instantes considerações que lhes possamos alegar; e nada é capaz de os comover, porque o mal do pecado, que é tão evidente, não é sensível; e, pelo contrário, o mal do inferno, que é tão sensível, não é evidente. É por isso que a bondade divina, que não quer a morte do pecador, mas que deseja que ele se converta e que viva, para amedrontar essas consciências infelizmente intrépidas, faz elevar hoje do fundo do deserto uma voz que comove o próprio deserto: Vox Domini concutientis desertum, et commovebit Dominus desertum Cades (Sl 27, 8). É a voz de São João Batista que, não satisfeito de ameaçar os pecadores «com a cólera futura», a ventura ira, e sabendo que o que não se realiza imediatamente não os impressiona, mostra-lhes nas palavras do meu texto a mão de Deus já apoiada sobre eles e declara-lhes nitidamente a sua vingança provada: Jam enim securis ad radicem arborum posita est. Mas, irmãos meus, como essa voz do grande precursor em vão há de ressoar nos ouvidos, se o Espírito Santo não falar nas consciências, roguemos à Virgem de Deus que nos obtenha a graça de nos comovermos com a palavra de João Batista, assim como o próprio João Batista se comoveu nas entranhas de sua mãe com a palavra dessa Virgem, quando ela foi visitar Santa Isabel, e lhe comunicou nessa visita (Var.: E lhe deu, por meio dessa visita) uma parte da graça que ela havia recebido com plenitude por meio das palavras do anjo que nós vamos rezar: Ave-Maria.

Chamemos à corte o Pregador do deserto, e apresentemos hoje um São João Batista com toda a sua austeridade. A corte não é desconhecida para esse ilustre eremita; e se ele não se dedignou de pregar outrora na corte de Herodes, da melhor vontade pregará numa corte cristã e religiosa, que necessita contudo das suas exortações e da sua autoridade para se comover. Aparecei, pois, divino Precursor, falai com esse vigor mais que profético, e fazei tremer os pecadores soberbos sob esse terrível machado que já descarregou o seu golpe, não nos ramos, mas no tronco e na raiz da árvore, isto é, na própria origem da vida: Jam enim securis ad radicem arborum posita est.

Para compreendermos exatamente as palavras desse grande profeta, permiti, senhores, que observemos que ele não nos representa apenas uma mão armada contra nós, nem um braço erguido para nos ferir; o golpe, como vedes, já foi dado, visto que ele diz que o machado já chegou à raiz. Mas, sabendo que o gume tinha já penetrado fundo, São João, todavia, ameaça-nos ainda com um segundo golpe que há de seguir-se imediatamente ao primeiro para derrubar por completo a árvore infrutífera; e depois disso só resta lançá-la às chamas: Omnis ergo arbor non faciens fructum bonum, excidetur et in ignem mittetur (Lc 3, 9).

Com efeito, é certo que antes da justiça divina descarregar sobre as nossas cabeças criminosas o último golpe da Sua vingança, já nós nos sentimos feridos pelo próprio pecado. E já o pecado produziu uma chaga profunda que nos tem penetrado até ao coração de tal forma, que temos a recear dois golpes infinitamente perigosos: o primeiro, da nossa própria mão pelo crime que praticamos; o segundo, da mão de Deus pela Sua vingança pura; e estes dois golpes resultam necessariamente da própria natureza do pecado. E para que a verdade seja explicada por princípios, sou obrigado, senhores, a estabelecer antes de mais nada uma doutrina que extrai de Santo Agostinho, a qual se há de tornar mais clara na continuação deste discurso: é que se pode considerar o pecado de duas maneiras diferentes e com duas relações diversas; em primeiro lugar, com relação à vontade humana, em segundo lugar, com relação à vontade divina. Ele é o miserável produto da vontade humana, e insolentemente se submete a ela contra as ordens sagradas e invioláveis da vontade divina: procede, portanto, duma e resiste à outra. Finalmente, para o definir, ele não é mais do que um movimento da vontade humana contra as regras invariáveis da vontade divina.

Estas duas relações diferentes produzem dois efeitos prejudiciais. O pecado formou-se no nosso coração pela vontade depravada; não é, pois, de admirar se ele corromper, se atacar diretamente o princípio da vida e da graça, abrindo assim a primeira chaga. Mas assim como ele se forma em nós, elevando-se contra Deus e contra as Suas sagradas leis, também arma infalivelmente contra nós esse poder temível, produzindo-nos o segundo golpe que mortalmente nos fere. Deste modo, para dar ao pecador o conhecimento de todo o seu mal, é preciso fazer-lhe sentir, sendo possível: em primeiro lugar, cristãos, que o machado já o feriu, que penetrou bem fundo e que ele, pelo seu próprio pecado, abriu em si uma profunda chaga: Jam enim securis ad radicem arborum posita est.

Depois será preciso mostrar-lhe que, se ele demorar a cura dessa primeira chaga, Deus está resolvido a decepá-lo por completo, a fim de que, se ele não receia o golpe que abriu em si com o seu crime, tema, pelo menos, aquele que Deus não há de tardar em abrir com à sua justiça: Omnis ergo arbor non faciens fractum bonum, excidetur et in ignem mittetur. E são estas duas poderosas considerações» que hão de fazer parte deste discurso.

PRIMEIRO PONTO

Se nos fosse tão fácil, inspirar aos homens o ódio pelo seu pecado, como nos é fácil provar-lhes que o pecado é o maior de todos os males, não nos lamentaríamos tantas vezes por resistirem à nossa palavra, e teríamos a consolação de ver os nossos discursos seguidos de conversões assinaladas. Sim, irmãos meus, seja qual for o prazer com que se lisonjeiam os homens mundanos, contentando os seus desejos, é-nos fácil provar que se afligem, que se atormentam, que dão em si um golpe mortal pelos seus caprichos desordenados; e, para esclarecer esta verdade nas formas e pelos princípios, é preciso aqui recordar a definição do pecado que já estabelecemos.

Dissemos, cristãos, que o pecado é um movimento da vontade do homem contra as ordens supremas da santa vontade de Deus. Sobre esta base principal é-nos fácil apoiar uma bela doutrina de Santo Agostinho, que nos explica admiravelmente em que consiste a malignidade do pecado. (De Civit. Dei. liv. XII, cap. III).

Diz ele que se contem numa dupla contrariedade, porque o pecado é contrário a Deus e também é contrário ao homem. Contrário a Deus é manifesto, porque combate as Suas leis sagradas; contrário ao homem, é uma consequência, porque ligando-o às suas próprias inclinações como as leis particulares que ele próprio estabelece para si, separa-o das leis primitivas e da primeira razão a que está ligado pela sua origem celeste, isto é, pela honra, que tem de nascer à imagem de Deus e de ter na alma os traços da sua face e tira-lhe a felicidade que consiste na sua semelhança com o seu autor.

Parece pois, cristãos, que o pecado é igualmente contrário a Deus e ao homem; mas com a importante diferença de que é contrário a Deus por ser oposto à Sua justiça, e é contrário ao homem por ser prejudicial à Sua felicidade; isto é, contrário a Deus, como ao preceito que ele combate, e além disso funestamente contrário ao homem, como ao objeto que corrompe (1).

E foi o que obrigou a dizer ao divino Salmista que «aquele que ama a iniquidade odeia-se a si próprio» ou, para traduzir à letra, odeia a sua alma, porque corrompe nela com a graça (Var.: Com a retidão) os princípios da sua saúde, da sua felicidade e da sua vida: Qui autem diligit iniquitatem, odit animam suam. (Sl 10, 6)

E realmente não pode deixar de ser que os homens se corrompam, ofendendo a Deus. Pois que outra coisa são esses homens rebeldes; que são eles, diz Santo Agostinho, mais do que inimigos impotentes:

«Inimigos de Deus, diz o mesmo santo, pela vontade de lhe resistirem e não pelo poder de o menoscabarem» – Inimici Deo resistendi volantate, non potestate Iaedendi. (De Civit Dei, liv. XII, cap. II)

E não se segue daí que, não podendo a malícia do pecado cair sobre Deus a quem ataca, deixa necessariamente todo o seu veneno no coração de quem o comete? Assim como a terra, que erguendo nuvens contra o sol que a ilumina, nada lhe tira da sua luz e apenas se cobre com as trevas, assim o pecador temerário, resistindo loucamente a Deus, por um justo e equitativo juízo, só tem força contra si próprio e apenas consegue aniquilar-se pela sua audácia insensata (2).

Foi por isso que o Rei-Profeta pronunciou esta maldição contra os pecadores:

Gladius eorum intret in corda ipsorum, et arcus eorum confringatur – «Que o seu gladio lhes penetre o coração e que o seu arco se quebre» (Sl 36, 15)

Vedes, portanto, duas espécies de armas nas mãos do pecador: um arco para atirai de longe e um gladio para ferir de perto.

O arco quebra-se e é inútil; o gladio dá o golpe, mas nele próprio. Compreendamos o sentido destas palavras: o pecador atira de longe, atira contra o céu e contra Deus: e não só as setas lá não chegam, mas também o arco se quebra ao primeiro esforço. Ímpio, que te elevas contra Deus, zombas das verdades do seu Evangelho e fazes um jogo sacrílego dos mistérios da Sua bondade e da Sua justiça. E tu, blasfemador imprudente, profanador do santo nome de Deus, que, não contente com jurares em vão esse nome venerável que nunca se deve pronunciar sem abalo, proferes maldições que fazem tremer toda a natureza, e orgulhas-te de ser ser instrumento de novos ultrajes contra essa bondade suprema, tão fecunda para ti em novos benefícios, e lanças-te furiosamente contra Deus e contra a Sua providência, com todos os caprichos de um jogo excessivo que te arruína, e em que não receias arriscar em cada golpe mais que a tua fortuna, porque arriscas a tua salvação e a tua consciência. Ou então, exasperado com os teus inimigos que te não podem servir de presa, diriges contra Deus só a tua raiva impotente, como se ele fosse do número dos teus inimigos, apesar de ser o mais fraco e o menos para recear porque nem sempre clama, e sendo tanto melhor e mais paciente quanto és ingrato e injurioso, reserva ele ainda para a penitência essa cabeça que tu, por tantos atentados, entregas à Sua justiça. Tu pegas no arco, alvejas a Deus audaciosamente, e as setas não o atingem, porque a sua santidade o torna inacessível a todos os ultrajes, dos homens; portanto; nada podes contra ele, e o teu arco quebra-se-te nas mãos, diz o santo Profeta.

Mas, irmãos meus, não basta que o arco se lhe quebre e que fique frustrada a empresa; é necessário que o gladio lhe penetre o coração e que, por ter alvejado de longe a Deus, ele dê em si de perto um golpe mortal, se o próprio Deus o não curar por milagre. É este o destino comum de todos os pecadores. O pecado, que perturba a ordem do mundo, estabelece primeiro a desordem em que o comete. A vingança que sai do coração para destruir tudo, leva sempre o seu primeiro golpe e o mais mortal ao coração que a produz e a alimenta. A injustiça, que deseja aproveitar-se do bem de outrem, começa primeiro no seu autor a quem despoja do seu maior bem, que é a retidão, antes de ter conseguido arrebatar e usurpar o bem dos outros. O maldizente só deslustra nos outros a reputação, mas em si deslustra a própria virtude. A impudicícia, que tudo quer corromper, começa o seu efeito pela sua própria origem, porque ninguém pode atentar contra a integridade de outrem senão pela perda da sua. Desta maneira, todo o pecador é inimigo de si mesmo, corruptor na sua própria consciência do maior bem da natureza racional, isto é, da inocência. De onde resulta que o pecado, já não digo nas suas consequências, mas o pecado em si, é o maior e mais extremo de todos os males: maior sem comparação do que todos os que nos ameaçam externamente,, porque é o desregramento e a completa depravação do interior; maior e mais perigoso do que as doenças corporais mais pestilentas, porque é um veneno fatal para a vida da alma; maior do que todos os males que atacam o nosso espírito, porque é um mal que corrompe a nossa consciência; maior, por consequência, do que a perda da razão, porque maior perda do que a da razão é a do bom uso dela, sem o qual a própria razão não é mais do que uma loucura criminosa. Finalmente, para concluir este raciocínio, o pecado é um mal superior a todos os males, uma desgraça que excede todas as desgraças, porque é ao mesmo tempo uma desgraça e um crime (3); uma perda infinita com uma falta imperdoável, a ruína total da nossa natureza no objeto da nossa escolha, isto é, num mesmo mal o naufrágio e a vergonhá da liberdade do homem.

Depois disto, cristãos, não nos devemos admirar se frequentes vezes nos disserem que o nosso crime se converte em castigo para nós. E não foi sem razão que eu disse que o machado que nos fere é o próprio pecado, visto que há de ser na eternidade o principal instrumento do nosso suplício.

Complebo furorem meum in te: «Eu hei de cevar em vós toda a minha cólera» Et ponam contra te omnes abominationes tuas…, et abominationes tuae in medio tai erunt…, et imponam tibi omnia scelera tua (Ez 7, 3-4, 8)

E com efeito, diz Santo Agostinho, não nos devemos convencer de que essa luz infinita e essa soberana bondade de Deus tire de si própria e do seu próprio seio com que punir os pecadores. Deus é o soberano bem, e, como tal, só faz bem aos homens. Por isso, para encontrar as armas com que há de destruir os seus inimigos, servir-se-á dos seus próprios pecados, que disporá de tal sorte que o que deu prazer ao homem criminoso se há de converter no instrumento dum Deus vingador.

Ne putemus illam tranquillitatem et ineffabile lumen Dei de se proferre, unde peccata puniantur; sed ipsa peccata sic ordinare, ut quae fuerunt delectamenta homini peccanti sint instrumenta Domino punienti (Enarr. in Psal, VII, n. 16)

E não me pergunteis, cristãos, de que maneira se há de operar essa grande mudança dos nossos prazeres em suplícios, porque isso está provado nas Escrituras. É a Verdade que o diz e o Omnipotente que o executa. E não obstante, se examinardes a natureza das paixões a que entregais o vosso coração, compreendereis facilmente que elas podem converter-se num suplício intolerável. Têm todas em si penas cruéis, e em número tão infinito que não podem ser de todo cevadas, o que provoca nelas todos arrebatamentos que degeneram numa espécie de furor tão penoso quanto desarrazoado. O amor impuro, se me é licito mencioná-lo nesta tribuna, tem as suas inconstâncias, as suas agitações violentas, e as suas resoluções irresolutas, e o inferno dos seus ciúmes: Dura sicut infernus aemulatio (Cant, VIII, 6), e o mais que eu não digo. A ambição tem os seus cativeiros, os seus ardores, as suas desconfianças e os seus receios, dentro da sua própria altivez que marca muitas vezes o limite do seu principio. A avareza, paixão vil, paixão odiosa no mundo, reúne não só as injustiças, mas também as inquietações com os tesouros. Oh! Que há pois de mais fácil do que fazer das nossas paixões um castigo insuportável para os nossos pecados, tirando-lhes, como é justíssimo, essa pouca tranquilidade com que elas nos seduzem, e deixando-lhes apenas as inquietações cruéis e a amargura em que abundam? (4)

Por isso, não nos lisonjeemos com a esperança da impunidade, em quanto tivermos em nossos corações o instrumento do nosso suplicio.

Producam ignem de medio tui qui comedat te (Ez 28, 18): «Eu farei sair do meio de ti o fogo que há de devorar as tuas entranhas»

Não o enviarei de longe contra ti, por que ele entrará na tua consciência, e as suas chamas sairão impetuosamente do teu interior, e quem o há de produzir hão de ser os teus pecados. Por consequência, irmãos, ai de nós que pecamos e não fizemos penitência! O golpe está dado; o inferno não está longe; esses ardores eternos atingem-nos de perto, visto que temos em nós mesmos e nos nossos próprios pecados a sua origem fecunda.

«O machado já chegou à raiz»

Ah! Que golpe ele te deu, visto que já alimentas em teu coração o que há de um dia constituir o teu ultimo suplício! Tantos pecados mortais, tantos golpes redobrados.

Por isso a árvore já não pode segurar-se; oscila, pende para a ruína pelos seus hábitos viciosos, e em breve há de cair pelo seu próprio peso. E se ainda for preciso um ultimo golpe, Deus há de descarregá-lo sem misericórdia sobre essa raiz estéril e maldita. O pecador já se não sustenta; as menores tentações fazem-no oscilar; os mais leves movimentos imprimem-lhe um declive perigoso. Mas finalmente seguiu o seu declive funesto pelas suas más inclinações, já não pode erguer-se, e ei-lo que vai cair. É verdade que Deus lhe dá ainda alguma esperança; mas já que ele abusa delia diz o Senhor, eu vivo eternamente, e não posso suportar tal dureza: Finis venit, venit finis…, fac conclusionem (Ez 7, 2, 23).

«Chegou o fim, e é preciso concluir»

Eu destruirei todos os fundamentos dessa esperança temerária, e descarregarei o último golpe; e cortando até às maiores fibras que ainda sustentam essa arvore infeliz, precipitá-la-ei da sua altura e arremessá-la-ei às chamas: Omnis arbor non faciens fructum, excidetur et in ignem mittetur (5).

SEGUNDO PONTO

Tal como sucederia com um inimigo implacável, que, tendo-nos despojado de todo o nosso bem, nos arremessa ainda aos braços um adversário poderoso, a quem não podemos resistir, tal e ainda mais nocivo é o pecado a respeito do homem; visto que o pecado, cristãos, como já disse, depois de nos ter feito perder o bom uso da razão, o emprego legítimo da liberdade, a pureza da consciência, isto é, todo o bem e todo o ornamento da criatura racional, para maior cumulo dos nossos males, excita Deus a tomar armas contra nós, tornando-nos seus inimigos declarados, contrários à sua retidão, injuriosos para a sua santidade, ingratos para com a sua misericórdia, odiosos para a sua justiça e, por consequência, sujeitos à lei das suas vinganças.

Daqui podemos compreender a cólera de que Deus está animado, se posso assim exprimir-me, para com os pecadores impenitentes; e dir-vos-ei numa palavra, porque não posso alongar-me em provar verdades manifestas, que Deus é tanto mais santo e tanto mais justo, quanto mais adverso é para eles; de maneira que lhes vota um ódio infinito.

Os pecadores não compreendem esta verdade: enquanto à sombra da sua boa fortuna e por meio das longas dilações que Deus lhes concede, adormecem à sua vontade, imaginam que Deus também dorme; julgam que Ele não pensa mais em os castigos do que que eles pensam em se converter; e, como se esqueceram dos seus preceitos, dizem no seu íntimo:

«Deus esqueceu-se de mim e não toma sentido nos meus crimes» Dixit enim in corde suo: Oblitus est Deus (Sl 9, 34)

E pelo contrário, devem saber que a justiça divina, que parece dormir e esquecer-se dos pecadores, tendo até grande repugnância por eles, está sempre contra eles armada e sempre pronta para dar o golpe de que hão de morrer imediatamente, e não devem eles lisonjear-se da bondade infinita de Deus, cuja propriedade não conhecem; mas fiquem antes compreendendo hoje que Deus é bom duma maneira diferente da que eles imaginam.

É bom, diz Tertuliano, porque é inimigo do mal; e é infinitamente bom, porque é infinitamente inimigo: Non plene bonus nisi mali aemulus (Advers. Marcion., liv. I, n.° 26).

Não se deve conceber em Deus uma bondade frouxa e que tudo sofre, uma bondade insensível e ilógica, mas uma bondade vigorosa, que exerce o amor que tem pelo bem, pelo ódio que tem pelo mal, e mostra-se eficazmente bondade verdadeira, combatendo a malícia do pecado que lhe é oposto: Ut boni amorem odio mali exerceat, et boni tutelam expugnatione mali impleat (Id., ibid). Por consequência, cristãos, Deus está sempre exercendo um justo ódio contra os pecadores.

Os seus raios estão sempre preparados, e a sua cólera sempre inflamada, e é por isso que a Escritura no-lo representa na atitude de quem está disposto a ferir: «Todas as suas flechas estão aguçadas, diz o santo Profeta, e todos os seus arcos armados e prontos para disparar»: Sagittae ejus acutae, et omnes arcus ejus extenti (Is 5, 28); Ele aponta e designa o sitio onde quer ferir. A Sua mão vingadora, porém, retrai-se às vezes com a esperança no arrependimento, mas nunca se desarma, e muito menos adormece; e isso bem o vedes no nosso evangelho. Não só empunhá sempre esse terrível machado, mas aplica sempre o gume funesto à raiz da árvore, e nada há que se oponha a que ele corte; e é por isso que não é possível que a árvore subsista por muito tempo. «Ela há de ser cortada» diz São João Batista, excidetur, ou melhor, como lemos no original, exciditur, no tempo presente: é cortada e desarreigada, a fim de concebermos a ação mais pronta e mais eficaz (6).

Nós iludimo-nos, cristãos, se imaginamos que podemos subsistir por muito tempo neste estado miserável. É verdade que até aqui a misericórdia divina suspendeu a vingança e susteve o último golpe da mão de Deus; mas nem sempre havemos de ter um socorro semelhante. Porque, enfim, como diz o nosso grande profeta, é chegado o reino de Deus; e no reino de Deus tão santo, tão poderoso e tão justo, é impossível que a iniquidade fique por muito tempo impune (7).

«O Senhor reinou, diz o Rei-Profeta; que a terra se regozije e que as ilhas mais longínquas triunfem de alegria»: Dominus regnavit, exultet terra, Iaetentur insulae maltae (Sl 96, 1)

Que reino de doçura e de paz que é este! Mas, ó Deus, que é o que eu leio noutro Salmo?

«O Senhor reinou, diz o mesmo profeta; que os povos tremam e se encolerizem, e que a terra seja abalada até aos fundamentos» Dominus regnavit, irascantur populi; qui sedet super cherubim, moveatur terra (Sl 98, 1)

É este um reinado terrível, um reinado de ferro e de rigor que outro profeta descreve nestas palavras:

In manu forti, et in brachio extento et in furore effuso regnabo super vos (Ez 20, 33): «Eu reinarei sobre vós, diz o Senhor, ferindo-vos com mão poderosa e esgotando em vós toda a minha cólera»

Deus reina sobre os homens de duas maneiras apenas: reina sobre os pecadores convertidos, porque eles se Lhe submetem voluntariamente; e reina sobre os pecadores condenados, porque Ele os subjuga a seu pesar. Ali há um reinado de paz e de graça, aqui um reinado de rigor e de justiça; mas por toda a parte um reinado soberano de Deus, porque ali pratica-se o que Deus ordena, aqui sofre-se o suplício que Deus impõe; e Deus recebe as homenagens daqueles e é justiceiro para com estes. Pecador, a quem Deus chama à penitência e que resistis à Sua voz, estais entre uns e outros: nem fazeis nem suportais pacientemente o que Deus quer, desprezais a lei e não experimentais o suplício, pondes de parte o atrativo e não sois oprimido pela cólera.

Ultrajais a bondade que vos atrai, e a paciência que vos aguarda; viveis como senhor absoluto dos vossos caprichos, independente de Deus, sem nada evitardes da vossa parte, mas sem nada tolerardes da sua; e Ele nem reina sobre nós pela vossa obediência voluntária, nem pela vossa sujeição forçada. Mais uma vez vos digo, cristãos, que é esse um estado violento, que não pode por muito tempo subsistir. Deus tem pressa de reinar sobre vós; pois bem vedes realmente quanto Ele vos apressa. Que de suaves atrações! Que de ameaças terríveis! Que de secretos avisos! Que de nuvens longínquas! Que de tempestades tão próximas! Vede como Ele deixa de atender a todas as vossas desculpas; e nem consente àquele que conclua os seus negócios, nem a este outro que vá fechar os olhos ao pai (Lc 9, 59 e 61); qualquer demora o importuna, tal é a pressa que tem de reinar sobre vós. Se não reinar pela sua bondade, em breve, e mais cedo do que pensais, há de reinar pela sua justiça. Porque a Ele pertence o império, e para si mesmo e para a sua própria grandeza deve de estabelecer prontamente o seu reino. É por isso que o nosso grande Batista brada no deserto, e não só as praias e as montanhas vizinhas, mas até todo o universo ressoa com esta voz: Fazei penitência, fazei penitência, ricos e pobres, grandes e pequenos, príncipes e vassalos; e cada um se afaste dos seus maus caminhos.

«Porque é chegado o reino dos ceus» Appropinquat enim regnum caeloriim (Mt 3, 2).

Por isso vos peço, irmãos, que não vos prendais com o tempo, que vos engana; é um perigoso impostor que vos rouba tão subtilmente que não dais pelo seu latrocínio. Nem sempre vos prendais com o futuro; considerai o vosso estado presente; o que o tempo vos parece dar, tira-vo-lo; e ao mesmo tempo que acrescenta os vossos dias diminui-os.

Essa fuga e essa carreira insensível do tempo não é mais do que uma sutil impostura para vos conduzir insensivelmente ao dia final.

Todos os dias estamos a ver que a juventude chega lá precipitadamente. Por consequência, não espereis de Deus tudo o que pretendeis; não penseis em todos os dias que Ele vos pode dar, senão nos que pode tirar-vos; nem vos lembreis apenas de que Ele pode perdoar, mas também de que pode castigar. Não fundeis a vossa esperança nem apoieis o vosso juízo numa coisa que está oculta para vós.

Eu bem sei, cristãos, que Deus, «não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e que viva» (Ez 33, 11); não raro prolonga o tempo da penitência. Mas é preciso ajuizar desse tempo como das ocasiões no curso do mundo.

Cada um espera os momentos felizes, as ocasiões favoráveis para concluir os seus negócios. Mas se esperais sem vos moverdes, se não sabeis aproveitar o tempo, ele passa inutilmente para vós, e na passagem só vos traz anos que vos incomodam. Por isso, nessa importante questão da penitência, aquele que sabe empregar o tempo e aproveitá-lo pode esperar muito dele; mas aquele que sempre espera e nunca começa vê correr inutilmente e desaparecer-lhe todos esses momentos preciosos nos quais tinha posto a sua esperança (8).

É por isso que São João Batista não nos dá repouso algum:

«O machado, diz ele, já chegou à raiz; toda a arvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo; fazei pois, fazei já frutos dignos de penitência» Facite ergo fructus dignos paenitentiae (Lc 3, 8)

Haveis transposto audaciosamente as mais poderosas considerações. E como insensibilizastes essa primeira ternura duma consciência inocente! Soubestes profanar a penitência e a comunhão, que já vos não impressionam. Os terríveis juízos de Deus que outrora tinham tanta força para vos com mover, a apreensão que tinhais desse trovão, tudo dissipastes como um vão terror, e costumastes-vos a dormir tranquilamente a esse estrondo.

Estamos reduzidos aos milagres. Experiência dos pecadores… In peccato vestro moriemini (Jo 8, 21)

Devemos dar mais atenção às coisas que se dizem do que aos pregadores. As coisas que dizemos são tão pouco sólidas que só mereçam reflexão pela maneira como se dizem? Tantas horas de grande prazer! Porque se perdem elas todas? Porque não aproveita Jesus Cristo algumas delas, em vez de as considerar como um passatempo inútil? Pois oxalá que Jesus Cristo vos encha de graças! Oxalá que recebêsseis n’Ele um Salvador e não um juiz! Oxalá que aprendêsseis no seu presépio a desprezar «os bens efêmeros e a alcançar as inestimáveis riquezas que a sua gloriosa pobreza nos granjeou!

(Autores a consultar no III Domingo do Advento: Fléchier, II, 99. – De Savigny, L. de Granade, Dúbios, Brunet, de Bainvile, etc.)

Referências:

(1) Nota Marg.: A Deus, porque é ofensivo; ao homem, porque é prejudicial.

(2) Nota Marg.: Ele próprio se aniquila pelo esforço temerário que emprega contra Deus.

(3) Nota Marg.: Desgraça que nos oprime, e crime que nos desonra; desgraça que nos tira toda a esperança, e crime que nos tira todo o perdão; desgraça que nos faz perder tudo, e crime que nos torna criminosos dessa perda funesta, e que é para nós motivo de lástima.

(4) Nota Marg.: Os nossos pecados contra nós, os nossos pecados sobre nós, os nossos pecados no meio de nós: dardo penetrante contra o nosso coração, peso insuportável sobre a nossa cabeça, veneno devorador nas nossas entranhas.

(5) Nota Marg.: Retirai-vos, que podeis ser esmagados com a sua queda. Os seus exemplos, vos arrastariam… Senhor, dai-me forças; ajudai-me no trabalho do meu coração, que deseja criar verdadeiros penitentes.

(6) Nota Marg.: Ele dá mostras de não ferir. Vingança oculta. Entregue às paixões e aos sentidos depravados.

(7) Nota Marg.: Uma palavra do reino de Deus que São João Batista nos anuncia.

(8) Nota Marg.: Que lhe traz o tempo, senão um insulto maior para a sua vida, um peso maior para os seus crimes, um liame mais forte para os seus hábitos?

Voltar para o Índice dos Sermões de Bossuet

(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 214-233)