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A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo

Piedosas e edificantes meditações sobre os sofrimentos de Jesus

Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787), Bispo e Doutor da Igreja

Traduzidas pelo Pe. José Lopes Ferreira, C.Ss.R.

Sumário

Relógio da Paixão
Invocação a Jesus e Maria

OPÚSCULO I. Frutos que se colhem na Meditação da Paixão de Jesus Cristo
Introdução
Capítulo I. Do amor de Jesus Cristo querendo satisfazer a justiça divina por nossos pecados
Capítulo II. Jesus quis padecer tanto por nós, para nos fazer compreender o grande amor que nos consagra
Capítulo III. Jesus por nosso amor quis desde o princípio de sua vida sofrer as penas de sua Paixão
Capítulo IV. Do grande desejo que teve Jesus de padecer e morrer por nosso amor
Capítulo V. Do amor que Jesus nos mostrou, deixando-se a si mesmo em comida antes de entregar-se à morte
Capítulo VI. Do suor de sangue e agonia de Jesus no horto
Capítulo VII. Do amor de Jesus em sofrer tantos desprezos em sua paixão
Capítulo VIII. Da flagelação de Jesus Cristo
Capítulo IX. Da coroação de espinhos
Capítulo X. Do Ecce Homo
Capítulo XI. Da condenação de Jesus Cristo e sua ida ao Calvário
Capítulo XII. Da crucifixão de Jesus
Capítulo XIII. Das últimas palavras de Jesus na cruz e de sua morte
Capítulo XIV. Da esperança que devemos ter na morte de Jesus
Capítulo XV. Do amor do Eterno Pai dando-nos o seu Filho
Capítulo XVI. Do amor do Filho de Deus em querer morrer por nós

OPÚSCULO II. Setas de fogo ou provas que Jesus Cristo nos deu de Seu amor na obra da Redenção

OPÚSCULO III. Reflexões sobre a Paixão de Jesus Cristo, exposta com a simplicidade com que a descrevem os Santos Evangelistas
Aviso ao Leitor e Introdução
Capítulo I. Jesus entra em Jerusalém
Capítulo II. O conselho dos Juízes e a traição de Judas
Capítulo III. Última ceia de Jesus Cristo com seus discípulos
Capítulo IV. Da instituição do Santíssimo Sacramento
Capítulo V. Jesus ora no horto e sua sangue
Capítulo VI. Jesus é preso e amarrado
Capítulo VII. Jesus é conduzido a Pilatos e daí a Herodes, sendo-lhe Barrabás preferido
Capítulo VIII. Jesus é flagelado numa coluna
Capítulo IX. Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro
Capítulo X. Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: Ecce Homo!
Capítulo XI. Jesus é condenado por Pilatos
Capítulo XII. Jesus leva a cruz ao Calvário
Capítulo XIII. Jesus é crucificado
Capítulo XIV. Palavras de Jesus na cruz
Capítulo XV. Morte de Jesus

OPÚSCULO IV. Reflexões sobre a Paixão de jesus cristo expostas às almas devotas
Capítulo I. Reflexões gerais sobre a Paixão de Jesus Cristo
Capítulo II. Reflexões particulares sobre padecimentos de Jesus Cristo na sua morte
Capítulo III. Reflexões sobre a flagelação, a coroação de espinhos e crucifixão de Jesus Cristo
Capítulo IV. Reflexões sobre os impropérios feitos a Jesus Cristo enquanto pendia na cruz
Capítulo V. Reflexões sobre as palavras de Jesus na cruz
Capítulo VI. Reflexões sobre a morte de Jesus Cristo e a nossa
Capítulo VII. Reflexões sobre os prodígios havidos na morte de Jesus Cristo
Capítulo VIII. Do amor que Jesus Cristo nos demonstrou na sua paixão
Capítulo IX. Da gratidão que devemos a Jesus Cristo por sua paixão
Capítulo X. Todas as nossas esperanças devem ser postas nos merecimentos de Jesus Cristo
§ 1 De Jesus Cristo devemos esperar o perdão de nossos pecados
§ 2 Jesus Cristo nos dá a esperança da perseverança final
§ 3 Da esperança que temos de chegar um dia, por Jesus Cristo, à felicidade do paraíso
Capítulo XI. Da paciência que devemos praticar em união com Jesus Cristo, para alcançar a vida eterna

15 Meditações sobre a Paixão de Jesus Cristo

OPÚSCULO V. Para o tempo que medeia entre Sábado da Paixão e Sábado Santo

Meditação I. Para o Sábado da Paixão.
Jesus entra triunfante em Jerusalém
Meditação II. Para o Domingo da Paixão. Jesus ora no horto
Meditação III. Para a Segunda-feira da Paixão. Jesus é preso e conduzido a Caifás
Meditação IV. Para a Terça-feira da Paixão. Jesus é conduzido a Pilatos e a Herodes e posposto a Barrabás
Meditação V. Para a Quarta-feira da Paixão. Jesus é flagelado e preso a uma coluna
Meditação VI. Para a Quinta-feira da Paixão. Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de escárnio
Meditação VII. Para a Sexta-feira da Paixão. Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: “Ecce Homo”
Meditação VIII. Para o Sábado da Paixão. Jesus é condenado por Pilatos
Meditação IX. Para o Domingo de Ramos. Jesus leva a cruz ao Calvário
Meditação X. Para a Segunda-feira Santa. Jesus é pregado na cruz
Meditação XI. Para a Terça-feira Santa. Jesus  na cruz
Meditação XII. Para a Quarta-feira Santa. Palavras de Jesus na cruz
Meditação XIII. Para a Quinta-feira Santa. Jesus morre na cruz
Meditação XIV. Para a Sexta-feira Santa. Jesus morto pendente da cruz
Meditação XV. Para o Sábado Santo. Maria assiste à morte de Jesus na cruz

OPÚSCULO VI. Meditações sobre a Paixão de Jesus Cristo

Meditação I. A Paixão de Jesus Cristo é a nossa consolação
Meditação II. Quão grande é a obrigação que temos de amar Jesus Cristo
Meditação III. Jesus, o homem das dores
Meditação IV. Jesus tratado como último dos homens
Meditação V. Vida desolada de Jesus Cristo
Meditação VI. Ignomínias que Jesus sofreu na sua paixão
Meditação VII. Jesus na cruz
Meditação VIII. Jesus morto na cruz

OPÚSCULO VII. Meditações sobre a Paixão de Jesus Cristo para cada dia da Semana

Meditação para o Domingo. Do amor de Jesus em padecer por nós
Meditação para a Segunda-feira. Do suor de sangue e agonia de Jesus no horto
Meditação para a Terça-feira. Da prisão e apresentação de Jesus aos judeus
Meditação para a Quarta-feira. Da flagelação de Jesus Cristo
Meditação para a Quinta-feira. Da coroação de espinhos e das palavras “Ecce Homo”
Meditação para a Sexta-feira. Da condenação de Jesus e subida ao Calvário
Meditação para o Sábado. Da crucifixão e morte de Jesus

OPÚSCULO VIII. Poder que tem a Paixão de Jesus Cristo para acender o amor divino em nossos corações

Relógio da Paixão

Hora 1: Despede-se de Maria e celebra a ceia
Hora 2: Lava os pés aos apóstolos e institui o SS. Sacramento.
Hora 3: Faz suas últimas recomendações e vai ao horto.
Hora 4: Faz oração no horto.
Hora 5: Põe-se em agonia.
Hora 6: Sua sangue.
Hora 7: É traído por Judas e é preso.
Hora 8: É conduzido a Anás.
Hora 9: É levado a Caifás e recebe a bofetada.
Hora 10: Vendam-lhe os olhos, é espancado e escarnecido.
Hora 11: É levado ao conselho e declarado réu de morte.
Hora 12: É conduzido a Pilatos e acusado.
Hora 13: É escarnecido por Herodes.
Hora 14: É reconduzido a Pilatos e posposto a Barrabás.
Hora 15: É flagelado na coluna.
Hora 16: É coroado de espinhos e mostrado ao povo.
Hora 17: É condenado à morte e sobe ao Calvário.
Hora 18: É despojado de suas vestes e crucificado.
Hora 19: Ora pelos que o crucificaram.
Hora 20: Entrega seu espírito ao Pai.
Hora 21: Morre.
Hora 22: É transpassado com a lança.
Hora 23: É despregado e entregue a sua Mãe.
Hora 24: É sepultado e deixado no sepulcro.

Invocação a Jesus e Maria

Ó Salvador do mundo, ó amante das almas, ó Senhor, o mais digno objeto de nosso amor, vós, por meio de vossa Paixão, viestes a conquistar os nossos corações, testemunhando-lhes o imenso afeto que lhes tendes, consumando uma redenção que a nós trouxe um mar de bênçãos e a vós um mar de penas e ignomínias. Foi por este motivo principalmente que instituístes o Santíssimo Sacramento do altar, para que nos lembrássemos continuamente de vossa Paixão, como diz SantoTomás: ut autem tanti beneficii jugis in nobis maneret memoria, corpus suum in cibum fidelibus dereliquit (Opuse. 57). E já antes dele disse São Paulo: Quotiescumque enim manducabais panem hunc… mortem Domini annunciabitis (1Cor 11,26). Como tais prodígios de amor já tendes conseguido que inúmeras almas santas, abrasadas nas chamas de vosso amor, renuncias¬sem a todos os bens da terra, para se dedicarem exclusivamente a amar tão somente a vós, amabilíssimo Senhor. Fazei, pois, ó meu Jesus, que eu me recorde sempre de vossa Paixão e que, apesar de miserável pecador, vencido finalmente por tantas finezas de vosso amor, me resolva a amar-vos e a dar-vos com o meu pobre amor algumas provas de gratidão pelo excessivo amor que vós, meu Deus e meu Salvador, me tendes demonstrado. Recordai-vos, ó Jesus meu, que eu sou uma daquelas vossas ovelhinhas, por cuja salvação viestes à terra sacrificar vossa vida divina. Eu sei que vós, depois de me terdes remido com vossa morte, não deixastes de me amar e ainda me consagrais o mesmo amor que tínheis ao morrer por mim na cruz. Não permitais que eu continue a viver ingrato para convosco, ó meu Deus, que tanto mereceis ser amado e tanto fizestes para ser de mim amado.

E vós, ó Santíssima Virgem Maria, que tivestes tão grande parte na Paixão de vosso Filho, impetrai-me pelos merecimentos de vossas dores a graça de experimentar um pouco daquela compaixão que sentistes na morte de Jesus e obtende-me uma centelha daquele amor, que constituiu o martírio de vosso coração tão compassivo.

Suplico-vos, Senhor Jesus Cristo, que a força de vosso amor, mais ardente que o fogo, e mais doce que o mel, absorva a minha alma, a fim de que eu morra por amor de vosso amor, ó vós que vos dignastes morrer por amor de meu amor. Amém.

Introdução do Opúsculo I

1. O amante das almas, nosso amantíssimo Redentor, declarou que não teve outro fim, vindo à terra e fazendo-se homem, que acender o fogo do santo amor nos corações dos homens.

“Eu vim trazer fogo à terra e que mais desejo senão que ele se acenda?” (Lc 12,49).

E, de fato, que belas chamas de caridade não acendeu ele em tantas almas, particularmente com os sofrimentos que teve de padecer na sua morte, a fim de patentear-nos o amor imenso que nos dedica! Oh! quantos corações, sentindo-se felizes nas chagas de Jesus, como em fornalhas ardentes de amor, se deixaram inflamar de tal modo por seu amor, que não recusaram consagrar-lhe os bens, a vida e a si mesmos inteiramente, vencendo corajosamente todas as dificuldades que se lhes deparavam na observância da Divina lei, por amor daquele Senhor que, sendo Deus, quis sofrer tanto por amor deles! Foi justamente este o conselho que nos deu o Apóstolo, para não desfalecermos mas até corrermos expeditamente no caminho do céu:

“Considerai, pois, atentamente aquele que suportou tal contradição dos pecadores contra a sua pessoa, para que vos não fatigueis, desfalecendo em vossos ânimos” (Hb 12,3).

2. Por isso, Santo Agostinho, ao contemplar Jesus todo chagado na cruz, orava afetuosamente:

“Escrevei, Senhor, vossas chagas em meu coração, para que nelas eu leia a dor e o amor: a dor, para suportar por vós todas as dores; o amor, para desprezar por vós todos os amores”.

Porque, tendo diante dos meus olhos a grande dor que vós, meu Deus, sofrestes por mim, sofrerei pacientemente todas as penas que tiver de suportar, e à vista do vosso amor, de que me destes prova na cruz, eu não amarei nem poderei amar senão a vós.

3. E de que fonte hauriram os santos o ânimo e a força para sofrer os tormentos, o martírio e a morte, senão dos tormentos de Jesus crucificado? São José de Leonissa, capuchinho, vendo que queriam atá-lo com cordas para uma operação dolorosa que o cirurgião devia fazer-lhe, tomou nas mãos o seu crucifixo e disse: Cordas? que cordas! eis aqui os meus laços. Este Senhor pregado por meu amor com suas dores obriga-me a suportar qualquer tormento por seu amor. E dessa maneira suportou a operação sem se queixar, olhando para Jesus, que “como um cordeiro se calou diante do tosquiador e não abriu a sua boca” (Is 53,7). Quem mais poderá dizer que padece injustamente vendo Jesus que “foi dilacerado por causa de nossos crimes?” Quem mais poderá recusar-se a obedecer, sob pretexto de qualquer incômodo, contemplando Jesus “feito obediente até à morte?” Quem poderá rejeitar as ignomínias, vendo Jesus tratado como louco, como rei de burla, como malfeitor, esbofeteado, cuspido no rosto e suspenso num patíbulo infame?

4. Quem, pois, poderá amar um outro objeto além de Jesus, vendo-o morrer entre tantas dores e desprezos, a fim de conquistar o nosso amor? Um pio solitário rogava ao Senhor que lhe ensinasse o que deveria fazer para amá-lo perfeitamente. O Senhor revelou-lhe que, para chegar a seu perfeito amor, não havia exercício mais próprio que meditar freqüentemente na sua Paixão. Queixava-se Santa Teresa amargamente de alguns livros, que lhe haviam ensinado a deixar de meditar na Paixão de Jesus Cristo, porque isto poderia servir de impedimento à contemplação da divindade. Pelo que a santa exclamava:

“Ó Senhor de minha alma, ó meu bem, Jesus Crucificado, não posso recordar-me dessa opinião sem me julgar culpada de uma grande infidelidade. Pois seria então possível que vós, Senhor, fôsseis um impedimento para um bem maior? E donde me vieram todos os bens senão de vós?”

E em seguida ajuntava:

“Eu vi que, para contentar a Deus e para que nos conceda grandes graças, ele quer que tudo passe pelas mãos dessa humanidade sacratíssima, na qual se compraz sua divina majestade”.

5. Por isso dizia o Padre Baltasar Álvarez que o desconhecimento dos tesouros que possuímos em Jesus é a ruína dos cristãos, sendo por essa razão a Paixão de Jesus Cristo sua meditação preferida e mais usada, considerando em Jesus especialmente três de seus tormentos: a pobreza, o desprezo e as dores, e exortava os seus penitentes a meditar freqüentemente na Paixão do Redentor, afirmando que não julgassem ter feito progresso algum se não chegassem a ter sempre impresso no coração a Jesus crucificado.

6. Ensina São Boaventura que quem quiser crescer sempre de virtude em virtude, de graça em graça, medita sempre Jesus na sua Paixão. E ajunta que não há exercício mais útil para fazer santa uma alma do que considerar assiduamente os sofrimentos de Jesus Cristo.

7. Além disso afirmava Santo Agostinho (ap. Bern. de Bustis) que vale mais uma só lágrima derramada em recordação da Paixão de Jesus, que uma peregrinação a Jerusalém e um ano de jejum a pão e água. E na verdade, porque vosso amante Salvador padeceu tanto senão para que nisso pensássemos e pensando nos inflamássemos no amor para com ele? “A caridade de Cristo nos constrange”, diz São Paulo (2Cor 5,14). Jesus é amado por poucos, porque poucos são os que meditam nas penas que por nós sofreu; que, porém, as medita a miúdo, não poderá viver sem amar a Jesus: sentir-se-á de tal maneira constrangido por seu amor que não lhe será possível resistir e deixar de amar a um Deus tão amante e que tanto sofreu para se fazer amar.

8. Essa é a razão por que dizia o Apóstolo que não queria saber outra coisa senão Jesus e Jesus Crucificado, isto é, o amor que ele nos testemunhou na cruz. “Não julgueis que eu sabia alguma coisa entre vós senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1Cor 2,2). E na verdade, em que livros poderíamos aprender melhor a ciência dos santos (que é a ciência de amar a Deus) do que em Jesus Crucificado? O grande servo de Deus, Frei Bernardo de Corleone, capuchinho, não sabendo ler, queriam seus confrades ensinar-lhe. Ele, porém, foi primeiro aconselhar-se com seu crucifixo e Jesus respondeu-lhe da cruz:

“Que livro! Que ler! eu sou o teu livro, no qual poderás sempre ler o amor que eu te consagro!”

Oh! que grande assunto de meditação para toda a vida e para toda a eternidade: um Deus morto por meu amor!

9. Visitando uma vez SantoTomás d’Aquino a São Boaventura, perguntou-lhe de que livro se havia servido para escrever tão belas coisas que havia publicado. São Boaventura mostrou-lhe a imagem de Jesus crucificado, toda enegrecida pelos muitos beijos que lhe imprimira, dizendo-lhe:

“Eis o meu livro, donde tiro tudo o que escreve; ele ensinou-me o pouco que eu sei”.

Todos os santos aprenderam a arte de amar a Deus no estudo do crucifixo. Fr. João de Alvérnia, todas as vezes que contemplava Jesus coberto de chagas, não podia conter a lágrimas. Fr. Tiago de Todi, ouvindo ler a Paixão do Redentor, não só derramava abundantes lágrimas, mas prorrompia em soluços, oprimido pelo amor de que se sentia abrasado por seu amado Senhor.

10. S. Francisco fez-se aquele grande serafim pelo doce estudo do crucifixo. Chorava tanto ao meditar os sofrimentos de Jesus Cristo, que perdeu quase totalmente a vista. Uma vez encontraram-no chorando em altas vozes e perguntaram-lhe a razão.

“O que eu tenho? respondeu o santo, eu choro por causa dos sofrimentos e das afrontas ocasionadas ao meu Senhor e minha pena cresce e aumenta vendo a ingratidão dos homens que não o amam e dele se esquecem”.

Todas as vezes que ouvia balar um cordeiro, sentia grande compaixão, pensando na morte de Jesus, Cordeiro imaculado, sacrificado na cruz pelos pecados do mundo. Por isso, esse grande amante de Jesus nada recomendava com tanta solicitude a seus irmãos como a meditação constante da Paixão de Jesus.

11. Eis, portanto, o livro, Jesus Crucificado, que, se for constantemente lido por nós, também nós aprenderemos de um lado temer o pecado e doutro nos abrasaremos em amor por um Deus tão amante, lendo em suas chagas a malícia do pecado que reduziu um Deus a sofrer uma morte tão amarga para por nós satisfazer a justiça divina e o amor que nos manifestou o Salvador, querendo sofrer tanto para nos fazer compreender o quanto nos amava.

12. Supliquemos à divina Mãe Maria, que nos obtenha de seu Filho a graça de entrarmos nessa fornalha de amor onde ardem tantos corações para que aí sejam destruídos nossos afetos terrenos e possamos nos abrasar naquelas chamas bem-aventuradas que fazem as almas santas na terra e bem-aventuradas no céu.

Aviso ao Leitor acerca do Opúsculo III

Eu te prometi, benévolo leitor, no meu livro das Glórias de Maria, um outro livro sobre o Amor a Jesus Cristo. Em razão de minhas enfermidades, meu diretor não me permitiu escrevê-lo. Foi-me apenas concedida a licença de publicar estas sucintas reflexões sobre a paixão, nas quais, contudo, eu compendiei o que de mais belo tinha encontrado sobre essa matéria: excetuando algumas coisas referentes à encarnação e nascimento do Senhor, que eu pretendo, se me for permitido, publicar num livrinho para a novena de Natal. Espero, não obstante, que esta minha obrinha te agrade, especialmente por teres debaixo dos olhos, relatados com ordem, os passos da Sagrada Escritura a respeito do amor que Jesus Cristo nos demonstrou na sua morte, pois não há coisa que possa mover mais um cristão ao amor divino do que a própria palavra de Deus, que possuímos nas Santas Escrituras.

Amemos, pois, bastante a Jesus Cristo, em quem encontramos o nosso Salvador, o nosso Deus e todo o nosso bem. Peço-te, pois, que todos os dias medites um pouco sobre a sua paixão, na qual encontrarás todos os motivos de esperar a vida eterna e de amar a Deus, no que consiste toda a nossa salvação. Todos os santos se mostraram enamorados de Jesus Cristo e de sua paixão e por este meio único se santificaram. O Pe. Baltasar Álvarez, como se lê na sua vida, diz que ninguém julgue ter feito alguma coisa, se não tiver chegado a possuir Jesus crucificado sempre no coração, e por isso sua oração consistia em pôr-se ao pé do crucifixo e, meditando e três coisas: na pobreza, no desprezo e nas dores do crucificado, aprender a lição que Jesus lhe dava da cruz. Também tu podes esperar santificar-te, se de modo semelhante perseverares na consideração do que Jesus fez e padeceu por ti. Suplica-lhe sempre que te conceda o seu amor. Pede-o sempre igualmente à tua senhora, a Maria, que se chama a Mãe do belo amor. E quando lhes implorares este grande dom, implora-o também para mim, que tive em vista fazer de ti um santo com este meu pequeno trabalho. De minha parte prometo fazer o mesmo por ti, para que um dia possamos no paraíso nos abraçar em santa caridade e nos dar por amantes desta amabilíssimo Senhor e, aí, como companheiros escolhidos para todo o sempre, amar face a face e eternamente nosso Salvador e amor, Jesus. Amém.

Introdução do Opúsculo III

Diz Santo Agostinho não haver coisa mais útil para conseguir a salvação eterna do que pensar todos os dias nos tormentos que Jesus sofreu por nosso amor (Ad Frat. in er. serm. 32). E já Orígenes tinha escrito que o pecado não poderia certamente imperar na alma que meditasse continuamente na morte de seu Salvador (Lib. 6 in Rm 6). Além disso, revelou o Senhor a um santo anacoreta não haver exercício mais apropriado para acender num coração o amor divino, do que meditar na paixão de nosso Redentor. Por essa razão dizia o Pe. Baltasar Álvarez que a ignorância dos tesouros que possuímos em Jesus, na sua paixão, era a ruína dos cristãos, e por isso repetia a seus penitentes que não pensassem ter feito coisa alguma se não tivessem ainda conseguido ter sempre fixo no seu coração a Jesus crucificado. As chagas de Jesus, dizia São Boaventura (Stim. div. am. p. I, c. 1), ferem os corações mais duros e inflamam as almas mais frias.

Ora, como adverte sabiamente um douto escritor (Pe. Croiset, Exerc. Mart. t. 3), não há coisa melhor para nos descobrir os tesouros recônditos na paixão de Jesus Cristo, do que a simples narração dessa mesma paixão. Basta para inflamar uma alma fiel no amor divino a narração feita pelos santos evangelhos e considerar com olhos cristãos tudo o que o Salvador sofreu nos principais teatros de sua paixão, isto é, no horto das Oliveiras, na cidade de Jerusalém e no monte Calvário. São belas e boas as muitas considerações feitas e escritas por autores piedosos sobre a paixão de Jesus; mas certamente faz maior impressão a um cristão uma só palavra das sagradas Escrituras do que cem ou mil considerações e revelações escritas ou feitas a algumas pessoas devotas, pois as criaturas nos afiançam que tudo o que elas nos referem é certo e tem uma certeza de fé divina. Para tal fim quis, em benefício e para consolação das almas que amam a Jesus Cristo, pôr em ordem e referir simplesmente (ajuntando apenas algumas breves reflexões e afetos) o que nos dizem da paixão de Jesus os sagrados evangelistas, os quais nos oferecem matéria de
meditação para cem e até mil anos, capaz de inflamar ao mesmo tempo os nossos corações em amor para com nosso amantíssimo Redentor.

Ó Deus, como é possível que uma alma, que tem fé e considera as dores e ignomínias que Jesus Cristo sofreu por nós, não arda de amor por ele e não tome firmes resoluções de fazer-se santa para não ser ingrata para com um Deus tão amoroso? É preciso fé; do contrário, se a fé não nos desse certeza, quem poderia aceitar o que um Deus fez em verdade por nós: “Ele se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo” (Fl 2,7). Quem poderia crer que Jesus é o mesmo ser supremo que é adorado no céu, vendo-o nascer num estábulo? quem o vê fugindo para o Egito, para livrar-se das mãos de Herodes, crerá que ele é onipotente? Quem o vê a agonizar de tristeza, no horto, o julgará felicíssimo? Vê-lo preso a uma coluna, pen¬dente de um patíbulo e crê-lo Senhor do universo?

Que espanto ver um rei que se fizesse verme, que se arrastasse pelo chão, que habitasse numa cova de barro e daí desse leis, crias¬se ministros e governasse o reino. Ó santa fé, revelai o que é Jesus Cristo, quem é esse homem que parece tão vil como todos os outros homens: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). S. João nos atesta que ele é Verbo eterno, é o Unigênito de Deus. E qual foi a vida que passou na terra esse Homem-Deus? Ei-la, referida por Isaías: “Nós o vimos… desprezado e como o último dos homens, como o varão das dores” (Is 53,2-3). Ele quis ser o homem das dores e não houve um instante em que ele estivesse livre de dores. Foi o homem das dores e o homem dos desprezos. Desprezado e como o último dos homens, sim porque Jesus foi o mais desprezado e maltratado, como se fosse o último e o mais vil de todos os homens. Um Deus preso por esbirros como um malfeitor! Um Deus flagelado como um escravo! Um Deus tratado como rei da burla! Um Deus morre pendente num lenho infame!! Que impressões não devem causar estes prodígios, em quem tem fé? E que desejo não deverão infundir de padecer por Jesus Cristo? Dizia São Francisco de Sales:

“As chamas do Redentor são outras tantas bocas que nos ensinam como devemos padecer por ele. Esta é a ciência dos santos, sofrer constantemente por Jesus, e assim tornaram-se depressa santos. E como não nos abrasaremos em amor, à vista das chagas que se encontram no seio do Redentor? que ventura podermos ser abrasados pelo mesmo fogo em que se abrasa o nosso Deus, e que alegria de sermos unidos a Deus pelas cadeias de amor”.

Mas, por que então tantos fiéis contemplam Jesus Cristo na cruz com olhos indiferentes? Assistem até na semana santa à comemoração de sua morte, mas sem nenhum sentimento de ternura ou gratidão, como se se tratasse de uma coisa irreal ou que nada tivesse conosco? Talvez não saibam ou não creiam no que dizem os evangelhos da paixão de Jesus Cristo? Respondo e digo que muito bem o sabem e crêem, mas não refletem nisso. Pois quem o crê e nisso pensa não poderá deixar de se abrasar no amor de um Deus que tanto padeceu e morreu por seu amor. “A caridade de Cristo nos impele” (2 Cor 5,14), escreve o apóstolo. Quer dizer que na paixão do Senhor não devemos considerar tanto as dores e os desprezos que ele padeceu, como o amor com que os suportou, pois se Jesus quis sofrer tanto, não foi unicamente para salvar-nos, já que para isso bastava uma simples oração sua, mas para nos patentear o amor que nos consagra e assim ganhar os nossos corações. E de fato, se uma alma pensa neste amor de Jesus Cristo, não poderá deixar de amá-lo: “A caridade de Cristo nos impele”, ela se sentirá presa e obrigada quase por força a dedicar-lhe todo o seu afeto. Por esta razão Jesus Cristo morreu por nós todos, para que não vivamos mais para nós, mas exclusivamente para esse amantíssimo Redentor, que por nós sacrificou sua vida divina.

Oh! felizes de vós, almas amantes, diz Isaías, que meditais continuamente na paixão de Jesus: “Tirareis com alegria águas das fontes do Salvador” (Is 12,3). Vós tirareis águas perenes de amor e confiança dessas fontes felizes que são as chagas de vosso Salvador. E como poderá duvidar ainda da divina misericórdia qualquer pecador, por enorme que seja, se ele se arrepende de suas culpas, à vista de Jesus crucificado, sabendo que o Padre eterno carregou sobre esse seu Filho dileto todos os nossos pecados, para que ele satisfizesse por nós? “O Senhor carregou sobre ele a iniqüidade de todos nós” (Is 53,6). Como poderemos temer, ajunta São Paulo, que Deus nos negue alguma graça depois de haver-nos dado seu próprio Filho? “O qual não poupou nem ainda seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos, como não nos deu também com ele todas as coisas? (Rm 8,32).