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Reflexões sobre os impropérios feitos a Jesus Cristo enquanto pendia na cruz

Capítulo IV

Por tua causa sofro impropérios.

1. A soberba, como dissemos, foi a causa do pecado de Adão e, por conseguinte, a ruína do gênero humano; por isso veio Jesus Cristo e quis reparar esse desastre com sua humildade, não desdenhando abraçar a confusão de todos os opróbrios que lhe prepararam seus inimigos, como já predissera Davi:

“Porque por vossa causa suportei o opróbrio e a vergonha cobriu a minha face” (Sl 68,8).

A vida inteira de vosso Redentor foi cheia de confusão e desprezos que recebeu dos homens, e ele não recusou suportá-los até à morte, a fim de nos livrar da confusão eterna:

“Tendo-lhe sido oferecido o gozo, sofreu a cruz, desprezando a ignomínia” (Hb 12,2).

Ó Deus, quem não choraria de ternura e não amaria a Jesus Cristo se cada um considerasse quanto ele sofreu naquelas três horas que esteve suspenso e agonizando na cruz? Todos os seus membros estavam feridos e doloridos, sem que um pudesse socorrer o outro. Nosso aflitivo Senhor nesse leito de dor não podia mover-se, estando com as mãos e pés cravados: todas as suas carnes sacrossantas cheias de feridas, sendo as das mãos e pés as mais dolorosas, visto que deviam sustentar todo o corpo. No ponto em que ele se apoiava naquele patíbulo, ou fosse sobre as mãos ou sobre os pés, aí aumentava a dor. Bem se poderia dizer que Jesus naquelas três horas de agonia sofreu tantas mortes quantos foram os momentos que ele esteve na cruz. Ó Cordeiro inocente, que tanto sofrestes por mim, tende compaixão de mim:

“Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende compaixão de mim”.

2. E essas penas externas de seu corpo eram as menos acerbas: muito maiores foram as penas internas da alma. Sua alma bendita estava toda desolada, privada de toda a gota de consolação ou alívio sensível: tudo nela era tédio, tristeza e aflição. Isso exprimiu-o com estas palavras:

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonais?”

E quase submerso neste mar de dores internas e externas, quer terminar sua vida nosso amável Salvador, como já tinha predito pela boca de Davi:

“Cheguei ao alto mar e a tempestade me submergiu” (Sl 68,3).

Eis que na mesma ocasião em que agonizava sobre a cruz e se avizinhava a morte, todos os que então o circundavam, sacerdotes, escribas, anciãos e soldados, se esforçavam por afligi-lo ainda mais com impropérios e derrisões. São Mateus escreve:

“E os que iam passando blasfemavam dele, movendo suas cabeças” (Mt 27,39).

Davi já o predissera, quando se referia à pessoa de Cristo:

“Todos os que me viam zombavam de mim, falavam com os lábios e moviam suas cabeças” (Sl 21,8).

Aqueles que passavam diante dele exclamavam:

“Olá, tu que destróis o templo de Deus e em três dias o reedificas, salva-te a ti mesmo; se és o Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,40).

Diziam: tu te gloriaste de destruir o templo e de novamente reerguê-lo em três dias. Jesus, porém, não havia dito que podia destruir o templo material e reconstituí-lo em três dias, mas “Destruí este templo e em três dias recompô-lo-ei”. (Jo 2,19). Com estas palavras quis ainda frisar o seu poder, nos propriamente falou em alegoria (como escreve Eutímio e outros), predizendo que os judeus, matando-o, separariam sua alma de seu corpo, mas ele dentro de três dias ressuscitaria.

Escarnecido em seu poder.

1. “Salva-te a ti mesmo”. Homens ingratos! Se este grande Filho de Deus, fazendo-se homem, quisesse salvar-se a si mesmo, não teria escolhido espontaneamente a morte. “Se és o Filho de Deus, desce da cruz”. Mas se Jesus descesse da cruz e não completasse a nossa redenção com a sua morte, não poderíamos mais nos livrar da morte eterna.

“Não quis descer, diz Santo  Ambrósio (Lib. 10 in Lc), para não descer em seu favor, mas para morrer por mim”.

Escreve Teofilacto que eles assim falavam por instigação do demônio, que procurava impedir a salvação que Jesus nos devia alcançar por meio da cruz (In cap. 15 Mc).E ajunta que nosso Senhor não teria subido à cruz se quisesse de lá descer sem consumar a nossa redenção. Diz igualmente São João Crisóstomo que os judeus assim falavam para que ele morresse como um impostor na presença de todos, apontando-o como incapaz de livrar-se da cruz depois de haver afirmado ser o filho de Deus. (In Mt 27,42).

Nota ainda o mesmo São João Crisóstomo que mui erradamente diziam os judeus:

“Se és o filho de Deus, desce da cruz”.

Pois se Jesus tivesse descido da cruz antes de morrer, não seria o Filho de Deus prometido, que com sua morte nos deveria salvar.

“Porque o Filho de Deus não desce da cruz, pois ele veio justamente para ser crucificado por nós” (In Mt 27).

O mesmo escreve Santo Atanásio dizendo que nosso Redentor queria ser reconhecido como verdadeiro Filho de Deus, não descendo da cruz, antes nela permanecendo até à morte (Serm. de pass. Domini). Pois que isso já estava predito pelos profetas, que nosso Redentor deveria morrer crucificado, segundo o testemunho de São Paulo:

“Cristo nos remiu da maldição da lei, tornando-se maldito por nós, porque está escrito: amaldiçoado todo aquele que é pendurado no lenho” (Gl 3,13).

2. São Mateus continua a referir os outros impropérios que os judeus dirigiam a Jesus:

“Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo” (Mt 27,52).

Tratavam-no assim de impostor a respeito dos milagres por ele operados, restituindo a vida a muitos mortos, e de incapaz de salvar a sua própria vida. Mas responde-lhes São Leão que então não era o tempo conveniente para o Salvador ostentar o seu poder divino e que ele não devia descurar a redenção humana para impedir as suas blasfêmias (Serm. de pass. 27 c. 2). S. Gregório aduz um outro motivo por que Jesus não quis descer da cruz.

“Se descesse então da cruz, não nos teria dado o exemplo da paciência (Hom. 21 in Evang.).

Muito bem poderia Jesus Cristo libertar-se da cruz e de tantos impropérios, mas não era o tempo oportuno de demonstrar o seu poder, mas de ensinar-nos a paciência nos trabalhos para obedecer à vontade de Deus e por isso não quis Jesus livrar-se da morte, antes de cumprir a decisão de seu Pai e para não privar-nos desse grande exemplo de paciência.

“Porque ensinava a paciência, diferia a ostentação do poder” (S. Agost. Trat. 37 in Jo.).

A paciência que praticou Jesus Cristo na cruz, suportando a confusão de tantos impropérios que os judeus lhe fizeram, alcançou-nos a graça de sofrer com paciência e paz as humilhações do mundo. São Paulo, falando da ida de Jesus Cristo ao Calvário carregado da cruz, exorta-nos a acompanhá-lo, dizendo:

“Saiamos, pois, ao seu encontro fora dos arraiais, levando sobre nós o seu opróbrio” (Hb 13,13).

Os santos, quando injuriados, não pensavam em vingar-se nem se perturbavam, antes sentiam-se consolados vendo-se desprezados como Jesus Cristo. Não nos envergonhemos, portanto, de abraçar por amor de Jesus Cristo os desprezos que nos forem feitos, desde que Jesus tantos sofreu por nosso amor. Meu Redentor, não procedi assim no passado, mas no futuro quero sofrer tudo por vosso amor: dai-me força para cumpri- lo.

Escarnecido em sua confiança.

1. Os judeus, não satisfeitos com as injúrias e blasfêmias proferidas contra Jesus Cristo, se revoltam também contra Deus Padre, dizendo:

“Confiou em Deus, que ele o livre, se o preza, disse ele que era o Filho de Deus” (Mt 27,53).

Esta exclamação sacrílega dos judeus já fora predita por Davi, quando fala em nome de Cristo:

“Todos os que me viram, escarneceram de mim; falaram com os lábios e abanaram suas cabeças: esperou no Senhor, que ele o livre e que o salve se o tem em apreço” (Sl 21,8).

Ora, os que assim falavam foram chamados por Davi, no mesmo salmo, touros, cães e leões:

“Fostes touros me cercaram. Porque muitos cães me obsediaram. Salvai-me das fauces do leão” (Sl 21,13).

Assim, dizendo os judeus “que o livre se o estima”, declararam ser eles os touros, cães e os leões preditos por Davi. Estas mesmas blasfêmias, que haveriam um dia de pronunciar contra o Salvador e contra Deus, foram também preditas pelo sábio:

“Ele assegura que tem a ciência de Deus e se chama a si Filho de Deus e se gloria de ter a Deus por Pai… Se é verdadeiro Filho de Deus, ele o amparará e o livrará das mãos dos contrários. Façamos- lhe perguntas por meio de ultrajes e tormentos, para que saibamos o seu acatamento e provemos a sua capacidade: condenemo-lo a uma morte torpíssima” (Sb 2,13-20).

Os príncipes dos sacerdotes estavam cheios de inveja e ódio de Jesus Cristo e por isso o injuriavam. Mas ao mesmo tempo não estavam isentos do temor de qualquer grande castigo, não podendo mais negar os milagres feitos pelo Senhor. Assim, todos os sacerdotes e príncipes da sinagoga estava inquietos e temerosos, querendo por isso assistir pessoalmente à sua morte, para, dessa maneira, se libertarem do temor que os atormentava. Vendo-o, pois, já pregado na cruz e que seu Pai não o livrara dela, lançavam-lhe em rosto, com a maior audácia, a sua fraqueza e a presunção de se ter dado por Filho de Deus. Diziam: Pois que confia em Deus, a quem chama seu Pai, porque então Deus não o livra, se o ama como filho? Enganam- se, porém, grosseiramente, os malvados, pois Deus amava a Jesus Cristo e o amava como filho e justamente o amava porque estava sacrificando sua vida na cruz pela salvação dos homens, em obediência a seu Pai. E isso mesmo dizia o próprio Jesus:

“Eu dou minha vida por minhas ovelhas… por isso me ama o Pai, porque eu entrego minha vida por elas” (Jo 10,15 e 17).

O Pai já o havia destinado para vítima daquele grande sacrifício, que devia trazer-lhe uma glória infinita, sendo o sacrificado homem e Deus, e ocasionar a salvação de todos os homens.. Mas se o Pai tivesse livrado Jesus da morte, o sacrifício teria ficado incompleto e dessa forma o Pai ficaria privado daquela glória e os homens, conseqüentemente, da salvação.

2. Escreve Tertuliano que todos os opróbrios feitos a Jesus Cristo foram um remédio secreto contra a nossa soberba. Essas injúrias, que eram injustas e indignas dele, eram necessárias à nossa salvação e não dedignadas por um Deus que quis padecer tanto para salvar o homem (Lib. 2 cont. Mc c. 7). Envergonhemo-nos, pois, nós que nos gloriamos de ser discípulos de Jesus Cristo, de suportar com impaciência os desprezos que recebemos dos homens, desde que um Deus feito homem os sofre com tanta paciência por nossa salvação. E não nos envergonhemos de imitar a Jesus Cristo, perdoando a quem nos ofende, ainda mais que ele afirma que no dia do juízo se envergonhará daqueles que, durante a vida, dele se envergonharam: “quem se envergonhar de mim e de minhas palavras, desse se envergonhará o Filho do homem quando vier em sua majestade” (Lc 9,26).

Ó meu Jesus, como posso eu queixar-me de qualquer afronta que recebo, eu que tantas vezes mereci ser calcado pelos demônios do inferno. Ah, pelo merecimento de tantos desprezos que sofrestes na vossa paixão, dai-me a graça de sofrer com paciência todos os desprezos que me forem feitos, por vosso amor, que por meu amor tanto suportastes. Eu vos amo sobre todas as coisas e desejo padecer por vós, que tanto padecestes por mim. Tudo espero de vós, que me resgatastes com vosso sangue. E também espero na vossa intercessão, ó minha Mãe Maria.

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