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Do segundo fruto da quinta palavra

Capítulo 21: Do segundo fruto da quinta palavra
Ocorre-me outra consideração, e não de pequena utilidade, quando medito na sede de Cristo crucificado. Parece-me, pois que o Senhor disse: Tenho sede, no mesmo sentido em que disse à samaritana: Dá-me de beber; porque pouco depois, explicando o mistério do que lhe dissera, acrescentou:

“Se conhecesses o dom de Deus, e quem é que te pede, que lhe dês de beber, talvez tu lhe pedisses, que te desse água viva”

Como poderá, porém ter sede, quem é fonte de água viva? Não falava Cristo de si, quando no Evangelho: Se alguém tem sede, venha a mim e beba? (Jo 7) e não é Ele mesmo aquela pedra, de que fala o Apóstolo aos Coríntios (1Cor 10): Bebiam da pedra, que os seguia, e a pedra era Cristo? Não é Ele aquele mesmo que diz aos Judeus por Jeremias (Jer 2): Abandonaram-me, sendo eu a fonte d’água viva; e para si cavarem cisternas, cisternas rotas, que não podem conter a água. Parece-me, pois que estou vendo Cristo na Cruz, como numa elevada atalaia, vendo todo o mundo cheio de gente sequiosa, e desfalecida pela sede, e que o mesmo Senhor, compadecido, quando sofria a Sua sede corporal, daquela sede geral do gênero humano, gritara: Tenho sede, isto é, estou sem dúvida sequioso, porque se esgotou já o humor do meu corpo: esta sede, porém breve terminará, mas a minha maior sede é de que os homens conheçam pela fé que eu sou a verdadeira fonte de água viva, e de que venham a mim e bebam, e não tornem a ter mais sede.

Ó felizes nós, se com toda a atenção possível ouvíssemos este sermão do Verbo encarnado! Pois não padecem quase todos os homens a sede ardentíssima e insaciável de beberem as águas nocivas e enlodadas dos objetos transitórios e caducos que vulgarmente se chamam bens, dinheiro, honras e prazeres? E quem, bebendo desta água, não tornou a ter sede? E quem foi que, seguindo a doutrina de Cristo, nosso Mestre, bebendo da água da sabedoria celeste e da caridade divina, não sentiu logo extinguir-se-lhe a sede dos objetos mundanos e começar a desejar a vida eterna, e apetecer os bens do Céu, abandonando os importunos cuidados, de adquirir e acumular bens terrenos? Esta água corrente, que não sobe da terra, mas que desce do Céu, e que o Senhor que dela é fonte, nos concederá, se a pedirmos com fervorosas súplicas, e com fontes de lágrimas, não só nos apagará a sede das coisas, terrenas, mas também nos será comida e bebida, que nunca nos há de faltar durante toda a nossa peregrinação. Diz Isaías:

“Todos os que têm sede, venham ás águas” (Is 55)

E, para que não cuides que é simples água, ou então água que te custará muito caro, acrescenta:

“Apressai-vos, vinde, e comprai sem dinheiro, e sem permutação alguma, vinho e leite”

Diz Isaías, desta água comprai, porque ela não se adquire sem algum trabalho, isto é, sem a própria disposição: consegue-se, porém, sem por ela se dar dinheiro ou coisa que o valha, porque se dá de graça, nem podia achar-se preço algum que lhe correspondesse; e ao que pouco antes chamara água, chama agora vinho e leite, por ser uma coisa preciosíssima, que juntamente compreende a virtude, ou perfeição da água, do vinho, e do leite.

A verdadeira sabedoria e caridade é representada pela água, porque refrigera os ardores da concupiscência; pelo vinho, porque aquenta e embriaga a alma com a mais sobriedade; pelo leite, porque nutre com um agradável alimento, principalmente os meninos em Cristo, segundo diz o Apóstolo São Pedro:

“Como meninos recém-nascidos, desejai o leite” (1Pd 2)

Esta mesma verdadeira sabedoria e caridade, oposta à concupiscência carnal, é aquele jugo suave e peso leve (Mt 11), ao qual, aqueles que de boa vontade se submetem, acham para as suas almas o verdadeiro e perdurável descanso, de modo que não tornam a sofrer sede, nem precisam de tornar a tirar água dos poços terrenos. Este dulcíssimo descanso das almas abriu as solidões, encheu os mosteiros, reformou o clero, e até levou os casados a não pequena moderação. O palácio do imperador Teodósio Junior parecia-se certamente com um grande mosteiro (1), e a casa do conde Elzeario, representava um mosteiro pequeno (2): nem naquele palácio, nem naquela casa havia questões ou ralhos; mas ressoavam freqüentíssimamente os salmos e cânticos sagrados. Isto tudo devemos nós a Cristo, que com a Sua sede apagou a nossa sede, e como fonte perene de tal sorte regou com as águas que incessantemente dela correm os campos dos nossos corações, que eles não receiam secar, só se por instigação do demônio (o que Deus não permita) se apartar da mesma fonte.


Referências:

(1) Soc. liv. 7, cap. 22
(2) Vide Sur. tom. 5 dic 27 Septembris

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 178-182)