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Do segundo fruto da sétima palavra

Capítulo 33: Do segundo fruto da sétima palavra
Será segundo fruto, e utilíssimo, aprendermos a dizer frequente vezes a oração que Cristo, nosso Mestre, nos ensinou, quando, estando a ir para Seu Pai, disse:

“Nas tuas mãos entrego o meu espírito”

Mas porque Ele se não via na mesma necessidade em que nós nos vemos, porque era Filho e Santo, e nós somos servos e pecadores; por isso a Igreja, nossa Mãe e Mestra, nos ensina a dizermos repetidas vezes a mesma oração, porém inteira, como está no Salmo de Davi, e não metade dela, como Cristo a disse. No Salmo é assim:

“Nas tuas mãos entrego o meu espírito; foste tu que me remiste Senhor Deus de verdade” (Sl 30)

Cristo omitiu a segunda parte, porque era Ele o redentor, e não o remido, porém não devemos omiti-la nós, que fomos remidos com o Seu precioso sangue. Demais Cristo pediu a seu Pai na qualidade de seu Filho unigênito, nós pedimos a Cristo na qualidade de Seus remidos, por isso não dizemos: Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, mas sim: Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito, fostes tu que me remiste Senhor Deus de verdade, do mesmo modo como o protomártir, Santo Estêvão, disse, estando a morrer:

“Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (At 7)

Enfim a Igreja, nossa Mãe, nos ensina que devemos repetir esta oração em três ocasiões:

Primeiramente todos os dias a Completas, como sabem os que leem as horas canônicas [Liturgia das Horas];

Em segundo lugar, quando estamos para receber a Sacrossanta Eucaristia, depois do Senhor, não sou digno, o Sacerdote diz primeiramente por si, e depois pelos que estão para comungar: Nas tuas mãos, Senhor, entrego, o meu espírito; na saída desta vida finalmente são todos os fiéis exortados a dizerem: Nas tuas mãos, Senhor, etc. Quanto às Completas não há dúvida, porque se diz: Nas tuas mãos, Senhor, etc., pois esta hora costuma rezar-se no fim do dia, e como diz São Basílio (1) ao anoitecer, e porque a morte pode facilmente surpreender-nos, entregamos a nossa alma ao Senhor, para que, se a morte vier repentina, não venha sem contra ela nos termos precatado. É fácil dar a razão, porque ao receber a Sacrossanta Eucaristia se deve dizer: Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito, não é outra, senão ser aquele ato muito perigoso, e juntamente muito necessário, pois nem sem perigo se pode repetir frequentes vezes, nem sem perigo se pode omitir:

“Todo aquele que come indignamente o corpo do Senhor, come a sua condenação” (1Cor 11)

Isto é, toma por suas mãos a condenação, e o que não come o corpo do Senhor, não come o pão da vida, e a própria vida (Jo 9). Assim de toda a parte nos vemos em aflições, como aqueles que, com muita fome, não tem a certeza de que seja alimento ou veneno o que se lhes dá a comer. Por isso com razão, temendo e tremendo, dizemos:

“Senhor, não sou digno de que Vós entreis na minha morada, se Vós pela Vossa piedade me não derdes o merecimento, por isso dizei uma só palavra, e a minha alma será salva; mas, porque também tenho dúvida, se Vos dignareis curar as minhas chagas; nas Vossas mãos entrego o meu espírito, para que nesta tão terrível conjuntura me proteja a minha alma, que remistes com o Vosso precioso sangue”

Se muitos nisto pensassem, não seria tão grande o número dos que se dedicam ao sacerdócio, para depois se sustentarem com o produto da Missa diária. Os que assim fazem não se desvelam por chegarem à sagrada Mesa com a devida preparação, porque o seu fim é mais o alimento do corpo, do que o da alma. Também há muitos, que vivendo nos palácios dos prelados ou dos príncipes, se apresentam aquela tremenda Mesa sem a devida preparação, levados a isso pelo respeito humano, para não desagradarem ao seu Príncipe ou ao seu Prelado, não se apresentando à comunhão nos dias determinados. Que se há de então fazer? Será mais útil comungar mais raras vezes? Não, pelo contrário, é utilíssimo que se comungue frequentes vezes com a devida preparação, pois quanto menos forem elas menos dispostos nos tornamos para participarmos da celeste Mesa, como sabiamente diz São Cirilo (2).

Resta o tempo da proximidade da morte, no qual é necessário repetir com grande afeto da alma esta oração:

“Nas tuas mãos Senhor, entrego o meu espírito; porque Vós me remistes, Senhor Deus de verdade”

Pois é aquela a ocasião em que verdadeiramente se trata do mais importante de tudo, porque se a alma ao sair do corpo, for cair nas mãos do Diabo, não tem meio nenhum de se salvar, e pelo contrário, se for recebida nas paternais mãos de Deus, não tem mais a recear o poder dos seus inimigos. Por isto deve repetir-se muitas vezes com um gemido inefável, com uma verdadeira e perfeita contrição, e com muita confiança na infinita misericórdia de Deus: Nas vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito, e porque naquela hora não há tentação mais perigosa, do que a da desesperação, para o que passaram uma vida descuidada, por julgarem por isto que será já tardio o seu arrependimento, deve opor-se aquela tentação o seu antídoto, o Escudo da Fé; pois está escrito:

“Em qualquer dia, que o pecador chorar os seus pecados eu esquecerei deles” (3)

E deve lançar-se mão do capacete da Esperança, para se confiar na infinita misericórdia de Deus, e repetir daquele mesmo modo:

“Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito”

Nem deve esquecer-se aquela razão, que é a base da nossa Esperança:

“Porque Vós me remistes, Senhor Deus de verdade”

Quem o indenizará do sangue inocente que por nós derramou? Quem há de restituir-Lhe o preço por que nos comprou? Diz Santo Agostinho no livro nono das suas Confissões, ensinando-nos assim a nós todos, que tenhamos absoluta confiança na redenção operada por Jesus Cristo, a qual não poderá deixar de produzir o seu fruto, senão quando nós mesmos lhe opusermos o obstáculo da impenitência ou da desesperação.


Referências:

(1) In regulis, fusius explicatis, quaest. 37
(2) Lib. 4 in Jo, cap. 17
(3) Ezech. 33 S. Leop. ep. ad Tehodorum Episcopum

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 264-269)