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Do quarto fruto da última palavra

Capítulo 35: Do quarto fruto da última palavra
Segue-se o quarto fruto, que se pode colher da felicíssima atenção com que foi ouvida a oração do Senhor, para que nós, animados com tão lisonjeiro resultado, mais nos inflamemos em Lhe encomendarmos o nosso espírito, pois com toda a verdade o Apóstolo deixou escrito (Hb 5) que Nosso Senhor Jesus Cristo fôra atendido pela Sua reverência. Tinha o Senhor pedido a seu Pai, como acima demonstramos que não fosse demorada a ressurreição do Seu corpo, foi ouvida aquela oração, para que a ressurreição se não demorasse mais tempo do que o preciso para se acreditar, que sem dúvida o corpo do Senhor morrera, pois se não pudesse provar-se que assim fôra, a Sua ressurreição, e a fé cristã ficava sem base.

Teve Cristo de estar no túmulo quarenta horas pelo menos, porque tinha de se converter em realidade a figura do Profeta Jonas, a qual, o mesmo Senhor diz no Evangelho (Mt 22), que teve lugar, para ser símbolo da Sua morte, porém, para que a ressurreição de Cristo se verificasse com a maior celeridade possível, e para mais manifesta prova de que a Sua oração foi atendida, os três dias e três noites que Jonas esteve no ventre da baleia, quis a divina Providência que na ressurreição de Cristo fossem reduzidos há um dia completo e duas partes de dois dias, espaço de tempo, que, não própria, mas figuradamente, se podia dizer, que compreende três dias e três noites. O Pai Eterno atendeu a oração de Cristo não só acelerando o tempo da Sua ressurreição, mas até fazendo ressuscitar o corpo morto com uma vida incomparavelmente melhor do que a antecedente, pois esta era mortal, e imortal ficou sendo a segunda. Cristo, que ressurgiu dos mortos, já não torna a morrer, nem a morte poderá jamais sobre Ele, como disse o Apóstolo (Rm 6). A vida de Cristo antes dEle morrer era passível, isto é sujeita a sofrimentos, à fome, à sede, ao cansaço, aos ferimentos, foi-Lhe dada à vida impassível, absolutamente isenta de padecimento. O corpo de Cristo era antes da Sua morte animal, a ressurreição tornou-o espiritual, isto é, de tal sorte subordinado ao espírito, que pode instantaneamente transportar-se aonde o espírito quiser.

A causa, porque a oração de Cristo foi tão facilmente atendida, dirá o Apóstolo: Pela sua reverência; palavra, que na língua grega significa temor reverencial, o qual em Cristo para com seu Pai foi no mais subido grau, e por isso Isaías (Is 11) descrevendo os dons do Espírito Santo, que se deram na alma de Cristo, diz dos outros dons:

“Descansará sobre ele o espírito da sabedoria e do entendimento, o espírito do conselho e da fortaleza, o espírito da ciência e da piedade”

E do temor reverencial diz:

“E enchê-lo-á o espírito do temor do Senhor”

Por isso mesmo que a alma de Cristo estava cheia, quanto podia ser, do temor reverencial para com seu Pai, seu Pai se comprazia todo nele, segundo diz São Mateus:

“Este é o meu Filho muito amado em quem tenho posto toda a minha complacência” (Mt 3 e 7)

E assim como o Filho reverenciava o mais possível seu Pai, também seu Pai atendia sempre os rogos de seu Filho, e Lhe outorgava quanto Ele Lhe pedia.

Disto devemos nós aprender, que, se quisermos ser sempre ouvidos do Pai celeste, e conseguir tudo o que Lhe pedirmos temos de imitar Cristo, reverenciando sumamente o Pai celeste, sem preferirmos ao Seu respeito outro algum. Fazendo assim conseguiremos quanto pedirmos, e principalmente o que deve ser o mais ardente dos nossos desejos, que na hora da nossa morte Deus tenha a nossa alma por encomendada ao sair do corpo, quando o Leão dela se aproxima rugindo e preparado, para fazê-la sua preza. Não se julgue, porém, que se presta reverência a Deus só pelo fato de ajoelhar, de descobrir a cabeça, ou por outros desta natureza. Não é só isto o que quer dizer a expressão temor reverencial, pois significa principalmente o grande temor de ofender a Deus, o horror íntimo e perpétuo do pecado, não pelo receio do castigo, mas pelo amor de Filho, a seu Pai. Tem a devida reverência filial aquele que nem ao menos se atreve a pensar num pecado, principalmente mortal.

“Bem-aventurado, diz Davi (Sl 122), quem teme o Senhor, fará quanto possa, para não infringir os Seus mandamentos”

Isto é, tem temor de Deus, como se deve ter, aquele que muito diligência não faltar ao cumprimento de nenhum dos Seus preceitos. Era assim que a santa viúva Judite tinha temor de Deus, como lemos no seu livro (Jud 8), pois sendo ainda muito moça, formosíssima e muito rica, vivia depois da morte de seu marido, encerrada num quarto com as suas criadas, para nem pecar, nem ser causa de pecado, e usando de cilicio, e jejuando todos os dias à exceção dos das festas de Israel. Eis o zelo, com que mesmo na antiga Lei, que permitia maior liberdade do que permite o Evangelho, uma mulher, ainda na adolescência e rica, se precaveu contra os pecados carnais, só porque estava possuída do temor de Deus. De um zelo igual faz menção a Santa Escritura, falando do Santo Jó, dizendo (Jó 31), que ele tinha constatado com os seus olhos, para não poder nem pensar sequer em alguma donzela; isto é, não queria absolutamente ver nenhuma, para que de a ver não lhe viesse algum pensamento desonesto. E porque evitava Jó isto com tanto cuidado? Porque era nele grande o temor de Deus, como ele mesmo mostra pelo que depois diz:

“Que parte teria então em mim o Senhor do Alto?”

Querendo com isto dizer:

“Se um pensamento, torpe por qualquer modo, porque o fosse, me manchasse, deixava de ser parte de Deus, e deixava Deus de ser parte minha”

Se eu quisesse apresentar exemplos dos Santos do Novo Testamento, não podia chegar ao fim, por ser interminável o seu numero. É assim nos Santos o temor de Deus: se nós de tal temor nos enchêssemos, nada haveria que ao Pai celeste pedíssemos que Ele da melhor vontade nos não fizesse.


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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 273-279)