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Do quarto fruto da sexta palavra

Capítulo 28: Do quarto fruto da sexta palavra
Pode colher-se um quarto fruto da explicação da quarta palavra: Tudo está consumado. Sendo verdade, como não pode deixar de o ser, que por justo juízo de Deus Cristo, livrando-nos da escravidão do Diabo, nos passou para o reino do Filho da sua predileção; indaguemos diligentemente, e não nos cansemos de indagar a causa, enquanto não a descobrirmos, porque tamanho número de gente antes queria tornar-se escravo do inimigo do gênero humano, para com ele arder eternamente nas chamas do inferno, do que servir a Cristo, Príncipe benigníssimo; e, mais ainda do que isto reinar felicíssima e certissimamente com Ele. Eu não acho outra senão que no serviço de Cristo se deve começar pela cruz, e que é necessário crucificar a carne com todos os seus vícios e apetites. Esta amarga bebida, este cálice de absinto, nauseia o homem, fraco por natureza; e é muitas vezes o motivo porque ele antes quer continuar na enfermidade, do que curar-se, tomando aquele remédio. Se o homem não fosse homem, mas bruto, ou homem em delírio e privado da razão, ainda poderia conceder-lhe que se governasse pelas sensações e apetites; porém, sendo o homem um ser racional, conhece certamente, ou pode conhecer que, quem mandou que a carne fosse crucificada com os seus vícios e apetites, não só quer o comprimento deste seu preceito, mas até ajuda, mais ainda, previne com o auxílio da sua graça do mesmo modo, como um médico prudente sabe preparar um copo de remédio amargoso, de sorte que não custo a tomar. De mais, se cada um de nós fosse o primeiro a quem se dissesse: Toma a tua cruz, e segue-me; talvez pudesse ficar indeciso, e desconfiar das suas forças, não se atrevendo nem mesmo a chegar-lhe as mãos, por acreditar, que não tinha forças de poder com ela; porém, tendo sido tantos antes de nós, não só homens, mas até meninos e meninas, os que esforçada e valentemente tem levado a sua cruz atrás de Cristo, e tem crucificado a carne com os seus apetites, que receio podemos nós ter? Porque vacilamos? Santo Agostinho (1), convencido por este argumento, venceu a concupiscência carnal que por muito tempo tinha julgado invencível, pois apresentou aos olhos da sua alma por meio de um resumo de memória muitos e muitas, que ofendiam a castidade, muitos e muitas que se conservaram virgens, e dizia a si mesmo:

«Porque não hás de tu poder, como estes e estas puderam? Nem eles nem elas puderam por força sua, mas por força do Senhor seu Deus»

E o que dizemos da concupiscência da carne, pode também dizer-se da concupiscência dos olhos, que é a avareza, e da soberba da vida, pois não há vício nenhum, que com o auxílio de Deus não possa ser crucificado; nem há o perigo de que Deus não queira auxiliar-nos, porque São Leão nos diz:

«Justamente de nós exige o cumprimento dos seus preceitos, porque se antecipa com o auxílio» (2)

São por isso dignos de compaixão, para não dizer mentecaptos e astutos, os que podendo sujeitar-se ao jugo suave e leve de Cristo (Mt 11), e conseguir nesta vida a tranqüilidade das suas almas, e na futura reinar com o mesmo Cristo, querem antes trazer, em obediência ao Diabo, cinco cangas de bois, e servir aos estímulos da carne com trabalhos e dores (Lc 14), e por fim sofrer com seu senhor, o Diabo, os perpétuos tormentos do inferno.


Referência:

(1) Liv. 8, Confiss. cap. 11
(2) Serm. 16, de Pass.

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 237-240)