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Sermão da Penitência

1º Domingo da Quaresma - Sermão da Penitência

Sermão para o 1º Domingo da Quaresma

SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET

Exordio. — Tempo. — Sua perda. — Três dificuldades que atrasam a sua conversão.

1.º Ponto. — Espírito do homem sempre extremo. — Da presunção do perdão ao desespero do mesmo perdão: Spe desperati. Do fato da misericórdia e da justiça serem infinitos resulta de serem aparentemente compatíveis. Qual é a misericórdia divina? Justiça na graça. A remissão dos pecados. Cada um deve fazer uma confissão sincera, e não procurar meios vis para se eximir das culpas. Devemos alegar defesa perante um juiz, e confessarmo-nos na presença dum padre. Maneira diferente de alegar defesa perante um e outro.

2.º Ponto. — Não há coisa que mais se deixe subjugar do que a vontade individual. Força do temperamento e do hábito. Muro impassibilitatis, Santo Agostinho. Um e outro podem vencer-se pelo temor. A penitência demanda sacrifício. Exemplo de Davi: Motiva poenitendi, Santo Agostinho. Penitência com sacrifício, porque é um ato de geração: In dolore paries filios tuos (G 3, 16). Geração própria.

3.º Ponto. — Do tempo, Dies mali, São Paulo. O tempo é uma ilusão. A vida ora nos parece longa, ora nos parece curta. A ciência do tempo constitui um dos segredos de Deus. O homem deseja penetrar nessa ciência. Nec filius hominis.

Contra os que aguardam o último momento. Tempo dos Testamentos: São João Crisóstomo, São Gregório Nazianzeno.

Exortação a uma rápida penitência.

Adjuvantes autem exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis
E nós, como cooperadores, vos exortamos que não recebais a graça de Deus em vão (2Cor 6, 1)

Razão temos, cristãos, em censurarmos os pecadores pela sua indesculpável infidelidade; porque não há graça, nem remédio, nem espécie alguma de socorro implorado a Deus para os salvar do abismo, que se lhes não ofereça todos os dias por meio dessa misericórdia divina que lhes não pede a morte, mas a conversão. Para nos convencermos disto, irmãos, dignai-vos examinar atentamente o que pode desejar um homem a quem o remorso, da sua consciência aconselha a que enverede pelo verdadeiro caminho. O primeiro pensamento que lhe acode é o dos seus pecados, cujo horror e grande numero o fazem duvidar do perdão. Mas nós, a quem Deus aprouve conceder o ministério da paz e da reconciliação, concedemos-lhe também a indulgência e a remissão dos seus crimes, em nome de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos remiu com o Seu sangue! Ao receber este balsamo, começa ele a respirar, a sentir alívio; mas logo uma outra dificuldade lhe surge no espírito, lançando-o em novos cuidados: é a obrigação de mudar de vida, de corrigir as suas inclinações corruptas, e a ação dos hábitos inveterados, fazendo-se sentir os obstáculos que lhe parecem de todo invencíveis.

Para o tranquilizar desse receio, dizemos-lhe que nas mãos de Deus e nos segredos da sua onipotência existem remédios que, além de serem muito eficazes pois que curam infalivelmente todos aqueles que os aplicarem, são também acessíveis a todos, visto que se podem sempre ministrar a quem os pedir.

E deste modo, não podendo os maiores pecadores duvidar do perdão, quando se convertem, nem da conversão, quando a compreendem, só carecem de tempo bastante para realizarem essa obra, sobre o que a nós, cristãos, não compete providenciar, mas a Deus, que se responsabiliza pelo próprios efeitos dela.

Tendo poder para lhes prolongar a vida e para lhes ocultar a ingratidão, vai também retardando a época em que deve manifestar a sua ira, dando a conhecer claramente que deseja dar latitude a penitência.

Por aqui se vê, irmãos, que Deus não recusa aos pecadores coisa alguma do que eles necessitam. De três coisas carecem eles: da misericórdia divina, do poder divino e da paciência divina. Da misericórdia para lhes perdoar, do poder para os socorrer, e da paciência para os guardar. E tudo isto Deus concede liberalmente: a misericórdia promete o perdão, o poder oferece o socorro e a paciência concede a delonga.

Que nos resta agora, se não dizermos aos pecadores com o Apóstolo:

Adjuvantes autem exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis? – «Nós vos exortamos, irmãos, que não recebais a graça de Deus em vão»

Não recebais em vão a graça da remissão que promete abolir os vossos crimes; não recebais em vão a graça da conversão do vosso íntimo que se oferece para corrigir os vossos costumes depravados; e finalmente, não recebais em vão essa terceira graça tão considerável, que vos é concedida em proveito das duas outras, e que vem a ser o tempo, esse tempo precioso de que um momento sequer deve valer para vós uma eternidade. E aqui tendes, irmãos, três coisas importantes para excitar os homens a penitência, e das quais faço a divisão do meu discurso.

PRIMEIRO PONTO

O homem tem, por índole, o capricho de facilmente se deixar impulsionar até aos extremos mais opostos. Assim, o doente, alucinado pela febre, perde a esperança de obter melhoras; mas quando se acha restabelecido, já imagina que é imortal.

O nauta, atemorizado com os horrores da tempestade, dirige as ondas um eterno adeus; mas assim que o mar entra em bonança, reembarca ele já sem receio como se tivesse poder para dominar os ventos e as tempestades, no caso de o assaltarem de novo. Um homem que imaginou ser descoberto numa intriga perigosa logo deixa gostosamente de frequentar a corte; mas, sabendo que saiu triunfante nessa intriga, de novo volta a frequentá-la como se tivesse exaurido toda a cólera do acaso.

Este procedimento tão irregular e tão desordenado, manifesta-se principalmente nos pecadores, mas duma maneira, oposta; porque essa louca e temerária confiança que os alenta nos seus pecados, conduz-los finalmente ao desespero, do desespero a esperança, e, na veemência dos crimes que praticam, confiam em Deus quanto a impunidade desses crimes. Depois, vergados ao peso deles, já não creem no perdão de Deus, «e assim vão de pecado em pecado, caindo numa ruína inevitável, ralados pelo desespero que lhes deu a esperança» – Feruntur magno impetu, nullo revocante, spe desperati (S. Agost., Serm. XXm n. 4).

Isto é uma verdade, cristãos; e senão vede esse homem, que, na ardência duma paixão vil, diz que parece impossível haver um Deus, de tamanha grandeza e de tamanha bondade, que deseje tiranizar as suas criaturas e mostrar o seu poder com a destruição dum frágil navio; e que não é digno dum Deus julgar-se ofendido pelas ações praticadas por um ser impotente, nem tão pouco revoltar-se contra esse ser, que não dispõe de meio algum de defesa. Depois de ter assim discorrido por muito tempo, esse homem reflete melhor e reconhece quanto é audaciosa a tentativa dum ser impotente revoltar-se contra Deus; e então dirige a si mesmo estas palavras do profeta ao capitão dos assírios:

«Contra quem blasfemaste? Contra quem ergueste a voz e volveste o olhar soberbo?»Quem blasphemasti? Contra quem exaltasti vocem tuam, et elevasti in excelsum oculos tuos? 

«Foi contra o Santo de Israel», foi contra um Deus Todo-Poderoso: Contra Sacntum Isarel (Rs 14 ,22). Sente-se então confundido no meio da sua estranha audácia, e o que a princípio o concitava ao trabalho esforçado mas inútil, de obter toda a misericórdia, mostra-lhe agora a impossibilidade de aplacar a justiça, tal é a prodigiosa loucura que o acomete, e cuja causa aparente é o seguinte: É que tanto uma como outra dessas qualidades, tanto a a misericórdia como a justiça, são duma colossal e infinita grandeza; de maneira que aquela que primeiro se encara ocupa por tal forma o pensamento, que não deixa livremente examinar a segunda. Além disso, parecendo à primeira vista qualidades opostas, não é fácil compreender-se como possam existir juntamente nesse supremo grau de perfeição. E então o pecador, que primeiro apreende a grande ideia da misericórdia, esquece naturalmente a justiça, e reciprocamente, preocupando-se apenas com a justiça, sente destruir-se no seu espírito a ideia da misericórdia, o que prova a opressão do seu desespero, bem comparável aos assomos e ao louco orgulho da sua esperança.

Convém destruir, meus senhores, essas falsas imagens da misericórdia e da justiça, que o pecador alucinadamente adora, e substitui-las pela verdadeira justiça e pela verdadeira misericórdia. É uma ilusão pecadores, e uma perfeita loucura imaginardes que são incompatíveis duas qualidades que, pelo contrário, se ligam intimamente.

A bondade de Deus, irmãos, não é uma bondade insensível, nem uma bondade irracionável; porque o Deus que nós adoramos não é o Deus dos marcionitas, um Deus que não castiga, que tudo sofre até ao desprezo e que é indulgente até à fraqueza.

Não é um Deus, como diz Tertuliano, «com o qual os pecados se gozam a vontade e de quem se pode zombar impunemente» – Sub quo delicta gauderent, cui diabolus iluderet. A bondade de Deus, como ainda diz Tertuliano, consiste «em ser intolerante para com o mal e em se declarar seu inimigo» – Qui non alias plene bonus sit, nisi mali aemulus. Anexa a bondade está a justiça; e Deus, para ser verdadeiramente bom, «exerce o amor que consagra ao bem por meio do ódio que dedica ao mal» – Uti odio mali exerceat (Lib. II, Advers. Marcion., n. 26).

Não imagineis, portanto, que a justiça seja uma qualidade oposta a bondade, que pelo contrário, a protege, evitando-lhe o desprezo a que possa estar sujeita.

Mas ficai também sabendo que a bondade não se opõe a justiça; porque, se por um lado salva as vítimas que esta possa causar, por outro, restitui-lhe duma maneira especial. Em vez de as aniquilar por meio da vingança, aniquila-as por meio da humildade em vez de as oprimir por meio do castigo, oprime-as por meio das dores da penitência; e se a justiça carece de sangue para se satisfazer, apresenta-lhe a bondade o sangue dum Deus.

Deste modo, não são de forma alguma incompatíveis, mas sim se dão mutuamente as mãos. Não devemos, pois, fazer conjeturas, nem perder a esperança. Não façais conjeturas, ó pecadores, porque é bem certo que Deus se vinga; mas não percais também a esperança, porque, para assim dizer, é ainda mais certo que Deus perdoa.

Posto isto, é tempo agora, meus senhores, de vos fazer compreender, por meio das Escrituras, essa graça singular da remissão dos pecados. Como ela é o fruto principal do sangue do Novo Testamento e o artigo fundamental da prédica evangélica, o Espírito Santo teve um cuidado especial em nos dar dessa graça uma ideia muito nítida e em no-la explicar de várias maneiras, para que mais profundamente penetrasse em nossos corações. Diz Ele que Deus esquece os pecados, e que, em vez de os imputar, pelo contrário, os oculta; e diz também que os lava, que os afasta de nós, que os faz enfim, desaparecer. Para compreendermos o segredo destas expressões e de outras que se leem nas Sagradas Escrituras, é necessário observarmos com atenção o efeito do pecado no coração do homem, e o efeito do pecado no coração de Deus.

O pecado no coração do homem é um veneno pestilente e devorador e uma nódoa infamante que o perverte. É necessário expurgar esse veneno maligno, extraindo-o das nossas entranhas; «porque Deus faz com que as nossas iniquidades distem tanto de nós como o nascente dista do poente» – Quantum distat ortus ab occidente, longe fecit a nobis iniquitates nostras (Sl 102, 12).

Quanto a essa nodoa vergonhosa, urge passar-lhe uma esponja por cima, de maneira que dela não fique um só vestígio. Deus muito se compraz de tudo purificar. Provam-no estas palavras dirigidas a Israel: «Se fui eu quem te criei, Israel, não te esqueças do teu Criador. As iniquidades que te maculavam fi-las eu desaparecer de ti como uma nuvem que se desfaz ou como um ligeiro vapor» que, dissipado por um turbilhão, não deixa no ar o menor vestígio: Delevi ut nubem iniquitates tuas, et quasi nebulam peccata tua (Is 44, 22).

Mas o pecado com relação a Deus, irmãos, é que tem efeitos muito mais para temer. Esse pecado brada-lhe terrivelmente aos ouvidos sempre atentos, e oferece-lhe um espetáculo horroroso aos olhos constantemente abertos.

É um espetáculo que desperta o ódio, e um brado que clama vingança. Para tranquilizar os pecadores, declara-lhes Deus, por meio da Escritura, que lhes encobre os crimes para não mais os ver; que os lança para traz das costas, com receio de se encolerizar se os visse; que os esquece, enfim, que não mais pensa neles. E esse brado funesto, que tão insolitamente lhe perturba os ouvidos, abafa-o Ele com outra voz formidável; porque em quanto os nossos pecados nos acusam, temos nós, «para nos defender, um advogado em Jesus Cristo, o Justo, que é a propiciação para os nossos crimes» (1Jo 2, 1-2).

Declara ainda o Onipotente que não consente mais que no-los imputem, nem que tornemos a ser perseguidos por eles.

«E então o céu e a terra hão de rejubilar, e as montanhas hão de estremecer de alegria, porque o Senhor operou misericórdia» – Laudate, caeli…; jubilate, extrema terrae: resonate, montes, laudationem, quoniam misericordiam fecit Dominus (Is 44, 23)

Aqui tendes, pois, irmãos, a remissão dos pecados autorizada e explicada por todas as formas que se pode enunciar uma graça. Hortamur vos ne in vacuum gratiam Dei recipiatis – «Não recebais essa graça em vão» (2Cor 6, 1), que o efeito dela cabe ao Espírito Santo dizer-no-lo. No capitulo 3 de Jeremias, envia Deus os seus profetas, dizendo-lhes (veja Jr 3, 12.21; Ez 18, 31-32) (1): Projicite a vobis omnes prevaricationes vestras, facite vobis cor novum et spiritum novum. Et quare moriemini, domus Israel? Quia nolo mortem morientis, dicit Dominus Deus; revertimini et vivite.

Porque desejais perecer? Porque persistis na vossa ruína? Deus quer perdoar-vos, e só vós não perdoais. Deus meus, misericordia mea (Sl 58, 11). E Santo Agostinho diz: O nomen, sub quo nemini desperandum est! (In Psal., LVIII, 11). Ó prodigo, voltai para junto do vosso pai; adultera, tornai a juntar-vos com vosso marido; mas tornai ambos, confessado o vosso crime: Peccavi (Rs 12, 13); verumtamen scito iniquitatem tuam (Jr 3, 13).

Não penseis em desculpar-vos; não acuseis a noite nem o temperamento. Não digais que foi a má sorte ou o acaso que vos levou a isso; nem acuseis sequer o diabo: Neminem quaeras accusare, ne accusatorem invenias a quo non possis te defendere. Ipse diabolus gaudet cum accusatur, vult omnino ut accuses illum, vult ut a te ferat criminationem, cum tu perdas confessionem (S. Agost., Serm. XX, n. 2). Não procureis, portanto, desculpas.

Uma coisa é tratar com um padre, outra coisa é responder a um juiz. Para este procuramos defender- nos; para, aquele devemos confessar. Um juiz exige o castigo; um padre deseja a conversão. Mas seria possível essa conversão? Quem poderá obrigar um etíope a despir a pele? Quem poderá dizer a um pecador inveterado que se prive dos seus perigosos manejos? Eis o que teremos de examinar na segunda parte.

SEGUNDO PONTO

Quando se fala na presença dum juiz, diz-se: Eu não fiz semelhante coisa, ou então: Fui surpreendido, fui levado a isso, porque não era esse o meu intento; o crime foi mais grave do que eu pensava. Não nos defendamos assim, irmãos, não procuremos desculpar-nos inutilmente para encobrirmos a nossa ingratidão, que nunca é criminosa demais. Na presença dum juiz recorremos a evasivas; na presença dum padre, a principal defesa é confessar simplesmente o erro: Cometi uma falta, fiz mal, estou arrependido, imploro a vossa bondade e peço perdão da falta que cometi. Mas se ninguém ainda obteve de vós esse perdão, para que hei de eu ousar pedir-vos-lo? Se, porém, a vossa bondade dispensou já muitas mercês, vós, que me destes a esperança, concedei-me agora o perdão.

O Profeta representa a Sinagoga como uma criatura desesperada que vai cair nas mãos de estranhos e que, temendo a cólera do marido, não quer já voltar para a sua companhia.

Desperavi, nequaquam faciam; adamavi quippe alienos, et post eos ambulabo – «Parto para nunca mais voltar» (Jr 2, 25)

Nós nada fazemos, cristãos, em convencer os pecadores de que, se confiarem em Deus, poderão facilmente alcançar o Seu perdão, visto poder-se esperar bom resultado da obra da remissão que depende puramente dEle. Mas como o trabalho da conversão é no coração que verdadeiramente se deve operar, eles então sentem o desespero esmagador das almas torturadas e caem num profundo desalento.

É que embora a nossa força seja nula, embora a nossa extrema fraqueza não nos permita dispor de coisa alguma, não há, contudo, coisa de que menos possamos dispor do que de nós mesmos. Estranha enfermidade a da nossa natureza! Não há coisa que mais a deixe subjugar do que a vontade individual; finalmente, não há coisa mais impossível de realizar do que aquela em que manifestamos a nossa vontade, e por isso, é mais fácil o homem obter de Deus o que quer, do que procurar consegui-lo por mero desejo. Provemos esta verdade com toda a evidência.

Há dois obstáculos invencíveis, por assim dizer, que não nos deixam o uso livre da nossa vontade: é o temperamento e o hábito. O temperamento adquire o vício por amor, o hábito adquire-o por necessidade.

Nem um nem outro podemos evitar; porque o temperamento algema-nos e lança-nos numa prisão, e o hábito clausura-nos nela e fecha-nos todas as portas para não tentarmos uma fuga: Inclusum se sentit difficultate vitiorum et quasi muro impossibilitatis erecto portisque clausis, qua evadat non invenit (S. Agost., In Psal., CVI, n. 5).

De maneira que o miserável pecador, que forceja desesperadamente, mas inutilmente, para sair dessa prisão, entrega-se depois as suas paixões vis e não cuida de as refrear de qualquer modo: Desperantes, semetipsos tradiderunt impudicitiae, in imperationem immunditiae omnis in avaritiam (Ef 4, 19).

Ora o que pode desejar um homem, que é tiranizado pelo seu temperamento, é que o convertam, que o regenerem, que façam dele um outro homem. E é isto o que todos os dias nos diz qualquer amigo nosso que se ache encolerizado, quando o increpamos pelos seus repentes, pelos seus impulsos ou pelas suas violências.

Responde que é impossível livrar-se da tirania do temperamento quê o domina; que as vezes lhe resiste, mas que, com o andar do tempo, se sente impulsionado; que se exigem que ele pratique outras ações, absolutamente indispensável que façam dele um outro homem.

Mas o que reclama a natureza fraca e impotente, irmãos, é o que a graça lhe oferece para se reconstruir, porque a conversão do pecador não é mais do que um segundo nascimento, e o homem é então regenerado até a sua origem, isto é, é regenerado até ao coração. O coração antigo é destruído para se lhe dar um coração novo. Qui finxit singillatim corda eorum (Sl 32, 15). Diz Santo Agostinho que «para formar um coração puro é necessário destruir o coração impuro» – Ut creetur cor mundum, conteratur immundum (Serm., 19, n. 3). Mudada a direção da fonte, necessariamente o regato toma outro curso.

Mas se a graça pode triunfar do temperamento, também triunfará do hábito; porque o hábito não é menos do que um temperamento fortificado. Não há, porém, força que iguale a do espírito que nos impele.

Basta que Deus insufle o Seu espírito num coração endurecido, para que desse coração brotem as lágrimas da penitência: Flabit spiritus ejus, et fluent aquae (Sl 147, 18). E se ainda isso não bastar, enviará Deus «um espírito ciclópico, que derrubará violentamente as muralhas», quasi turbo impellens parietem (Is 25, 4); «que deitará por terra as montanhas» e que desenraizará os cedros do Líbano, spiritus Domini subvertens montes (1 Rs 19, 11).

Se corrêsseis para a morte mais impetuosamente do que o Jordão corre para o mar, serieis logo detidos por Ele na vossa carreira. E embora o vosso corpo jazesse no túmulo num estado de putrefação, Ele havia de ressuscitar-vos como ressuscitou o Lazaro. Basta para isso que escuteis o Apóstolo, e que não recebais a graça de Deus em vão. Hortamur vos ne in vacuum gratiam Dei recipiatis.

Força é, porém, confessar, irmãos, que poucos efeitos dessa graça se manifestam, porque poucas dessas grandes conversões se veem no mundo que se possa considerar como ressurgimentos; e a causa dum tão grande mal é recebermos com gelado indiferentismo a graça da penitência, deixando enervar todos os nossos sentimentos por escrúpulos deveras reprovados.

Há uma penitência covarde e preguiçosa, que nada empreende com esforço; mas dessa, irmãos, nunca devemos esperar as grandes conversões, nem a vitória decisiva sobre os nossos hábitos.

A condição da nossa natureza é ter de trabalhar heroicamente, sujeita a todos os revezes, para a verdadeira conquista do bem.

Assim como o pão que comemos só se pode alcançar com o suor do rosto (Gn 3, 19), assim a penitência, para ser eficaz, tem necessariamente de ser violenta. Ora essa violência provém unicamente, cristãos, do fato da cólera e da indignação originarem impulsos violentos que, no dizer de Santo Agostinho, se observam também na penitência, visto que esta «não é mais do que uma santa indignação contra si própria» – Quid est enim penitentia, nisi sua in seipsum iracundia? (Serm., XIX, n. 2).

Eis que ouço a voz dum santo penitente bradar:

Afflictus sum et humiliatus sum nimis; rugiebam a gemitu cordis mei – «Sinto dores incomportáveis; a consciência fustiga-me cruelmente» (Sl 37, 9)

E o seu brado plangente não é como o gemido duma pomba, mas sim semelhante ao rugido dum leão. É o gemedouro pavoroso dum homem irritado contra os seus próprios vícios, intolerante para com a sua languidez, para com a sua covardia, para com a sua fraqueza.

Depois essa cólera recrudesce, tomando proporções de furor: Turbatus est a furore oculus meus (Sl 6, 7), e ele então revolta-se contra as suas reincidências, contra a lentidão e a covardia que o enervam.

Não procura já envolver-se nas reuniões que o pervertem; buscar a sombra e a solidão que o regeneram. É, como diria o Profeta, semelhante às aves que, escondendo-se da luz, procuram as trevas, «semelhante ao mocho que, muito obscuramente, vive dentro do seu ninho» – Factus sum sicat nycticorax in domicilio (Sl 6, 7). Nessa solidão, nesse recolhimento, é que ele se indigna contra si próprio, e freme de cólera, e forceja herculanescamente por adquirir hábitos contrários aos que tem, «a fim de que o costume de pecar, como diz Santo Agostinho, ceda a violência da penitência» – Ut violentiae paenitendi cedat consuetudo peccandi (Tract. XLIX in Joan, n. 19). E assim se consegue, irmãos, triunfar do temperamento e do hábito.

E se me preguntardes porque é necessária tanta violência para conseguir tal fim, facilmente vos respondo que a conversão do pecador é como que um ressurgimento, e que a perversidade da nossa natureza só se pode expulsar no meio de sofrimentos cruéis: In dolore paries filios tuos (Gn 3, 16).

Por isso a penitência é laboriosa; tem gemidos e dolorosos trabalhos, porque é um verdadeiro parto: Ibi dolores ut parturientis, diz Santo Agostinho, dolores paenitentis  (In Psal., XLVII, n. 5).

É preciso criar um novo homem? Também é necessário que o primeiro padeça. Mas no meio de tantas dores e de tantas angústias, lembrai-vos sempre destas palavras do Evangelho:

«A mulher, na ocasião do parto, sofre extraordinariamente; mas depois do parto, já se não lembra das dores que sofreu, tal a alegria que lhe invade o coração, por ter dado um filho a luz» (Jo 15, 21)

Assim vós, irmãos, no meio dos trabalhos da penitência também dais a luz, mas o que dais a luz é o vosso próprio eu. Se é verdadeiramente aprazível ter dado a luz e a vida a alguém, que de repente se vê limpo de todos os males passados, que maior prazer não será darmos a luz e havermo-nos gerado a nós próprios, insuflando-nos uma vida imortal? Dai, pois, a luz, ó pecadores, e não temais as dores dum parto tão salutar. Perpetuai, não a vossa raça, mas a vossa própria entidade; conservai, não o vosso nome, mas a própria essência dá vossa substância.

Virgens de Jesus Cristo, tal é o parto que Deus vos ordena. Dai a luz o espírito da salvação; regenerai-vos em Nosso Senhor no meio das angústias da penitência; continuai a mostrar aos pecadores que é possível vencer a natureza nas suas mais fortes inclinações; e para os convencerdes por meio do vosso exemplo, declarai ao vício uma guerra sagrada, mas especialmente ao vício mais oculto, mais íntimo, e que se eleva sobre as ruínas de todos os outros.

E nós, cristãos, palpemos uma vez só as nossas chagas inveteradas, mas sem vacilar, mas sem dizer que não podemos tocar-lhes ou que nos é impossível tal violência; pois bem melhor é sofrer uma violência neste mundo do que no outro. Ambulate dum lucem habetis – «Andai em quanto tendes luz» (Jo 12, 35), e não abuseis do tempo que Deus vos concede. É por aqui que vou terminar este discurso.

TERCEIRO PONTO

Deus, que não quer a morte dos pecadores, porque deseja antes que eles se convertam, não se satisfaz com excitá-los pela boca dos pregadores, pois anima, por assim dizer, toda a natureza a convidá-los a penitência. Essa série continua de dias e anos que eles tantas vezes veem repetir-se, é como que uma voz pública de todo o universo a testemunhar a paciência de Deus e a avisar os pecadores de que não abusem do tempo que ele lhes dá. «Ignorais, diz o Apóstolo, que a misericórdia divina vos encaminha a conversão? Ou desprezais as riquezas da sua paciência e da sua benignidade» (Rm 2, 4), que vos encaminha ao arrependimento? Eis a principal graça que o Apóstolo vos aconselha a que não deixeis infrutífera. E logo depois acrescenta:

«Escutei-vos no tempo marcado» – Tempore accepto (2Cor 6, 2)

Para bem compreendermos, senhores, o valor e o merecimento duma tal graça, devemos primeiramente notar que a medição do tempo pode ser feita por horas, por dias, por anos, e assim indefinidamente até à eternidade. Posto isto, eu reconheço que o tempo não tem existência, porque não tem forma nem estabilidade, e porque toda a sua propriedade é ir decorrendo, e, portanto, diminuindo sucessivamente, e finalmente deixar de existir (2).

Coisa extraordinária é esta, irmãos, o tempo não ter existência; e todavia, tudo perdemos quando perdemos o tempo. Quem nos explicará este enigma? É que o tempo, que não existe, foi estabelecido por Deus para servir de passagem a eternidade. Por isso Tertuliano disse:

«O tempo é semelhante a um enorme véu, a uma enorme cortina que se acha corrida por diante da eternidade e que no-la encobre» – Mundi… species… temporalis, illi dispositioni aeternitatis aulaei vice oppansa est (Apl, p. 43)

Ora, para alcançar essa eternidade, é necessário atravessar esse véu, porque do bom emprego do tempo é que nasce o direito de aquisição ao que é superior a ele. E agora já não me admiro, cristãos, do vosso extremo zelo na economia escrupulosa do tempo, porque sabeis quão rápida é a sua fuga; mas ele que, considerado em si, é menos do que um vapor e do que uma sombra fugaz, assim que acinge a eternidade, adquire um peso infinito, como diz São Paulo (2Cor 4, 17), graça esta que é um verdadeiro crime receber em vão.

Não pretendo agora mostrar-vos num longo discurso o pouco apreço em que temos essa graça, bem como a facilidade que há em a deixar perder. Lá estão os homens para se justificarem a tal respeito; pois quando tão abertamente nos dizem que só desejam ter em que passem o tempo, manifestam-nos à evidência a facilidade que tem em o deixar perder. Mas porque será que a humanidade, que é tão naturalmente avara e que tão avidamente guarda o que lhe pertence, deixa facilmente fugir das mãos um dos seus tesouros mais preciosos? Por dois motivos que merecem ser examinados, cristãos, provindo um de nós e outro do tempo.

Quanto a nós, compreende-se bem que o motivo porque o tempo tão facilmente nos foge, é por não nos querermos preocupar com a sua fugida tão rápida. Ou porque se fôssemos a contar o tempo, isso nos trouxesse a ideia a finalidade da nossa existência, o que muito nos desgostará, ou porque devido a uma certa indolência, não saibamos empregá-lo convenientemente, o que é certo é que não há coisa tanto para recearmos como a observação atenta da sua passagem.

Como estes tristes dias da vida que vão decorrendo, e dos quais contamos todas as horas e todos os instantes nos oprimem altamente com a sua extensão, por vezes demasiada, por isso o tempo é para nós um fardo impossível de suportar, quando o sentimos sobre os ombros, e então recorremos a todos os artifícios de que podemos dispor para não notarmos semelhante peso.

Ora esta preocupação constante de nos iludirmos a respeito do tempo, faz com que não demos pela sua perda brusca, visto só acharmos agradável tudo aquilo que derive tão sutilmente que nem sequer pressintamos a sua duração.

Mas se por um lado procuramos iludir-nos, por outro, também concorre o tempo para essa ilusão, cujos efeitos são os seguintes: Diz Santo Agostinho que o tempo é uma imitação da eternidade (De Musica; lib. VI, n. 29).

Pálida imitação, digo eu; contudo, apesar de volúvel, procura ele imitar-lhe a permanência, visto que a eternidade é invariável. O que o tempo não consegue igualar na estabilidade, procura imitá-lo na sequência, e isto só nos ilude. Tira-nos hoje um dia, mas amanhãs dá-nos outro. Não pode perdurar o ano que acabou, mas em seu lugar faz derivar outro semelhante, que não nos deixa sentir a falta do que passou já. E assim subjuga a nossa fraca imaginação, que facilmente se deixa iludir pela semelhança, e que não sabe distinguir o que é semelhante.

Eis, a meu ver, em que consiste a malícia do tempo da qual nos avisa o Apóstolo com estas palavras: Redimentes tempus, quoniam dies mali sunt – «Resgatai o tempo, porque os dias são maus» (Ef 5, 16), isto é, malignos e maliciosos. Nós temos a impressão de que não se acaba um ano, porque ele parece continuar-se no ano seguinte. Do mesmo modo não notamos que o tempo se passa, porque embora variando eternamente, mostra quase sempre a mesma cara. Ora este é que é o nosso grande infortúnio, este é que é o grande obstáculo a penitência.

Uma longa fase, porém, descobre-nos o embuste do tempo. A fraqueza, os cabelos grisalhos, e a alteração visível do temperamento obrigam-nos a observar a grande parte da nossa existência que decaiu e se aniquilou. Acautelai-vos, pois, da malícia do tempo, irmãos; e vede como esse sutil embusteiro procura salvar aparências, imitando sempre a eternidade. A eternidade tem como apanágio, conservar as coisas no mesmo estado; e o tempo para imitar essa eternização, vai nos despojando de tudo a pouco e pouco, vai nos tirar porque embora variando eternamente tão sutilmente o que possuímos, que nem sequer damos pelo latrocínio; assim como nos conduz tão astuciosamente as extremidades opostas, que chegamos a elas sem darmos por isso. Ezequias não sentia correrem-lhe os anos, pois quando tinha quarenta parecia-lhe que tinha nascido nessa ocasião:

Dum adhuc ordirer succidit me – «Interrompeu-me o tempo a continuação dos meus dias logo no começo» (Is 38, 12)

Deste modo, a malignidade enganosa do tempo faz decorrer a vida insensivelmente, e nós não pensamos em nos converter e vamos cair de repente nos braços da morte sem darmos por tal. Só vemos o abismo quando nos lançamos nele.

Mas o que também nos ilude é vermos correr sempre o tempo adiante de nós, por mais longe que lancemos a vista, sem nos lembrarmos de que, apesar de o vermos não poderemos talvez lançar-lhe a mão para utilmente o aplicar.

E assim, de ilusão em ilusão, vamos vivendo em tão manifesto engano que nem sequer nos conhecemos e mal sabemos avaliar a vida que decorre, pois ora nos parece longa, ora nos parece curta, conforme o grau das nossas paixões. Sempre curta demais para os prazeres, mas sempre demasiado longa para a penitência. As pessoas dadas a voluptuosidades, e que facilmente se sentem dominadas por insensatos ardores, acham a vida muito curta quando dizem:

Non praetereat nos flos temporis; coronemus nos rosis anteqaam marcescant – «Gozemos, enquanto estamos na flor da idade; coroemo-nos de rosas, enquanto elas não murcham» (Sb 2, 7-8)

Mas no meio das suas volúpias, irmãos, pensarão por ventura na morte? Não lhes causará tristeza uma ideia tão fúnebre? Não; eles pensam com efeito nela, que é para não perderem tempo em desfrutar os prazeres que não voltam mais.

«Comamos e bebamos, acrescentam eles, porque em breve estaremos nos confins da vida» (Is 22, 14)

Ora eu folgo muito em ver que esses mundanos que assim pensam, reconhecem a rapidez com que a vida vai decorrendo, porque também poderão pensar na penitência, que há tanto tempo vem protelando, não recebendo, portanto, a graça de Deus em vão. Logo, porém, mudam de opinião esses homens lascivos, porque a vida, que antes lhes parecia curta, tão longa se lhes torna de repente, que eles pensam ainda em gastar muitos anos da sua existência nos prazeres ilícitos que os absorvem:

Filii hominum, usquequo gravi corde? – «Até quando deixareis agravar os vossos corações, ó filhos dos homens?» (Sl 4, 3)

Até quando quereis que o tempo vos iluda? Quando reconhecereis verdadeiramente a curta duração da vida? Quereis esperar pelo último instante? Mas vede que seja qual for o estado em que vos encontreis quer estejais ainda na flor da vossa idade, quer no maior vigor dela, a todos disse o Apóstolo que «o tempo se vem aproximando». Os dias vão-se sucedendo uns aos outros; e se se vai guardando para o fim o dia da penitência, é muito provável que esse dia se perca depois (3).

– Mas não virá ainda muito tempo de sobejo? — alegam eles. – Que haverá hoje, ó Deus, que os homens não queiram saber? E de que coisa não será capaz a sua temeridade? Eis o que é muito para notar.

Diz-nos o Filho de Deus que a ciência dos tempos é um dos segredos que o Pai guardou para si (At 1, 7); e o próprio Cristo, interrogado a tal respeito, respondeu que também o ignorava, só para terminar de vez com a curiosidade dos homens (Mc 13, 32). Analisemos melhor estas palavras.

Jesus, na qualidade de embaixador do Onipotente e de interprete do gênero humano, não declara ou ignora o que não é da sua alçada, etc (4). Como quer que seja, temos de concluir que a ciência dos tempos, e maiormente a ciência do derradeiro instante, é um dos secretos mistérios que Deus não deseja revelar aos seus fiéis. É por uma vontade determinada «que ele não revela quando será o último dia, para que nos não passem em vão todos os dias que forem decorrendo» – Latet ultimus dies, ut observentur omnes dies (S. Agost., Serm. XXXIX, n. 1). E apesar de tudo, o que não empreenderá o arrojo dos homens? Aquele que é audacioso pretende filosofar acerca do tempo, desejando penetrar no futuro que só a Deus pertence.

Mas as minhas palavras nada valem em comparação das vossas, ó meu Senhor Jesus; falai, portanto, e confundi esses corações endurecidos. Quando se lhes fala dos juízos de Deus, dizem Eles com Ezequiel «que ainda virá longe essa visão» – In tempora longa iste prophetat (Ez 12, 27).

Quando se procura amedrontá-los com os terrores da morte, imaginam que ainda tem muito tempo de sobejo. Mas Jesus Cristo, para os manietar, representa-lhes a justiça divina irritada e pronta a despedir o golpe:

Jam enim securis ad radicem arborum posita est – «O machado já se acha colocado na raiz da árvore» (Mt 3, 10)

Admitindo, porém, pecador, que ainda tenhas muito tempo de sobra, porque demoras ainda assim a tua conversão? Porque não começas já? Receias que seja de longa duração o dia da tua penitência? Não satisfeito de seres criminoso, pretendes viver ainda por muito tempo na escuridão do teu crime? Desejas uma vida; longa e tenebrosa? Vê que é uma injúria que fazes a Deus, o estares constantemente a pedir-lhe tempo para afinal ficar tudo perdido no último instante da tua vida.

O tempo que pedes é o tempo dos testamentos, no dizer de São João Crisóstomo (5), e não o tempo dos mistérios.

Não sejas como o enfermo que, na última fase da doença, ainda aguarda o desengano dos médicos para então ser absolvido pelo padre; e que manifesta tamanho desprezo pela alma, que só cuida em salvá-la quando o corpo está nas andas do desespero.

Fazei penitência irmãos, enquanto o médico não está à beira do vosso leito, prolongando-vos o tempo que não vos pode dar, calculando os momentos da vossa vida com meneios de cabeça, e finalmente, dispostos a filosofar sobre o curso da natureza da doença, depois da vossa morte. Evitai que vos convençam em altos gritos da necessidade da conversão, violentando-vos a que digais se sim ou não vos quereis converter.

Vede que é indigno o padre estar disputando, a beira, do vosso leito, com o vosso herdeiro avarento ou com os vossos pobres servos, instando, por um lado, convosco a que vos penitencieis, enquanto, por outro, alguém vos solicita uma recompensa ou vos-importuna a que façais testamento (6).

Convertei-vos sem demora; não espereis que a enfermidade vos dê esse conselho salutar. Inspirai-vos em Deus e não na doença, na razão e não na necessidade, na autoridade divina e não na força.

Entregai-vos livremente a Deus, e não aflitivamente e com ar alucinado. Se a penitência é um dom de Deus, celebrai esse mistério com júbilo, e não com tristeza. Devendo a vossa conversão rejubilar os anjos, triste coisa é começá-la quando a vossa família estiver angustiada.

Se o vosso corpo é uma hóstia, que deve ser oferecida a Deus em sacrifício, consagrai-lhe uma hóstia viva; e se é um talento precioso que deve render, estando em poder de Deus, lançai-o já em negociação, e não espereis que deva ser enterrado, para lho oferecerdes.

Depois de terdes sido o joguete do tempo, tomai conta, não sejais o joguete da penitência, que fingirá entregar-se-vos, iludindo-vos com falsos sentimentos, até que a morte vos surpreenda, depois de haverdes feito, não uma penitência cristã, mas uma confissão pública do vosso delito, que nem por isso vos livrará do suplício. Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis (2Cor 6, 3): Eis o escolho e eis o porto: o escolho é a impenitência; e o porto é a penitência, onde só encontrareis a misericórdia eterna.

Referências:

(1) Var.: Déforis e seus copistas escreveram no texto a seguinte tradução destas passagens:

«Ide, disse Ele ao seu profeta, e bradai para os lados do aquilão: Regenerai-vos, ó Israel tão rebelde, que eu vos perdoarei, porque sou santo e a minha cólera não será eterna. – Em seguida, ouviram-se vozes pelos caminhos, choros e gritos dos filhos de Israel, porque caíram no crime e esqueceram-se do seu Senhor e do seu Deus. – Afastai para longe de vós todas as prevaricações em que fostes criminoso, disse Deus a outro Profeta, e purificai o vosso coração. Porque haveis de morrer, casa de Israel? Eu não quero a morte do que morre, disse o Senhor; voltai para junto de mim e vivei sempre»

(2) Nota marg.: A minha vida acha-se medida pelo tempo; e porque a minha substância lhe é inerente, é que ele verdadeiramente não existe: Ecce mensurabiles posuisti dies meos, et substantia mea tanquam nihilum ante te (Sl 37, 6)

(3) Var.: O primeiro editor, bem como os seus sucessores, publicam depois disto a seguinte passagem que se acha riscada no manuscrito:

«Ó tempo, concedido aos pecadores por um Deus paciente para lhes servir de porto salutar, haverás tu de ser para eles um escolho? Nós temos tempo de nos converter, dizem eles; mas, porque ainda temos tempo, continuemos pecando. Além está o porto, aqui está o escolho. Lembra-te, porém, ó pecador, de que a boa aplicação do tempo que nos é dado é o porto onde se calcam os homens sensatos; e que a expectativa indiscreta dos que guardam sempre para tarde o que é naturalmente urgente é o escolho onde naufragam os temerários»

(4) Var.: Bossuet termina assim o seu pensamento numa passagem que se acha riscada:

«Não há coisa mais ignorada do que a ciência dos tempos, cujo mistério Deus guardou para si. O próprio Filho de Deus declara-nos que a ignora, porque, no dizer de Santo Agostinho, quis ocultar à Igreja esse mistério»

(5) Homil. I, in Ac Apost., n. 7

(6) São Gregório Nazianzeno, Orat. XI

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 206-230)