Capítulo XXXIX
Oblatus est qui ipse voluit – “Foi imolado porque quis” (Is 53, 7)
O verbo eterno, desde o primeiro instante de sua conceição, viu apresentar-lhe ante si todas as almas dos filhos de Adão; viu ao mesmo tempo apresentar-lhe o quadro terrível dos sofrimentos, à custa dos quais devia remi-los. Assim do primeiro instante de sua existência no tempo viu e conheceu perfeitamente Jesus Cristo as almas de todos os homens que lá desde o começo do mundo tinham povoado a terra, bem como as de todos os que deviam povoa-la até à consumação dos séculos. Viu e conheceu portanto também a minha, ele a viu coberta de pecados, envolta em densas trevas, falta de tudo. E esta vista, longe de o levar a repelir-me como um objeto de horror, comoveu as entranhas da sua misericórdia, e aceitou para logo todos os sofrimentos que mais tarde padeceu no curso da sua vida, e particularmente em sua morte. Nenhum interesse próprio tinha para assim obrar, nem para aceitar tantos sofrimentos; o amor, o amor por minha pobre alma, eis o seu mover; o amor fê-lo nascer num presépio, o amor fê-lo morrer numa cruz. Condenado estava eu ao inferno, e ele ofereceu-se por meu resgate; nascera no ódio de Deus, e ele ofereceu-se para destruir este ódio; nem sequer pensava em ama-lo; em minha funesta cegueira, só para ofendê-lo vivia, e ele foi o primeiro a amar-me, e se ofereceu para dar-me uma prova esplêndida do seu amor, e para me atrair a amá-lo. E seria eu insensível a tão excessiva ternura do meu Deus? Se o meu Jesus me ama tão ardentemente, poderei eu recusar-lhe uma justa compensação? Por certo que não.
Que retribuirei eu, pois, a Jesus! Que lhe hei de eu oferecer em paga do que recebi dele? Ele por mim ofereceu a hóstia mais preciosa que possuía, ofereceu-se a si mesmo; convém também que por minha parte lhe ofereça o que de melhor tenho, todo o meu ser. Pois que! Um Deus dá-se todo a,mim, e eu ainda hei de hesitar em me dar todo a ele? Ah! Senhor! Dignai-vos aceitar a oferenda de mim mesmo. Dois óbulos só vos posso apresentar, o corpo e alma: concedei-me a graça de generosamente vo-los sacrificar; o sacrifício do corpo, pelas mortificações, sofrimentos, trabalhos e privações; o sacrifício da minha alma, pondo a vossos pés a minha vontade própria, os meus desejos de aparecer, o meu orgulho e tudo o que vos desagrada. Bem o sei, ó meu Deus! É difícil, é penoso, é duro à natureza tal sacrifício; mas ajudai-me vós que eu vo-lo farei todo, todo pleno e sem reserva alguma, e por toda a minha vida.
Ó meu Jesus! Que por meu amor vos oferecestes aos sofrimentos e à morte, a vossos pés venho lançar-me e pedir-vos que me recebais todo como holocausto a vós imolado. Recebei a minha liberdade, memória, inteligência, vontade, tudo o que sou. Se alguma coisa possuo, de vós a tenho, a vós pois tudo entrego para que de tudo disponhais segundo vossa vontade. Somente concedei-me o vosso amor e a vossa graça e assas rico serei. Ó Deus meu! Que poderosos motivos não tenho eu para amar-vos de todo o meu coração? “Vós livrastes a minha alma para ela não perecer, vós lançastes para traz das costas todos os meus pecados”, e os esquecestes. Assim, em lugar de me castigar pelas injurias que contra vós multipliquei, vós multiplicastes os favores e misericórdias, afim de poder ganhar-me um dia para o vosso amor.
Ah! Esse dia, que tão ardentemente desejáveis, chegou ao fim; sim, chegou, porque parece-me que vos amo de toda a minha alma. Ah! Se eu vos não amasse a vós, a quem deveria amar?
Ó Jesus meu! O primeiro pecado que devo chorar é o de tantos anos não vos ter servido nem amado; mas para o futuro quero fazer tudo o que poder para vos ser agradável. A vossa graça me inspira, eu sinto um grande desejo de só para vós viver e de me desprender de todas as coisas criadas; experimento ao mesmo tempo grande magoa por todas as penas que vos dei; estes são, ó meu Deus, favores que de vossa bondade me vem, e de que vos dou graças. Vossa obra acabai, e conservai-me fiel ao vosso amor. Ai! Conheceis bem a minha franqueza; fazei pois que doravante eu seja todo vosso, como vós tendes sido todo meu. Amo-vos, ó meu único bem! Amo-vos, ó meu único amor! Amo-vos, ó meu tesouro e meu tudo! Meu doce Jesus, compreendei-me bem: eu vos amo, eu vos amo! Ó doce, ó terna Maria! Vinde em socorro de vosso filho, e ensinai-me a amar ainda mais a Jesus. Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Do Espírito de Imolação de nós mesmos por Amor de Deus
Ontem falava-te eu da ingratidão, e empenhava-te, meu caro Teótimo, a fugires deste vicio, a Deus e aos homens hediondo e horroroso. Podes hoje provar a nosso Senhor que sabes apreciar e reconhecer os seus benefícios, consentindo em fazer por sua gloria o que ele fez por teu amor. Afim de arrancar-te ao inferno e merecer-te o céu, este bom Mestre ofereceu-se como vitima a Deus seu Pai; faze tu outro tanto. Considera-te doravante vitima destinada a ser imolada segundo seu bel prazer. Persuade-te bem que não és mais teu, mas que todo pertences a Deus. Assim quando lhe aprouver enviar-te alguma cruz, alguma humilhação, alguma doença, deves submeter-te dizendo:
“Vitima me constitui, pode imolar-me”
Quando teus superiores te derem alguma ordem à qual sintas repugnância de submeter-te, quando sentires a revolta da própria vontade contra vontade dos que te governam, apressa-te a chamar em teu socorro este pensamento:
“Não pertenço a mim, sou vitima do meu Deus, devo pois deixar-me imolar”
Se murmúrios se elevam em tua alma, se sentes repugnância em assim sacrificar-te, se teu orgulho se rói e opõe alguma resistência, recorda-te então de Jesus, que a si mesmo se imolou por teu amor, que como inocente cordeiro se deixou sacrificar sem proferir uma só queixa. Quando enfim vires a morte próxima a ferir-te, levanta os olhos ao céu e dize: Deus meu, vitima vossa sou, vitima de amor; descarregai, descarregai o ultimo golpe, acabai meu sacrifício. Vosso quero ser por toda a eternidade afim de amar-vos, bendizer-vos, agradecer-vos todas as vossas bondades por mim, e gozar da vossa presença.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 275-278)