II. Sermão para o 1º Domingo do Advento
Pregado em São Tomé do Louvre em 1668.
SUMÁRIO
Exordio. — A Igreja, sabendo que o receio vem antes do amor, mostra-nos Jesus Cristo terrível nos seus juízos antes de no-lo mostrar condescendente para com as nossas misérias.
Proposição, divisão. — Os que desprezarem a bondade do Senhor, hão de suportar a Sua justa cólera. Se se sublevarem contra o Seu poder, ela há de abatê-los; se desprezarem a Sua bondade, experimentarão os Seus rigores; se não quiserem viver num império suave e legítimo, ficam sujeitos a uma dura e insuportável tirania.
1.° Ponto — Devemos usar da nossa liberdade para nos submetermos filialmente a Deus a quem pertencemos absolutamente.
2.° Ponto — O amor de Deus enche-nos de favores, e se nós desconhecemos os benefícios do Senhor e as liberdades infinitas de Jesus Cristo, sofreremos as Suas terríveis consequências.
3.° Ponto — Visto que não quisestes servir o Senhor alegremente, haveis de sofrer o jogo do vosso inimigo. Não há império mais suave e mais legítimo do que o de Deus sobre o homem.
Peroração — Os nossos inimigos preferem antes corromper-nos do que atormentar-nos. Envergonhemo-nos de suportar a sua tirania e de sermos algemados, depois de Jesus Cristo nos ter feito reis.
Justus es Domine, et rectum judicium tuum
Senhor, vós sois justo e o vosso juízo é reto. (Sl 118, 134)
O receio vem antes do amor, e Deus manda primeiro o Seu espírito de terror antes de inocular nos corações o espírito de caridade e de graça. É preciso que o homem saiba temer a Sua mão suprema e recear os Seus juízos antes de haver recebido o espírito de confiança; aliás esta confiança poderia degenerar em temeridade e disparar numa audácia insensata.
Dentro em pouco aparecerá o Salvador cheio de verdade e de graça. Vem trazer a paz, vem excitar o amor, vem estabelecer a confiança. Mas a Igreja, que se ocupou, durante este tempo do Advento, a preparar-lhe os seus desígnios, estabelece primeiro o receio, porque, sempre norteada pelo Espírito Santo e muito prudente em Seus intentos, sabe que deseja excitar as almas antes de as tranquilizar, e causar medo antes de inspirar amor.
Falemos agora, cristãos, das Suas qualidades; consideremos Jesus Cristo como juiz antes de o considerarmos como Salvador. Vejamo-lo descer do céu no meio das nuvens com aquela majestade temível, antes de contemplarmos aquela brandura, aquela bondade e aquelas infinitas ternuras para com o gênero humano, que em breve nos hão de aparecer no Seu sagrado e feliz nascimento.
E sê imaginais talvez que o juiz tem duas palavras, e que se os maus são condenados por que ao fogo eterno, também os bons ficam gozando dum eterno repouso, escutai o que diz o próprio Cristo:
«Aquele que acreditar nEle, diz ele, não será julgado» (Jo 3, 18)
Não diz que não será condenado, mas que não será julgado, para ficarmos sabendo que o que ele deseja dar-nos a entender, principalmente no juízo final (Var.: Universal), é o seu rigor implacável e essa terrível execução da última sentença, que será pronunciada contra os rebeldes.
Quem me dará, cristãos, palavras bastantemente eficazes que penetrem o vosso coração e vos inspirem o temor pelo dia do juízo? Falai vós, Senhor, nesta tribuna; que só a vós assiste o direito de falar nela, e nunca nela se deve ouvir senão à vossa palavra. Mas, irmãos meus, nesta ação em que se trata de representar o que Deus fará de mais grandioso e de mais terrível, limito-me mais do que nunca a por na boca dEle o que diz a sua Escritura. Oxalá que o seu Espirito divino e santo falte aos corações, em quanto eu falar, etc. É a graça que lhe peço etc.
Quod si nec sic volueritis disciplinam, sed ambulaveritis ex adverso mihi, ego quoque contra vos adversus incedam, et percutiam vos septies propter peccata vestra… Et ego incedam contra vos in furore contrario… Et conteram superbiam duritiae vestrae. Et abominabitur vos anima mea (Lv 26 19, 23ss)
«E se depois de aconselhados, ainda não quiserdes submeter-vos à disciplina e caminhardes diretamente contra mim, eu igualmente caminharei diretamente contra vós, e ferir-vos-ei sete vezes, isto é, sem atender ao número dos vossos pecados, e quebrarei a vossa soberba e indomável dureza, e a minha alma há de execrar-vos»
O Deuteronômio é mais curto, mas não menos terrível:
Sicut laetatus est Dominus bene vobis faciens vosque multiplicans, sic laetabitur subvertens atque disperdens (Dt 28, 63): «Assim como o Senhor se regozijou com elevar-vos (Var.: Engrandecer-vos) e fazer-vos bem, assim se há de regozijar com perder-vos e destruir-vos completamente»
Mas eis uma terceira ameaça que completa os males dos pecadores:
Eo quod non servieris Domino Deo tuo in gaudio cordisque laetitia propter rerum omnium abundantiam: servies inimico tuo, quem immitet tibi Dominus, in fame, et siti, et nuditate, et omni penuria; et ponet jugum ferreum super cervicem tuam, donec te conterat (Dt 47, 48)
«Visto que não quisestes servir o Senhor vosso Deus com a alegria do vosso coração, no meio da abundância de todas as espécies de bens, sereis entregues (Servireis) ao vosso inimigo, que o Senhor há de enviar contra vós, com a fome, com a sede, com a nudez, e com uma extrema carestia; e esse inimigo cruel há de colocar-vos sobre os ombros um jugo de ferro por meio do qual haveis de ser esmagados (1)»
Para ligar estas três passagens sejam dados três caracteres: no primeiro, o poder desprezado; no segundo, a bondade irritada pela ingratidão; no terceiro, a majestade e a soberania violadas. E aqui estão em três palavras os três fundamentos da vingança divina que o Espírito Santo nos quer dar a entender! Haveis-vos sublevado contra o poder infinito, mas Ele há de oprimir-vos! Desprezastes à bondade, mas haveis de experimentar os Seus rigores. Não quisestes viver num império suave e legítimo, mas ficareis sujeitos a uma dura e insuportável tirania.
PRIMEIRO PONTO
Mas para proceder com ordem na explicação das palavras que referi, devemos considerá-las na sua relação. A primeira que apresentei foi esta:
Quod si nec sic volueritis disciplinam – «E se não quiserdes submeter-vos à disciplina»
Antes de mais nada mostra-lhes ele a liberdade da escolha que lhes é dada, porque é essa liberdade que nos faz criminosos e que miseravelmente nos entrega à justiça divina, se dela fizermos mau uso.
Para compreender esta verdade, é preciso saber que Deus, que é por natureza nosso soberano, quis também sê-lo por escolha nossa. Julgou que a glória do Seu império seria menos perfeita, se não tivesse vassalos voluntários; e foi por isso que Ele fez as criaturas racionais e inteligentes, e que, pertencendo-Lhe já quando nasceram, pudessem ainda obrigar-se a obedecer-Lhe voluntariamente e a submeterem-se ao Seu império por um consentimento expresso. Esta verdade importante acha-se magnificamente revelada no livro de Josué, onde vemos que este fiel servo de Deus, depois de ter remido o povo, lhe dirige estas palavras:
«Se não estais satisfeitos de servir o Senhor, optai livremente (2); escolhei hoje o que quiserdes, dizei a que senhor quereis servir e determinai a quem haveis resolvido submeter-vos» – Eligite hodie quod placet, cui potissimum servire debeatis (Idem)
E todo o povo respondeu:
«Nós não desejamos abandonar o Senhor; pelo contrário, queremos servi-Lo, porque Ele é que efetivamente é o nosso Deus»
Josué não se contenta com esta primeira aceitação, e, falando novamente, diz ao povo:
«Pensai no compromisso que tomais. Vós não podereis servir o Senhor nem viver na Sua presença, porque Deus é forte, santo e infinitamente bom, e não perdoará os vossos crimes e os vossos pecados (3)»
E o povo replicou:
«Não, Ele não há de ser como dizeis, e nós havemos de servi-Lo e ficaremos sendo seus vassalos»
Então Josué lhes observa:
«Pois nesse caso sois hoje testemunhas da escolha que propriamente fazeis do Senhor para vosso Deus e para O servir. —Pois seremos testemunhas»
Se eu tentasse referir-me a tudo o que há a notar nestas palavras, faria um discurso completo, mas não desenvolveria o assunto principal. É claro que Deus, deixando-nos o direito de opção, não renúncia; ao direito que lhe assiste, não pretende dispensar-nos da obrigação primitiva que temos de lhe pertencer, nem conceder-nos de tal forma a escolha que possamos pacificamente e com justiça subtrair-nos ao Seu império. Quer, pelo contrário, que Lhe pertençamos tão voluntariamente como já Lhe pertencemos de direito natural, e que confirmemos por uma escolha expressa a nossa dependência necessária e inevitável. Porque deseja Ele isto desta maneira? Por causa da nossa perfeição e da nossa glória. Aquele a quem devemos tudo, deseja mostrar-se reconhecido para conosco, conferindo-nos um título que nos autoriza a pedirmos-Lhe recompensas. E se não lhe quisermos obedecer damos-Lhe nós um título que nos acarreta suplícios. Eu estou aqui para expor as verdades eternas, e não para responder a todos os murmúrios dos que se elevam contra estes oráculos; não obstante, direi estas palavras: Ó homem, quem quer que sejas, que lamentas não ser um animal irracional, e a quem pesa a luz da razão e a honra da liberdade, não te lastimes pelos favores que recebes, nem acuses temerariamente o teu benfeitor. Se fosses independente por índole, e que Deus ainda assim exigisse de ti que te tornasses dependente por tua vontade, talvez tivesses razão em achar a obrigação importuna, ou o pedido incivil, mas o uso que Ele pretende da tua liberdade é deveras legítimo. O que Ele exige é muito fácil, muito natural e muito justo. É a espontaneidade do coração que no-lo impõe. Se fosse preciso sairmos do nosso estado e transportarmo-nos a um domínio estranho, seria talvez uma violência fazê-lo; mas apenas se trata de consentir em ficar no mesmo estado. Emfim, quando Deus exige que sejamos Seus vassalos, quer que sejamos o que somos e que acomodemos a nossa vontade à nossa própria essência. Nada mais natural, nem mais fácil, a não ser que a vontade seja absolutamente pervertida.
Desta maneira devemos confessar que elá o é estranhamente em todos os pecadores. Porque desde que eles não queiram depender de Deus, também já não querem ser o que são. Combatem em si próprios os primeiros princípios e o fundamento do seu ser. Corrompem a sua própria retidão. Não se harmonizam com Deus, e, por consequência, Deus não se harmoniza com eles. Submetidos a Ele como juiz, Deus julga-os, porque conhece o seu desvario, e odeia-os, porque as regras da Sua verdade repugnam à injustiça deles.
Nada é contrario a Deus, dizem eles, nada Lhe repugna, nada O ofende, porque coisa alguma O prejudica ou perturba. – Dizei também que nada se faz no mundo que seja contrário à razão; levai até aí o desconcerto do vosso juízo depravado. Se fordes privados da vossa propriedade, a vossa razão, que é fraca e humana, continha a subsistir, quanto mais a divina e a original ? É preciso que ela subsista eternamente e seja inviolável, para que se exerça a justiça.
Et erit in tempore illo, visitabo supra viros defixos in faecibus suis, qui dicunt in cordibus suis: Non faciet bene Dominus, et non faciet male: et erit fortitudo eorum in direptionem (Sf 1, 12-13). Videbitis quid sit inter justum et impium, inter servientem Domino et non servientem ei (Ml 3, 18)
É, pois, necessário fazer-vos aqui compreender a que nos obriga a nossa liberdade, e as grandes responsabilidades que ela traz consigo pelas ações que praticamos. Com esta liberdade hostilizamos a Deus, e o uso dessa liberdade é feito com uma audaciosa transgressão de todas as suas leis. Transgredimos ambas as tábuas da lei de Deus.
«Tu adorarás o Senhor teu Deus» (Dt 6, 13)
Em que lhe prestamos esta adoração? Porventura confessamos ter faltado a este dever? Como se este preceito, sendo o principal de todos, não fosse o primeiro do Decálogo senão por deferência e implicasse menos obrigação! Santificai os dias santos. Imaginais certamente ter satisfeito ao espírito (Var.: Cumprido o espírito) da lei com uma Missa que dura menos de meia hora, que nunca é curta de mais e que se ouve sem atenção e até sem respeito aparente? Durante as vinte e quatro horas que tem o dia devíamos dedicar alguns momentos a essa celebração. Ocorre-me aplicar aqui esta censura; «Este povo honra-me com os lábios» (Is 29, 13) etc.; mas nós, nem ao menos com os lábios o honramos. Eu não sei quem mais hei de censurar, se os que apenas O honram com os lábios, se os que nem ao menos com os lábios O honram; se os que apenas aparentam honrá-Lo, se os que nem sequer sabem aparentar. De maneira que a diferença que existe entre os dias santos e os outros dias é que nos dias santos as profanações e as irreverencias são mais públicas, mais escandalosas e mais universais.
E quanto à segunda tábua que diz respeito ao próximo, manchamos-lhe todos os dias a honra com as nossas murmurações, o repouso com os nossos vexames, a propriedade contra os nossos roubos e até o leito com os nossos adultérios. Digamos depois disto que não travamos luta com Deus! Mas é que Ele também trava diretamente luta conosco. Jesus desce das nuvens para destruir os Seus inimigos como um sopro e dissipá-los com a luz da Sua vinda gloriosa.
Se o fraco se eleva contra o forte, o forte oprime o fraco. O forte ofereceu a paz ao fraco, mas o fraco quis combater; resta saber quem prevalecerá e quem ganhará a vitória. Se, resistindo altivamente a um soberano semelhante a Deus, continuamos a viver felizes, segue-se que Deus já não é Deus; nós prevalecemos sobre Ele e a Sua vontade é vencida pela da criatura. Mas porque ela é invencível, só pode ser feliz quem Lhe obedecer; e todo o que se sublevar contra Ele tem de necessariamente ser oprimido pelo Seu poder.
É ainda por esta razão que Ele acrescenta estas palavras:
«E eu hei de abater a vossa altiva e indócil dureza»
Vós sois cruéis para com Deus, e Deus é cruel para convosco. Vós lutais com Ele e Ele luta convosco: vós, como homem, com toda a força do vosso coração, e ele como Deus, com toda a força do seu, se assim me posso expressar (4). Vós sois constante e Ele também o é. Vós persistis em ficardes possuidores da propriedade roubada, e eu vejo sempre nos vossos cofres, diz o santo Profeta (Mq 6, 10), essa chama devoradora, esse tesouro de iniquidade, essa propriedade roubada que há de talvez destruir a vossa casa e certamente fará perder a vossa alma. Perseverança tenaz (Var.: Humana), ah! Deus vos oporá uma perseverança divina, uma firmeza imutável, um decreto fixo e irrevogável, uma resolução eterna (5). Sois incorrigíveis, e é por isso que Ele vos há de amaldiçoar; e, como incorrigíveis, há de ferir-vos sem piedade e já não ouvirá os vossos gemidos. É um ódio fundo que Deus vos tem (Var.: Se escutardes uma palavra da bondade de Deus, que vós desprezais, vereis como Ele vos fala).
SEGUNDO PONTO
Ainda que um Deus irritado nunca se mostre aos homens senão com magnífica pompa, nunca, porém, ele é mais terrível do que no estado em que eu devo representá-lo, não como se poderia imaginar, envolvido numa nuvem inflamada ou num turbilhão fulminante (sempre ameaçador, sempre fulminante, e despedindo da vista um fogo devorador), mas armado dos seus benefícios e sentado num trono de graça.
Nolite contristare Spiritum sanctum Dei, in quo signati estis (Ef 4, 30)
Sente prazer em fazer bem, e aflige-se quando lh’o negam. Afligir e entristecer o Espírito de Deus! Não é tanto o ultraje que é feito à Sua santidade, como a violência que sofre o Seu amor desprezado e a Sua boa-vontade ferida pela nossa resistência tenaz. Diz o Santo Apóstolo que o que aflige o Espírito Santo é o amor de Deus a atuar em nós para a conquista dos nossos corações. Deus irrita-se contra os demônios; mas, como já não espera deles o afeto, não se aflige nem entristece com a sua desobediência. A um coração cristão é que Ele deseja fazer sentir a Sua ternura, desejando que correspondam a ela. Daqui nasce o desprezo que O aflige e O entristece, e uma repulsão da parte dos ingratos, que O ofendem duramente.
Sicut Iaetatus est Dominus bene vobis faciens vosque multiplicans, sic Iaetabitur subvertens atque disperdens (Dt 28, 63)
O amor repelido, o amor desdenhado, o amor ultrajado pelo mais injurioso desprezo, o amor esterilizado pelo excesso da sua abundância, faz esgotar o manancial das graças e abrir o das vinganças. Nada há mais furioso do que um amor desprezado e ultrajado. Deus, abençoando-nos, entregou-Se à Sua natureza benfazeja; mas nós entristecemo-lO e afligimos o Seu Espírito Santo; transmudamos o prazer do benefício num prazer de punição; e é justo que ele repare a tristeza que causamos ao Espírito da graça, com uma alegria eficaz, com um triunfo do seu coração e com um zelo da sua justiça em castigar as nossas ingratidões. Justiça do Novo Testamento que se aplica pelo sangue, pela bondade até e pelas graças infinitas dum Deus redentor.
Ecce Agnus Dei (Jo 1, 36). Jam enim securis ad radicem posita est (Mt 3, 10)
A cólera vem sempre a par da graça; o golpe dá-se sempre com o próprio benefício; e se a santa inspiração não nos vivifica, mata-nos. Pois donde imaginais que saem as chamas que devoram os cristãos ingratos? Dos Seus altares, dos Seus Sacramentos, das Suas chagas, desse lado aberto na cruz que é para nós um manancial de infinito amor. É deles que hão- de sair a indignação da justa ira, e tanto mais implacável quanto mais diluída há de ser no próprio manancial das graças. Porque é justo e muito justo que tudo, incluindo as próprias graças, seja funesto para um coração ingrato. Ó peso das graças repelidas! Peso dos benefícios desprezados (6)!
A facie irae colambae (Jr 25, 38). Operite nos a facie… Agni (Ap 6, 16)
Não é tanto o aspecto de Pai irritado; é o aspecto dessa pompa terna e benfazeja que gemeu tantas vezes por eles, e desse Cordeiro que por eles se imolou (7).
Sol obscurabitur et luna non dabit lumen suum, et stellae cadent de caelo et virtutes caelorum commovebuntur; et tunc parebit signum Filii hominis.. Et tunc plangent omnes tribus terrae: et videbunt Filium hominis venientem in nubibus caeli cum virtute multa, et majestate (Mt 24, 29-30)
Meditemos atentamente no que havemos de oferecer à justiça de Deus pelo desprezo ultrajante dos Seus favores infinitos. Quem dá tem direito de exigir, e Ele exige agradecimentos; se Lhe não derem agradecimentos, exigirá suplícios: não perde os seus direitos. As graças que desprezais preparam uma eternidade infeliz.
«A graça, diz o Salvador, é fons aquae salientis» (Jo 4, 14)
Quando, pois, vos sentis abalados, quando às vezes sentis um certo desprezo pelas pompas do mundo que desaparecem, «com a sua sua figura passageira» (1 Cor 7, 31), com as suas flores que murcham durante o dia; quando aborrecidos de vós mesmos e da vossa vida desregrada, contemplais satisfeitos, os vastos atrativos da virtude… Ó castidade, ó modéstia! Ó pudor transitório! Ó ternura de consciência que não podia suportar crise alguma! Mas ó abandono, aviltamento dum coração (Var.: O’ santa timidez, guarda da inocência! Mas ó força prestes a fraquejar! Ó ousadia para alcançar o perdão! Ó covarde abandono de um coração corrupto e entregue aos seus desejos!). Que deseja o Senhor vosso Deus, senão que vos concilieis fortemente com Ele, e que, com essa conciliação vivais felizes? Foi por isso que Jesus Cristo veio ao mundo «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14). Foi por isso que comunicou a todos os Seus Sacramentos uma influencia vital para que, participando dela, possamos viver. Se soubermos aproveitar todos os Seus benefícios, adquiriremos, mercê da Sua bondade, um eterno direito sobre ele próprio para pacificamente o possuirmos.
Mas se os desprezarmos, certamente lhe damos reciprocamente um título justíssimo para nos castigar com suplícios tanto mais inauditos quanto mais extraordinários eram os seus benefícios — Sicut laetatus est Dominus bene vobis faciens vosque multiplicans, sic Iaetabitur subvertens atque dispersens.
E, na verdade, é justo que a Sua cólera esteja na proporção dos Seus benefícios e das nossas ingratidões, e que o Seu furor implacável atormente tanto mais um coração infiel quanto mais encantos para o conquistar havia empregado o Seu amor benfazejo. É por isso que não devemos crer que acabem as graças divinas; de modo nenhum. As graças que desprezamos junta-as Deus em Seu seio, onde a Sua justiça as transforma em dardos penetrantes com que hão de ser feridos os ingratos. Eles hão de saber, os miseráveis! O que é abusar dos benefícios dum Deus, forçar o seu natural benfazejo, obrigá-lo a ser cruel e inexorável, quando, Ele só queria ser liberal e benfeitor. Deus não deixará de os fulminar com a Sua mão soberana e vitoriosa que lhes distribuiu dons, que eles injuriosamente recusaram, e que se hão de converter em eternas censuras que sobre eles hão de pesar. E então, sempre vivos e sempre moribundos, imortais para a dor, fortes demais para morrer, e extremamente fracos para o sofrimento, eles hão de gemer eternamente em leitos de chamas, oprimidos de furiosas e irremediáveis aflições. E, soltando por entre blasfêmias execráveis mil gemidos desesperados, hão de suportar para sempre o peso infinito de todos os Sacramentos profanados, de todas as graças repelidas e não serão oprimidos pelas misericórdias de Deus, senão pelo excesso intolerável das Suas vinganças.
Tremei, pois, cristãos, no meio dessas graças imensas e desses benefícios infinitos que vos cercam! (8) Todos os movimentos da graça são dum peso terrível para nós. Na nossa vida nada há que se despreze. O nosso destino, o nosso estado e a nossa vocação têm qualquer coisa de grandioso. Tudo nos serve ou nos aborrece extremamente. Cada instante da nossa vida, cada movimento da nossa respiração ou das nossas artérias, se assim me posso expressar, cada centelha do nosso pensamento tem consequências eternas. Há eternidade dum lado e d’outro. Se acompanhardes fielmente o instinto da graça, a feliz eternidade concilia-se com com ela; mas se desprezardes a graça, outra eternidade vos espera, e vós tereis uma pena eterna por terdes perdido (Var.: Se perderdes) voluntariamente um bem que poderia subsistir.
TERCEIRO PONTO
Resta considerar a terceira pena com que Deus ameaça o Seu povo rebelde, a qual aprouve ao Espírito Santo exprimir-nos nestas palavras, que eu repito mais uma vez:
«Visto que não quisestes servir o Senhor vosso Deus com o prazer do vosso coração, no meio da abundância de todas as espécies de bens, servireis ao vosso inimigo, que o Senhor enviará contra vós, na fome, na sede, na nudez e numa extrema necessidade de tudo; e esse inimigo colocar-vos-á sobre os ombros um jugo de ferro que vos esmagará» (Dt 28, 47-48)
Quer isto dizer, conforme já expliquei, que sereis justamente submetidos a uma dura e insuportável tirania, visto não quererdes viver num império suave e legítimo.
Há aqui expressas duas condições do império de Deus: nenhum há que seja mais legítimo, nem também mais suave. Vós não quisestes servir a Deus Nosso Senhor e, na verdade, não há Senhor de direito mais bem estabelecido nem de título mais legítimo. Foi Ele que nos criou e nos resgatou. Pela criação somos obra das Suas mãos, pela redenção o prêmio do Seu sangue, somos ainda pela criação os Seus vassalos e pela adoção os Seus filhos. Pertencemos-Lhe, fomos assinalados por Ele, criados à Sua semelhança e cimentados com o Seu Espírito Santo. Não podemos negá-lo sem que a nossa entidade nos negue, nem finalmente renunciar a ele sem renunciar a nós mesmos. Sendo este império o mais legítimo, é, por consequência, o mais natural; e sendo o mais natural, segue-se que é também o mais suave. Não é, pois, sem motivo que é prometido o gozo do coração aos que servem o Senhor seu Deus. Porque aquele que estiver no estado que a natureza exige fica cheio de contentamento. O gozo é, pois, necessário a quem servir a Deus, assim como a abundância e a plenitude. Ninguém sabe melhor o que nos convém do que quem nos criou; nem melhor no-lo pode dar, visto que tem tudo em Suas mãos. Ninguém mais sinceramente o deseja, visto que nada convém melhor ao que começou a obra, dando-nos o ser, do que completá-la, dando-nos a felicidade e o descanso. Tal é a condição da criatura sob o império do seu Deus; vive rica, satisfeita e feliz. Deus, que de nada carece, só deseja governar-nos para nosso bem, e possuir-nos para tudo possuirmos nEle.
Portanto, ó criaturas rebeldes! Ó pecadores que vos sublevais contra Deus! Cumpri agora a vossa sentença. Dizei, senhores, o que merecem os que recusam submeter-se a um governo tão vantajoso e tão justo. Que merecem senão a opressão dum jugo de ferro, em vez dum jugo agradável; em vez dum poder benéfico e amigo, um inimigo insolente e que ultraja; um tirano, em vez dum pai; a sujeição e o terror dos escravos, em vez da alegria dos filhos; em vez do júbilo e da abundância, a fome, a sede, a nudez e uma extrema carestia.
Devo dizer-vos qual é o inimigo que Deus há de enviar contra vós. O que se declarar inimigo de Deus e que, não podendo defrontar com Ele, se vingar da Sua imagem, desdourando a e deixando fixar no espírito invejoso uma frívola ideia de vingança, é como Satanás com os seus anjos. Espíritos negros, tenebrosos, enfurecidos e desesperados, que, irremediavelmente perdidos, só mostram agora essa negra e satânica alegria própria dos perversos por terem cúmplices, dos invejosos por terem companheiros, e dos soberbos caídos por arrastarem outros consigo (9). É essa raiva, é esse furor de Satanás e dos seus anjos que o profeta Ezequiel nos representa pelo nome e pela figura de Faraó, rei do Egito. Espetáculo medonho! Em volta dele estão cadáveres vitimados por chagas cruéis.
Ali jaz o Assur, diz o profeta com toda a sua multidão; acolá caiu Elam e todo o povo que o acompanhava; além Moloch e Thubal, com os seus príncipes e os seus capitães e todos os outros do seu séquito; número ilimitado, reunião infinita, multidão imensa, todos estão caídos por terra, nadando no seu sangue. Faraó está no meio, deleitando a vista com tão grande mortandade de gente consolando-se com a sua perda e com a ruína dos seus. Faraó com o seu exercito, Satanás com os seus anjos:
Vidit eos Pharaó, et consulatus est super universa multitudine sua quae interfecta est gladio, Pharaó et omnis exercitas ejus (Ez 32, 22, 24, 26, 31)
Emfim, parecia dizerem, não havemos de ser nós os únicos miseráveis. Deus quis suplícios e conseguiu-o; o sangue jorra e é grande a matança. Quiseram igualar-nos aos homens, e eles é que são iguais a nós nos tormentos. Esta igualdade apraz-lhes. Eles sabem que os homens devem julga-los e ficam assoberbados de raiva! Mas antes deste dia, dizem eles, quantos não havemos nós de matar! E, fazenda nós muitas vítimas há de haver entre os criminosos alguns que possam sentar-se no meio dos juízes!
Mas agora reparo, irmãos meus, que já há muita estou profanando a minha boca e os vossos ouvidos, obrigando a falar estes blasfemadores! Basta que lhes adivinheis o ódio, que é tal, notai bem e pasmai do excesso, é tal o ódio que eles nos têm, que se comprazem não só de amargurar, mas também de macular (Var.: De aviltar) a nossa alma. Sim, eles preferem ainda mais corromper-nos do que atormentar-nos, preferem privar-nos da inocência e privar-nos do descanso, e antes querem perverter-nos do que felicitar-nos; de maneira que quando estes cruéis triunfadores começam a dominar uma alma, entram nela cheios de fúria, saqueiam-na e violam-na. Ó alma purificada pelo sangue do Cordeiro, alma que havia saído das águas batismais tão pura, tão casta e tão virginal! Esses corruptores violam-na, não tanto para se satisfazerem como para a macularem e envilecerem (10). Vós renunciastes ao seu império. Cada império tem as suas pompas e as suas obras. As pompas do diabo são tudo o que corrompe a modéstia, tudo o que enche o espírito de falsas grandezas, tudo o que ostenta glória e vaidade, tudo o que pretende agradar e chamar a atenção, tudo o que encanta a vista, tudo o que serve para ostentação e triunfo da vaidade do mundo, tudo o que faz parecer grande o que o não é, e eleva outra grandeza sem ser a divina.
As obras são a iniquidade: Operatio eorum est hominis eversio (Tertul., Apolog., n. 22)… tu que corrompes os princípios da religião e do temor de Deus com as tuas perigosas zombarias; vós que vos não ostentais apenas por vaidade, mas que armais por assim dizer essa beleza corruptora da inocência.
Eles dominam-nos com sedutoras paixões, e são avarentos. A propriedade roubada confunde-se com o vosso patrimônio. A ambição, cansada de percorrer grandes distâncias… os caminhos mais curtos e que, as mais das vezes, são criminosos. E como abusam da impudicícia!
Foi então que erguemos esse trono abatido e reconstruímos esse império de iniquidade, corrompemos o batismo, apagamos a cruz de Jesus impressa na nossa fronte, desprezamos a Sagrada unção, essa unção real que nos fizera reis, Cristãos e ungidos de Deus, o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e talvez a ordem e o sacerdócio. Finalmente todos os mistérios do cristianismo se tornaram o joguete dos demônios. Não há cristianismo nos nossos costumes.
Quem immitet tibi Dominus (Dt 28, 48), revestido de todos os direitos de Deus contra os pecadores. Deus instituiu-o nosso soberano, coloca-o no seu lugar, confere-lhe por assim dizer todo o seu poder; é estrangeiro que nos há de desterrar da pátria, usurpador que só há de destruir, escravo revoltado, cuja insolência não terá limites. Só Jeremias é capaz de ter lamentações iguais às calamidades.
Hereditas nostra versa est ad alienos, domus nostrae ad extraneos. Servi dominati sunt nostri: cecidit corona capitis nostri: vae nobis, quia peccavimus (Lm 5, 2, 8, 16). Aperuerunt super te os suum omnes inimici tui: sibilaverunt et fremuerunt dentibus suis, et dixerunt: Devorabimus: en ista est dies quam expectabamus; invenimus, vidimus (Idem, 2, 16). Fecit Dominus quae cogitavit:… laetificavit super te inimicum, et exaltavit cornu hostium tuorum (Ibid., 17)
Nós, a quem Jesus Cristo fez reis (11), não nos sentiremos humilhados por ficarmos cativos? Arremessamos aos pés de Satanás a coroa que o Salvador colocou nas nossas cabeças: Vae nobis, quia peccavimus. Brademo-lo, ao menos do fundo dos nossos corações esse Vae, esse ai de nós. Renovemos os votos do nosso batismo: Eu renuncio, etc. Onde está a água para nos batizarmos? Ah! Mergulhemo-nos na água da penitência, nesse batismo de sangue, nesse batismo laborioso. Mergulhemo-nos nela, e de lá nunca saiamos, até que Jesus nos chame, etc., ou nos conduza, etc.
Referências:
(1) Nota marg.: – Acompanhando a Escritura textualmente, não é necessária a palavra do homem; mas eu não pretendo aqui imitar a voz de Deus, nem a voz do trovão.
(2) Nota marg.: – Optis vobis datur (Js 24, 15)
(3) Nota marg.: – Non poteritis servire Domino: Deum enim sanctus et fortis aemulator est (Js 24, 19ss)
(4) Nota marg.: – Sem atenderdes à grande desproporção que existe entre vós e Deus, quisestes ser o primeiro a entrar na luta. Como sucumbistes, haveis dado prova…
(5) Nota marg.: – Veja-se Serm. do Nome de Jesus, 1 ponto; e depois o sermão: Si ego judico.
(6) Nota marg.: – Tudo prospera, diz Santo Agostinho, para os que amam até os pecados, que os aviltam, que os humilham e que os alentam.
(7) Nota marg.: – A cruz, a redenção, agrava a condenação eterna e acumula os crimes, levando-os ao último ponto.
(8) Nota marg.: – As prédicas sagradas são um peso tremendo; os santos Sacramentos, as aspirações, os exemplos bons e maus que nos aconselham cada um de maneira diferente, o próprio silêncio dum Deus, a Sua paciência, a Sua longanimidade, a Sua esperança, tudo é um peso terrível.
(9) Nota marg.: – Dos soberbos por fazerem cair outros. Fausto insolente, em vez da sua grandeza natural; astúcias maliciosas, em vez dum celeste bom-senso; o ódio, a dissensão e a inveja, em vez da caridade e da sociedade fraternal.
(10) Nota marg.: – Conseguem que ela se lhes entregue, poluem-na e depois desprezam-na. Mulheres que veem a ser o desprezo daqueles a quem covarde e indignamente se entregaram: lembrai-vos do vosso Batismo… Destruí o poder das trevas. Exorcismos. Maledicte damnate. Império da Igreja: Da locum Deo vero et vivo (Ritual).
(11) Nota marg.: – Fecisti nos Deo nostro reges et sacerdotes (Ap 5, 10)
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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 115-134)