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Céu

Céu, Tesouros de Cornélio à Lápide

A palavra Paraíso vem da expressão hebraica PARDES Ó PARA, que quer dizer Jardim dos Mirtos. Deste vocábulo, os latinos tomaram Paradisus (Paraíso).

Há três Céus: o céu atmosférico, o céu em que efetuam suas evoluções os astros, e o Céu dos bem-aventurados, onde a descoberto habita a Divindade.

O Céu é a obra prima de Deus

Santo Tomás pergunta se poderia Deus fazer coisas maiores, mais perfeitas do que todas aquelas que fez, e este Santo Doutor responde afirmativamente; porém, excetua sem embargo três realidades: Jesus Cristo, a Virgem Maria e a bem- aventurança dos eleitos. A humanidade de Jesus Cristo deve se achar excetuada, diz-nos Santo Tomás, porque está unida a Deus de uma maneira hipostática; também a bem-aventurada Virgem Maria, porque é Mãe de Deus; e a bem- aventurança criada, porque é o gozo de Deus. A humanidade de Jesus Cristo, a Virgem Maria e a bem-aventurança, ou o Céu, tomam do Bem infinito, que é Deus, certa perfeição infinita. Logo, nada pode Deus fazer melhor, assim como nada pode, tampouco, existir melhor que Deus (S. Th. I, q. 2; a. 6).

Deus, nestas três coisas, diz Santo Agostinho, esgotou sua ciência, seu poder, suas riquezas e sua bondade: Plus dare nescivit, plus non potuit, plus dare non habuit (Lib. de Civ.).

Há uma diferença quase infinita entre o Céu e a terra

Para formarmos uma ideia do Céu e da felicidade dos eleitos, consideremos a imensa diferença que há entre a terra e o Céu.

A vida na terra não é mais que uma morte lenta. Santo Agostinho diz: Não sei se hei de chamar esta vida uma morte que vive, ou uma vida que morre (Medit., c. XIX).

Nossos pais, diz São Paulo aos Hebreus, confessavam que eram estranhos e peregrinos na terra: Confitentes quia peregrini et hospites sunt super terram (Hb 11, 13).

Quão vil me parece a terra quando olho o Céu! Exclamava Santo Inácio de Loyola: Quam sordet mihi terra, cum coelum aspicios (Ita Ribaden, in ejus vita).

Que quereis? diz Santo Agostinho, Quereis amar as coisas temporais, e passar com o tempo; ou não amar o mundo, e viver eternamente com Deus? Quid vis? Utrum amare temporalia, et transire cum tempore; aut mundum non amare, et in aeternum vivere cum Deo? (Epist. XXXVI).

Tudo o que existe na terra é extraordinariamente vão, de pouca duração, variável corruptível e enganoso. Ao contrário, o Céu, ao lado de Deus, é todo sólido, eterno, imutável, incorruptível, verdadeiro e seguro. A vaidade das coisas da terra está em oposição com a realidade das coisas celestiais; naquelas só há fragilidade; nestas, a solidez; naquelas, brevidade; nestas, eternidade; naquelas, mudanças; nestas, imutabilidade; naquelas, morte; nestas, vida, e vida constante. Na terra, está a mentira; no Céu, a verdade; na terra, a ilusão; no Céu, a realidade; aqui, os suores, o trabalho, a pena, a dor, o receio; no Céu, o repouso, a alegria, a certeza e a paz.

Ó verdade suprema, realidade que não engana, amor duradouro, preciosa e querida eternidade do Céu!

Que cegueira é essa que nos embarga?, pergunta São Bernardo: ter sede de amarguras e pecado, males de uma vida que foge, submergir-nos no naufrágio do mundo, buscar os males de uma vida que foge, querer estar enfermos, e não nos inclinarmos muito mais à felicidade dos Santos, à sociedade dos anjos, às delícias da vida contemplativa, na qual brilha o poder de Deus e se revelam as riquezas superabundantes de sua bondade infinita (Medit.)

Toda a Escritura, diz Santo Agostinho, exorta-nos a desprender-nos da terra e a dirigir nossos olhares ao Céu, onde se acha a verdadeira e suprema felicidade: Tota series Scripturarum nos a terrenis ad coelestia erigi adhortatur, ubi ver et sempiterna est beatitudo (Lib. De Civ.).

Aqui na terra, enjoos, tribulações, fome, sede, misérias, enfermidades, lágrimas, tentações, perigos e mil provas diferentes; no Céu, saúde, alegria, louvor e dita.

Na terra, diz Santo Agostinho, acha-se tribulação; no Céu, possessão tranquila; na terra, amarguras; no Céu, uma glória e um poder que não enganam; aqui, o temor de que o amigo se converta em inimigo; no Céu, o amigo não o deixa de ser, porque o Céu não conhece inimizade; na terá, teme-se perder o que se quer possuir; no Céu, Deus, que é o autor da recompensa eterna, dá-a para sempre aos que dela desfrutam. Na terra, somos desgraçados, vagamos sobre as ondas de um mar borrascoso, expostos às tempestades e aos naufrágios, e não sabemos se chegaremos ao Porto. Nossa vida é um desterro, andamos rodeados de perigos, e na hora da morte, ignoramos se iremos ao Céu. No Céu, não há desterro, nem perigo, nem incerteza, nem tempestade, nem naufrágio (Medit., c. XIX).

Sete coisas são necessárias para a felicidade do homem, diz o Venerável Beda, e estas somente podem se encontrar no Céu:

  1. uma vida a que a morte não ponha termo;
  2. uma juventude não seguida de velhice;
  3. uma luz que não deixe de brilhar;
  4. uma alegria jamais alterada pela tristeza;
  5. uma paz não exposta a turbação;
  6. uma vontade que não experimente obstáculo;
  7. um reino que não se possa perder.

A terra, diz Santo Agostinho, não é mais que um cárcere; sem embargo, este cárcere já e belo, agrada. Que será, pois, a Pátria? Si carcer ita pulcher est, Patria qualis est? (De Confiict. vit.).

O Céu é a verdadeira pátria

Existe, diz São Gregório Nazianzeno, uma pátria para os grandes homens, para os homens verdadeiramente virtuosos: é aquela Jerusalém que somente se compreende com a inteligência, e não estas cidades que vemos comprimidas entre estreitos muros, e habitadas por cidadãos que passam e desaparecem. Estas mansões terrestres, estas pretendidas pátrias parecem-se ao cenário de um teatro (In Distich).

São Gregório de Nissa dizia, a respeito de São Basílio, o seguinte: Jamais temeu o desterro porque estava convencido de que tão somente o paraíso é a pátria da humanidade; olhava a terra toda como um desterro, o Céu como a única e verdadeira pátria.

Formosura e riquezas do Céu

Qual não deve ser, diz São Bernardo, a abundância de um lugar onde não há nada o que não se queira e onde não se encontre tudo o que se deseje? Quae est copia ubi nihil quod nolis sit, et totum sit quod velis? (De Tripl. Gen. Bonor.). A remuneração dos eleitos, diz em outra parte este grande Santo, é um torrente de delícias, um rio impetuoso de gozos. É um rio que corre pleno de uma a outra parte, e que jamais seca. Ela é comparável a um rio, não porque passe, senão porque tem sua profundidade (Serm. in errores huj saeculi).

O olho não viu, o ouvido não ouviu, nem o coração do homem jamais concebeu o que Deus preparou para aqueles que O amam, diz São Paulo aos Coríntios: Oculos non vidit, nec auris audivit, nec in cor hominis ascendit, quae praeparavit Deus iis qui diligunt eum (1 Cor 2, 9). O olho do homem jamais viu; e sem embargo, o que já não viu o olho do homem? A formosura do firmamento, as maravilhas da natureza, a primavera, as grandes cidades, as grandes festas etc. O ouvido jamais percebeu; e sem embargo, que harmonias já não lhe comoveram? Ouviu cantos de pássaros, a eloquência dos oradores! O coração do homem jamais concebeu; e, sem embargo, o que ainda não concebeu o coração do homem?

Grande e bem-aventurado Apóstolo, vós que, arrebatado até o terceiro Céu, haveis visto, ouvido e concebido tantas maravilhas; vós que haveis ouvido e o que haveis concebido. Escutai sua resposta: Audivit arcana verba que non licet homini loqui (2 Cor 12, 4): Vi, ouvi e concebi maravilhas que um homem não pode expressar.

Vi um Céu novo e uma nova terra, diz São João no Apocalipse: Vidi coelum novum, et terram novam (Ap 21, 1). Um dos sete anjos, acrescenta este Apóstolo, veio e disse-me: Vinde e mostrar-vos-ei a Esposa, noiva do Cordeiro. E transportou-me em espírito ao cume de uma alta montanha, e mostrou-me a cidade santa de Jerusalém que descia do Céu, e vinha de Deus, a qual tinha a claridade de Deus; e sua luz era semelhante a uma pedra preciosa, à pedra de jaspe transparente como o cristal. Tinha uma muralha grande e alta, e doze portas, e doze anjos nas portas. Três daquelas portas ao Oriente, três ao Norte, três ao Sul, e três ao Ocidente. A muralha da cidade tinha doze alicerces, e nele os doze nomes dos Doze Apóstolos do Cordeiro. E aquele que falava comigo tinha uma cana de medir que era de um ouro puro, semelhante a um cristal muito límpido. E os alicerces da muralha da cidade estavam adornados com toda a sorte de pedras preciosas. O primeiro alicerce era de jaspe, o segundo de safira, o terceiro de calcedônia, o quarto de esmeralda, o quinto de sardônica, o sexto de cornalina, o sétimo de crisólito, o oitavo de berilo, o nono de topázio, o décimo de crisópraso, o décimo primeiro de jacinto, o décimo segundo de ametista. As doze portas são doze pérolas. E cada uma das portas era feita de uma destas pérolas. O pavimento da cidade era de ouro puro como o cristal. E não vi nenhum templo na cidade, porque o Senhor Deus onipotente e o Cordeiro são seu templo. E a cidade não necessita de sol ou de lua para a iluminarem, porque, de Sua claridade, Deus a ilumina, e o Cordeiro é sua lâmpada. Não há noite naquele lugar, e nada que esteja manchado entrará ali, nem tampouco nenhum daqueles que cometem a abominação e a mentira, senão tão somente aqueles cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro (Ap 21). E o anjo mostrou-me um rio de água vivificadora, clara como o cristal, que saia do trono de Deus e do Cordeiro. Em meio da praça da cidade, nas margens do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto a cada mês, e as folhas da árvore servem para curar aos povos. Ali não mais haverá maldições, senão que Deus e o Cordeiro estarão entronizados nela, e seus servidores lhe servirão. E verão seu rosto, e terão o Nome dele escrito em sua fronte. E ali não haverá mais noite, e não necessitarão da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus lhes iluminará e reinarão pelos séculos dos séculos (Ap 22). E eu, João, sou aquele que ouvi e vi estas coisas: Et ego Joannes, qui audivi et vidi haec (Ap 22, 8).

Vede as belas e ricas maravilhas que São João escreve a respeito da Cidade Santa:

  1. é a nova Jerusalém em um novo Céu e uma nova terra;
  2. é o tabernáculo de Deus com os homens; Deus habitará com eles; eles serão seu povo, e Ele será seu Deus;
  3. Deus enxugará todas as lágrimas;
  4. Deus renovará tudo: Ecce nova facio omnia.
  5. a Jerusalém celestial brilha com a claridade de Deus; ali jamais haverá noite, senão um dia que dura eternamente; não se necessitará nem do sol nem da lua, porque o esplendor da luz de Deus a ilumina e o Cordeiro é a sua lâmpada.
  6. tem uma muralha de jaspe; esta muralha significa a força e a segurança dos eleitos;
  7. suas doze portas indicam que o Céu está aberto em todas as partes e em todos os tempos e a todas as horas, para os justos e para os Santos, sem exceção de pessoas;
  8. tem doze alicerces. Estes doze alicerces significam que descansa sobre a santidade e sobre a doutrina contida no Símbolo dos Apóstolos, que tem doze artigos.
  9. é quadrada: o que indica sua exata e perfeita arquitetura, assim como a admirável união de seus cidadãos;
  10. é vasta e espaçosa; donde se deduz sua magnificência e o imenso numero de seus habitantes.
  11. Seus edifícios e suas praças são de ouro puro como o cristal; porque no Céu tudo é puro e precioso, e tudo se manifesta aos eleitos;
  12. Deus é seu templo; porque os eleitos veem, respeitam, honram, adoram e louvam a Deus e ao Cordeiro.
  13. As nações marcharão a sua luz e os reis da terra levarão a sua glória ao seu seio, quer dizer, que no Céu estarão reunidas a pompa e a glória de todos os reis, dos príncipes e dos pontífices;
  14. O rio de vida significa a abundância da sabedoria e de todos os prazeres puros. As árvores, tão belas e tão férteis, assinalam a imortalidade e a eternidade.

O Céu está construído pela mão do próprio Deus: qual não é, pois, sua formosura, seu esplendor e suas riquezas? Deus é seu incomparável adorno. O lugar que os eleitos ocupam ali é infinitamente formoso, posto que está preparado pelo próprio Jesus Cristo: Vou preparar-vos um lugar, diz a seus Apóstolos: Vado parare vobis locum (Jo 14, 2). Com seu Sangue e sua morte comprou e pagou a Deus, seu Pai, o preço destas moradias celestiais; comprou-as para no-las dar. E se quereis conhecer seu valor, apreciai, se o podeis, o valor do Sangue de Jesus Cristo.

Quais serão, diz Santo Agostinho, as riquezas Daquele cuja pobreza fez-nos ricos? Quid facturae sunt divitiae ejus, cujus paupertas nos divites fecit? (In Epist. II ad Cor.). Com efeito, o que Jesus Cristo empregou para resgatar-nos? Um presépio e uma cruz… o que não teremos, pois, no Céu, onde ele manifesta todos os seus tesouros?

Todo o bem que existe, diz Santo Agostinho, está no Céu, e nenhuma coisa má jamais penetra ali: Quidquid boni est, ibi est; et quidquid mali est, ibi nusquam est (Lib. XXII, de Civit., c. XXX). O Céu, diz em outra parte, é uma cidade cujo rei é uma verdade, cuja lei é a caridade, e cuja duração é a eternidade: Coelum est civitas, ubi rex est veritas, lex charitas, modus aeternitas (Lib. de Civit.). De quais bens, pergunta Santo Euquério, Deus não há de cumular a seus eleitos no Céu, Ele que tanto dá aqui na terra aos ingratos? Quam bona rependet bonis, qui tam magna largitur ingratis? (Epist. as Valer.).

O reino dos Céus, diz Santo Agostinho, sobrepuja em grandeza a tudo o que se pode dizer; é superior a todos os elogios e supera a todas as glórias imagináveis: Regnum Dei omni fama majus est, omni laude melius, omni glória putatur, excellentus (Lib. de Diligendo Deo).

Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que segundo sua grande misericórdia regenerou-nos com uma viva esperança para alcançar algum dia uma herança incorruptível, e que não se pode contaminar, e que é imarcescível, que nos reservou no Céu! (1 Pd 1, 3-4).

O Senhor em Sião é grande: elevado está sobre todos os povos, diz o Salmista: Dominus in Sion magnus, et excelsus super omnes populos (Sl 98, 2).

Se a glória do Senhor enchia o templo de Salomão, de que glória não há de estar cheio o Céu, lugar onde Ele habita? Por isso, dizia Isaías que os eleitos verão ao Rei em sua glória: Regem in decore suo videbunt (Isai. XXXIII, 17).

Aquilo que Deus prepara para os que O amam, diz Santo Euquério, não pode ser compreendido pela fé, nem penetrado pela esperança, nem conhecido pela caridade; sobrepuja infinitamente a todos os desejos e a todos os votos: é uma coisa que se pode obter, porém não se pode apreciar em seu justo valor[1].

Volta a vista a Sião, diz Isaías, cidade onde se celebram nossas solenidades; teus olhos verão Jerusalém, esta mansão opulenta, uma tenda que não poderá ser transladada para outra parte: Respice Sion, civitatem solemnitatis nostrae; oculi tui videbunt Jerusalem, habitationem opulentam, tabernaculum quod nequaquam tranferri poterit (Is 33, 20). Desde que o mundo é mundo, os homens não conceberam, o ouvido não percebeu, o olho não viu, senão somente Vós, ó Deus, o que haveis preparado para aqueles que Vos estão aguardando, diz o mesmo profeta: A saeculo non audierunt, neque auribus perceperunt, oculus non vidit, Deus, absque te, quae praeparasti exspectantibus te (Is 64, 4).

Ó cidade de Deus, gloriosas coisas se disseram de ti, exclama o Real Profeta: Gloriosa dicta sunt de te, civitas Dei (Sl 86, 3).

Brilho e esplendor dos eleitos, primeiro princípio de sua felicidade no Céu

Falando do brilho e da glória dos Santos no Céu, São João Crisóstomo diz que o último dos eleitos possui no Céu um esplendor e uma glória maiores que as que Jesus Cristo manifestou em sua transfiguração, porque moderou ambas as coisas para adequá-las à vista de seus três Apóstolos. Por outro lado, os olhos do corpo não suportam sofrer um brilho que os olhos da alma sofrem perfeitamente. Logo, os Apóstolos não viam mais que a glória exterior, e no Céu veremos, por sua vez, a glória exterior e interior de Deus e de cada um dos eleitos (Homil. ad pop.).

No Céu, diz Santo Agostinho, os eleitos veem a Deus sem interrupção: o conhecimento que eles tem Dele, não está sujeito ao erro; amam-Lhe sem poder ofender-Lhe, e louvam-No sem jamais se cansarem[2].

Agora não vemos a Deus, diz São Paulo, senão como em um espelho e por meio de imagens obscuras; porém, então, O veremos face a face. Eu não o conheço agora senão imperfeitamente; porém, então, o conhecerei da maneira como eu sou conhecido: Videmus nunc per speculum in aenigmate; tunc autem facie ad faciem. Nunc cognosco ex parte; tunc autem cognoscam sicut cognitus sum (1 Cor 13, 12). Deus será tudo em todos, diz o grande Apóstolo: Deus omnia in omnibus (1 Cor 15, 28).

Queridíssimos meus, diz o apóstolo São João, agora mesmo somos filhos de Deus, porém, não aparece, todavia, o que algum dia seremos. Sabemos, sim, que quando se manifestar claramente Jesus Cristo, seremos semelhantes a Ele por que O veremos como Ele é: Carissimi, nunc filii Dei sumus: et nondum apparuit quid erimus, quoniam videbimus eum sicuti est (1 Jo 3, 3).

Senhor, em vossa luz, veremos a luz, diz o Salmista: In lumine tuo videbimus lumen (Sl 35, 10).

No Céu, a razão está plenamente iluminada, e a inteligência não tem que temer o erro. No Céu, os eleitos desejam, anseiam ver, e vem tudo o que desejam; vem a essência de Deus em si mesma, vem o mistério da Santíssima Trindade, o da Encarnação e o da Redenção: veremos a Deus tal como é: Videbimus Eum sicuti est.

Todos os divinos atributos de Deus aparecem claramente aos olhos dos eleitos.

A divindade de Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, é como o grande sol que preside ao dia da bem-aventurança celestial; e sua humanidade é como a lua que preside a noite deste mundo (Lib. De Civitate Dei).

Santa Teresa conta que um dia Jesus Cristo mostrou-lhe Sua mão glorificada. Para dar-nos uma ideia do brilhante esplendor desta Mão, fez a seguinte comparação: Figurai-vos, disse ela, um rio muito límpido, cujas águas correm brandamente por um canal do mais puro cristal; figurai-vos ainda quinhentos mil sóis, tão brilhantes e, contudo, mais brilhantes do que aquele que ilumina a terra, lançando e reunindo neste rio todos os seus raios refletidos pelo cristal sobre o qual corre; pois bem, esta luz deslumbrante não é mais do que uma noite escura se a comparasse com o esplendor da mão de Jesus Cristo: qual não será, pois, a luz e o brilho que irradia sua Humanidade e sua Divindade unidas. Acrescentai ao esplendor do Filho do Pai e do Espírito Santo, o da Mãe de Deus, o dos novos Coros Angélicos, o dos Patriarcas e dos Profetas, dos Apóstolos e dos Mártires, dos Confessores e das Virgens, o de todos os Santos.

Resplandeça, diz o Salmista, sobre nós a luz do Senhor Deus nosso: Et si splendor Dei nostri super nos (Sl 89, 17).

No Céu, diz a Sabedoria, os justos brilharão como o Sol, e como centelhas que discorrem por um canavial, assim voarão de umas partes a outras (Sl 3, 7).

Jerusalém, cidade de Deus, brilharás com uma luz deslumbrante, exclama o santo homem Tobias: Jerusalem, civitas Dei, luce splendida fulgebis (Tb 13, 11-13).

Felizes os habitantes da cidade eterna, diz Isaías, já não haverá necessidade de sol que dê luz durante do dia, nem te iluminará o esplendor da lua, senão que o Senhor mesmo será a tua luz sempiterna, e a tua glória ou claridade será o teu próprio Deus, e os dias de vosso luto terão acabado: Non erit tibi amplius sol aslucendum per diem, nec splendor lunae illuminabit te; sed erit tibi Dominus in lucem sempiternam, et Deus tuus in gloriam tuam, et complebemtur dies luctus tui (Is 60, 19-20).

Darei a meus eleitos, diz o Senhor, por meio de Jeremias, uma terra que mereça ser o objeto de todos os votos, uma brilhante herança: Tribuam tibi terram desiderabilem, haereditatem praeclaram (Jer 3, 19). A pátria celestial, herança nossa, diz Santo Tomás, está iluminada pelo esplendor da visão divina (In his verbis Jerem.).

Os justos, diz Jesus Cristo, resplandecerão como o sol no reino de seu Pai: Justis fulgebunt sucit sol im regno Patris eorum (Mt 13, 43).

Dentro de pouco, já não me vereis; mas pouco depois, em ressuscitando, me tornareis a ver, porque vou para ao Pai, diz Jesus Cristo a seus Apóstolos (Joan. XVI, 16). Deus, diz Santo Agostinho, não retarda muito o cumprimento de sua promessa; pouco depois o veremos em um lugar onde nada teremos que pedir, onde nada teremos que indagar, porque nada nos faltará para desejar nem conhecer[3].

Os eleitos veem sempre a Deus, diz em outra parte, este grande Santo, e desejam ver-Lhe sempre: tão agradável é a vista de Deus. Neste deleite, descansam plenos de Deus. Não se separando da soberana bem-aventurança, são felizes. Contemplando sem cessar a eternidade, são eternos; unidos à verdadeira luz, convertem-se também em luz. Ó bem-aventurada visão na qual se contempla em toda a sua formosura ao Rei dos Anjos, ao Santo dos Santos, a quem todos devem a existência! Justos, regozijai-vos, estremecei de alegria, porque vedes Aquele a quem amais, tendes Aquele que desejais, possuis Aquele que, então, jamais temereis perder; Ele é a salvação, a vida, a paz e todos os bens[4].

No Céu, diz São Bernardo, veremos o brilho da glória, o esplendor dos Santos, a majestade de um poder verdadeiramente real; conheceremos o poder do Pai, a sabedoria do Filho, a bondade infinita do Espírito Santo. Ó bem-aventurada visão, que consiste em ver a Deus em si mesmo, em ver-Lhe em nós, e em ver-nos com Ele, com uma feliz alegria, com uma inexplicável felicidade[5].

Os eleitos são iluminados pelo esplendor de Deus e por seu próprio esplendor, que é o reflexo do de Deus. Deus, o eterno Sol de Justiça, enche ao Céu e aos eleitos com seu divino brilho. Os Santos são como outros tantos sóis submersos nos raios do Sol supremo do qual recebem todo o seu brilho, ao mesmo tempo que cada um deles participa também do esplendor de todos os seus companheiros de glória. Todos veem a Deus inteiro em si mesmo, todos veem-se em Deus, Deus está inteiro em todos e em cada um: Ut sit Deus omnia in omnibus. Ó formoso Céu, dizem-se de ti coisas gloriosas. Gloriosa dicta sunt de te, civitas Dei.

União dos eleitos com Deus, segundo princípio de sua felicidade no Céu

No Céu cumpre-se a súplica, o desejo de Jesus Cristo quando dizia a seu Pai, falando de seus discípulos, Fazei que todos sejam uma mesma coisa, e que como tu, Pai, estás em mim e eu em ti por identidade de natureza, assim sejam eles uma mesma coisa em nós por união de amor. Eu estou neles, e tu em mim, a fim de que sejam consumados na unidade. Ego in eis, et tu in me, ut sint consummati in unum (Jo 17, 23). Eis aqui, diz São Bernardo, o fim, eis aqui a consumação, eis aqui a perfeição, eis aqui a paz, a alegria no Espírito Santo, este é o silêncio de arroubamento no Céu: Hic est fmis, haec est consummatio, haec est perfectio, haec est pax, hoc est gaudium in Spiritu Sancto, hoc est silentium in coelho (In haec verba Joann).

Deus está todo em todos os eleitos, a fim de manifestar neles todo Seu poder, e ser ali a vida, a salvação, a virtude, a abundância, a glória, a honra, a paz e todos os bens. Estas palavras do Apóstolo “Deus será tudo em todos” devem se entender, diz São Jerônimo, no seguinte sentido: O Senhor, Salvador nosso, não está todo em todos aqui na terra, senão somente, em parte, em cada um. Por exemplo, está em Salomão pela sabedoria, em Davi pelo poder, em Jó e em Tobias pela paciência, em Daniel pelo conhecimento das coisas futuras, em Pedro pela fé, em Paulo pelo zelo, em João pela virgindade, e em outros, por outros favores. Porém, quando houver chegado o fim do mudo, então está todo em todos; cada santo terá todas as virtudes, e Jesus Cristo estará inteiro em cada um deles (Epist. Ad Amand.)

Deus está totalmente em todos:

  1. Assim como gotas de água se incorporam ao oceano, assim todos os bem- aventurados se perdem em Deus pela visão beatífica e pelo amor; estão absortos e unidos a Deus que é o soberano Bem e merece soberanamente ser amado.
  2. Esta união dos eleitos com Deus é semelhante à luz do sol que penetra a atmosfera, de tal maneira, que ela mesma parece ser a luz; assim Deus de tal maneira enche aos bem-aventurados com seu esplendor e sua glória que eles parecem muito mais deuses que homens.
  3. É semelhante à união do ferro com o fogo. Sob a ação do fogo, o ferro se avermelha e parece que se converte em fogo; assim os eleitos, amando e possuindo a Deus, tornam-se de tal maneira abrasados com o fogo divino que chegam de certo modo a transformar-se em Deus.
  4. O mel mesclado com a água converte-a em mel; assim Deus, com sua doçura, alimenta e embriaga de tal maneira aos eleitos, que parecem ser a mesma doçura; porque Deus é um oceano infinito de delícias, de alegria e de consolo.
  5. Os acordes harmoniosos enchem agradavelmente o ouvido de todos os que os ouvem; assim os eleitos estão cheios das divinas harmonias de Deus;
  6. Um espelho sem mancha recebe e reflete todas as figuras que estão diante dele, de modo que pareçam viver e mover-se ali; da mesma maneira todos os eleitos existem, vivem e se movem em Deus.

Quem compreenderá, diz São Bernardo, a multidão e a extensão das delícias contidas nestas palavras: Deus será tudo em todos? É pelo entendimento da plenitude da luz; pela vontade, pela paz perfeita. Pela memória, a eternidade. Ó verdade, ó caridade, ó eternidade! Suspira por vós, porque desgraçadamente está longe de vós. Esperai em Deus: todo erro se afastará de vosso entendimento, toda resistência de vossa vontade, todo terror de vossa memória, e virá logo uma luz admirável, uma serenidade completa, uma segurança eterna, nossa alegria e nossa esperança. Deus, como Verdade, verificará a primeira maravilha; como Caridade, verificará a segunda; como Poder supremo, obrará a terceira (Serm. XI. in Cant.).

Eis a tenda de Deus erguida entre os homens, diz o Apocalipse, e permanecerá com eles, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus, habitando no meio deles, será seu Deus: Ecce tabernaculum Dei cum hominibus, et habitabit cum eis; et ipsi populus ejus erunt, et ipse Deus cum eis erit eorum Deus (Ap 21, 3).

Do mesmo modo que alguns levam nas mãos flores odoríferas, a fim de respirar os suaves perfumes de emanam, assim Deus tem em sua mão, ou melhor, em seu coração a todos os eleitos, e se deleita com o doce odor de suas virtudes.

Os eleitos estarão unidos entre si; cada um deles participará dos bens de todos, e todos dos bens de cada um: terceiro princípio de felicidade

Os eleitos encontrarão uma felicidade inefável no amor que hão de experimentar uns pelos outros em sua união, e na comunicação dos bens de todos a cada um, e dos bens de cada um a todos.

Escutai a Santo Agostinho: No Céu, não haverá ciúmes do qual provenha a desigualdade do amor; todos se amam da mesma maneira: Non erit ibi aliqua invidia disparis caritatis, ubi in imnibus regnat unitas caritatis (De coelesti vita). O Céu, acrescenta o mesmo Doutor, será testemunha de um formoso espetáculo: ninguém inferior invejará a sorte dos que estejam acima dele, como no corpo humano o dedo não tem ciúmes do olho, nem os ouvidos da língua, nem os pés da cabeça. Não deverão, sem embargo, os eleitos de um posto inferior ter inveja dos que lhes sobressaem? Não, assim responde Santo Agostinho. E o explica: um pequeno vaso que está cheio está tão pleno como um grande; um tanque cuja água transborda está tão cheio como o mar; nada lhe invejará, nem lhe pode invejar, posto que não pode receber nem uma gota a mais do que contém. Assim sucede com os eleitos. Deus está igualmente em todos: somente aquele que haja trazido mais, não dinheiro, mas fé, tem maior capacidade relativamente a Deus: Deus omnibus aequaliter adest; sed apud Deum plus habet loci, qui plus attulerit, non argenti, sed fidei (Homil. De Cent. Ovib).

Tal caridade une tão perfeitamente aos eleitos entre si, que o bem que um eleito não recebe diretamente, recebe-o em certo modo com a felicidade que experimenta vendo-o recebido por outro; está tão satisfeito do bem que cabe a seus companheiros, como do seu próprio: Tanta vis caritatis ibi omnes associat, ut bonum quod quisque in se non accepit, in alio se gaudeat accepisse (Lib. IV Moral., c. XXXI). Todos possuem a Deus, que é a unidade perfeita, e nesta unidade não constituem mais que um. Assim, mesmo na terra, os primeiros cristãos davam um espetáculo análogo: todos não tinham mais que um coração e uma alma; ninguém considerava como seu nada do que possuía, senão que tudo era comum: Multitudinis autem credentium erat cor unum, et anima uma, nec quisquam eorum, quae possidebat, aliquid suum esse dicebat, sed erant illis omnia comunia (At 4, 32).

Uma mãe terna alegra-se das carícias e dos presentes que concedem a seu filho querido; olha-os como se os oferecessem a ela mesma: da mesma maneira cada um dos eleitos olha como dados a si mesmo os bens que Deus entrega a seus companheiros.

Esta mútua união e caridade é a alegria dos bem-aventurados; ela constitui seu regozijo; cada um deles se alegra por conta de sua felicidade e da felicidade dos outros; cada um deles é feliz pela dita de todos, e todos o são pela dita de cada qual. Assim, eles multiplicam sua felicidade. Uma fonte inesgotável apaga a sede tanto de cem mil homens quanto de um só, e ninguém tem ciúmes da água que os demais bebem, posto que ela é abundante, e não há de esgotar-se por maior que seja a quantidade que se consuma: o mesmo sucede com os eleitos. Existe entre eles uma união que de todos não faz mais que um, união infinitamente íntima e perfeita que jamais se alterará nem poderá se romper. Estão consumados na unidade, isto é, em Deus: Ut sint consummati in unum.

Há tão grande amor, diz Santo Anselmo, por uma parte, entre Deus e os eleitos, e, por outra, entre os mesmos eleitos, que todos os eleitos se amam mutuamente, tanto como cada um deles se ama a si mesmo; porém, todos amam a Deus mais que a si mesmos: Tanta erit dilectio inter Deum et eos qui ibi erunt, et inter seipsum, ut omnes invicem diligant sicut seipsos, sed plus omnes ament Deum quam seipsum (Epsit. II ad Hugon).

Todos, diz São Bernardo, tem a mesma alegria, o mesmo afeto, os mesmos gozos, a mesma vontade, o mesmo pensamento e um amor eterno (Medit., c. IV).

Os eleitos são os herdeiros de Deus, diz São Paulo: Hoeredes Dei (Rm 8, 17). Esta herança, diz Santo Agostinho, não é como as da terra; não diminui com o número dos que tem direito a ela; o mesmo toca a muitos e a alguns. Há a mesma herança para todos e para um só. Cada qual recebe toda a herança, posto que tem a Deus inteiro; e todos o recebem integralmente, estando Deus em todos: Deus omnia in omnibus. Deus não constitui aos eleitos herdeiros de um bem que se lhes entrega por morte do possuidor. Ele mesmo se dá em herança, e os destina a viver eternamente com Ele. Aqui na terra, é necessária a morte do possuidor para herdar; no Céu, é preciso que o doador, que é Deus, viva sempre, a fim de que os que estão chamados a possuí-Lo possam receber e guardar sempre sua Herança. Na terra, aquilo que alguém tem um outro não o tem; no Céu, cada qual possui o que os demais possuem, e todos tem o bem dos demais, isto é, Deus. Deus não colocou limites em Si mesmo, nem ao seu redor, e ninguém os pode estabelecer. Ele diz a cada eleito do mesmo modo que a todos: Eis-me aqui, Eu que sou o oceano sem limites e sem margens, entrego-me a vós, deletai-vos de mim (In Psalm. CXXXVI, CXLIX).

Todos possuem a herança por inteiro, sem que diminuam as riquezas de Deus, diz Santo Ambrósio; e a herança é tanto maior para cada um dos herdeiros, quanto mais eles são numerosos (In Psalm. CXVIII).

Ó Cidade Celestial! Dizem-se coisas gloriosas de ti: Gloriosa dicta sunt de te, Civitas Dei. Deus fará eternamente a vontade dos eleitos, e eles farão eternamente a de Deus.

Escutai a Hugo de São Vítor: no Céu, diz, há tudo o que há de se amar, tudo o que pode se desejar. Se a formosura agrada aos justos, brilharão como o sol: Justi fulgebunt sicut sol (Mt 13, 43).

Desejam ser ágeis e fortes? Serão semelhantes aos anjos.

Desejam uma longa vida? Terão a eternidade.

Desejam a saúde? Será perfeita.

Querem ser saciados? Senhor, exclama o Rei Profeta, eu serei saciado quando se me manifestar vossa glória: Saciabor cum apperuerit gloria tua (Sl 16, 15).

Tem sede de felicidade? Senhor, prossegue o Salmista, a abundância de vossa casa lhes embriagará: Inebriabuntur ab ubertate domus tuae (Sl 35, 9).

Querem prazeres a alegrias? Vós lhes fareis beber, Senhor, na torrente de vossas delícias: Torrente voluptatis tuaepotabis eos (Sl 35, 9).

Querem sabedoria? Todos a possuirão, todos serão ensinados de Deus, diz Jesus Cristo: Erunt omnes docibiles Deis (Jo 6, 45).

Querem um grande poder? Serão introduzidos na consideração das obras do Senhor: Introibo in potentias Domini (Sl 70, 16). Serão onipotentes sobre sua vontade e sobre a vontade de Deus, como Deus o será sobre a deles. Porque da mesma maneira que Deus pode por Si mesmo tudo o que quer, os eleitos podem, por Deus, tudo o que eles querem.

Quem honra e riquezas? Deus lhes faz donos de todos os bens: Supra multa te constituam (Mt 25, 21). Animo, servidor bom e fiel, diz Jesus Cristo, tu foste fiel tratando de coisas de pouca importância; por isso te farei dono de grandes bens; participa da alegria de teu Senhor: Euge, serve bone et fidelis, quia super pauca fuisti fidelis, super multa te constituam: intra in gaudium Domini tui (Mt 25, 21).

Desejam a segurança e o jamais achar-se sujeitos ao temor? Estão certíssimos de não perder jamais o bem que possuem, como de não consentir eles mesmos em perdê-lo. Estão seguros de não se verem jamais privados de Deus, a Quem amam e que lhes ama.

Querem uma recompensa? Eu, diz o Senhor, serei sua recompensa, e recompensa superabundante. Ego erro merces tua magna nimis (Gn 15, 1).

Querem a paz? Estão submergidos no próprio rio de paz, no oceano divino. Desejam a alegria? Todo o Céu, diz Isaías, respirará alegria e regozijo; ali ouvir-se- ão os contínuos ecos das ações de graças e os cânticos de louvores (Is 51, 3).

Querem a agilidade, a impassibilidade, a claridade, a sutileza? São Paulo lhes assegura que seus corpos terão todas esses formosos dotes (1 Cor 15, 42-44). Eles possuem a Deus, que é a formosura, a força, a duração, a saúde, a sabedoria, o poder, a riquezas, a paz, a alegria em grau supremo.

Querem a perfeição de todos os bens? Eles tem a Deus.

Querem o afastamento de todos os males? No Céu jamais haverá dores, diz o Apocalipse: Neque dolor erit ultra (Ap 21, 4). Deus enxugará todas as lágrimas de seus olhos; já não haverá morte, nem pranto, nem clamores, nem dor. Tudo haverá passado: Absterget Deus omnem lacrymam ab oculis eorum; et mors ultra nin erit, neque luctus, neque clamor, neque dolor erit ultra, quia prima abierunt (Ap 21, 4). Para eles a morte está vencida, triunfaram dela e canta a derrota e sua vitória. Ubi es, mors, victoria tua (1 Cor 15, 55).

Haverá tentações no Céu? Não, o tentador foi lançado e excluído dali para sempre.

Assim como Deus pode fazer tudo o que quer por si mesmo, da mesma maneira os bem-aventurados fazem tudo o que querem por Deus. Não há mais que uma lei no Céu, e é a lei do amor de Deus. Lei à qual todos os eleitos querem e quererão eternamente conformar-se, porque encontram nela a suprema felicidade. Não querem mais do que aquilo que Deus quer. O que os leitos querem, Deus o quer; o que Deus quer, os eleitos querem; o que um eleito quer, todos os eleitos o querem, e Deus também o quer. Todos querem o mesmo: amar a Deus e ser amados por Ele. O que querem está conforme seus desejos, e seus desejos estão conformes à vontade de Deus. Eles tem tudo o que querem, tudo o que amam, tudo o que desejam; e Deus, por sua parte, encontra neles tudo o que quer, e tudo o que ama. Eles desejam, e seus desejos ficam satisfeitos. Ficam saciados, e não deixam de desejar.

Para que a ansiedade não acompanhe os seus desejos, diz São Gregório, recebem tudo o que desejam ao ponto que desejam; e para que o desgosto não suceda à sua saciedade, ainda que saciados, não deixam de desejar. Desejam sem cansar-se, porque o afeto coroa seu desejo; e ficam saciados sem experimentar desgosto, porque o desejo nasce de sua própria saciedade. Assim, por uma parte, sentem desejo eterno de ser saciados e, por outra, cumprimento eterno de seus eternos desejos: Ne sit in Desiderio anxietas, desiderantes satiantur; et ne sit in satietate fastidium, satiati desiderant. Et desiderant sine labore, quia desiderum satietas comiatur; et satiantur sine fastidio, quia ipsa sacietas ex Desiderio semper accenditur (Lib. XVIII Moral., c. XXVIII).

Estaremos plenos dos bens infinitos da casa de Deus, diz o Salmista: Replebimur in bonis domus tuae (Sl 64, 5).

Que inefável felicidade: gozaremos no Céu! Deus será tudo em todos. Deus omnia in omnibus. Ó cidade de Deus! Gloriosas coisas são ditas de ti: Gloriosa dicta sunt de te! Civitas Dei!

No Céu os eleitos serão reis, quinto princípio de sua felicidade

Felicidade inefável dos eleitos: serão reis. O que cada eleito quiser, seja com relação a si mesmo, seja com relação a seus companheiros, seja com relação ao mesmo Deus, no mesmo momento se verificará. Não é isto ser um grande rei? Existe algo comparável a isso na terra? Todos juntos com Deus serão reis e não formarão mais que um só rei e como um só poder. Cada eleito será perfeitamente rei, porque se verificará, no mesmo instante, tudo quanto queira. Quereis ser reis no Céu? Amai a Deus e ao próximo como deveis, e merecereis ser o que desejais.

Eu vi, diz São João no Apocalipse, uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, de todas as tribos, de todos os povos e de todos os idiomas; estavam de pé diante do trono e diante do Cordeiro levando vestes brancas com palmas nas mãos: Vidi turbam magnam, quam dinumerare meno poterat, ex omnibus gentibus, et tribubus, et populis, et linguis, stantes ante thronum, et in conspectu Agni, amicti stolis albis, et palmae in manibus eorum (Ap 7, 9). Estas palmas indicam a vitória; aos vencedores se lhes concede honras reais.

Os eleitos verão a face de Deus; seu nome estará escrito sobre suas frontes; reinarão pelos séculos dos séculos: gozarão constantemente da vista de Deus, como amigos e íntimos seus, e serão menos servidores que príncipes e reis.

Receberão o reino da glória e uma brilhante coroa da mão do Senhor, diz a Sabedoria: Accipient regnum decoris, et diadema speciei de manu Domini (Sb 5, 17). Esta menção de uma coroa significa que os eleitos serão reis no Céu: obterão o reino de Jesus Cristo, e toda a sua glória, como vencedores do mundo, de Satanás e da carne. A coroa é a insígnia tanto do rei, como do vencedor.

O Senhor, ó Jerusalém, trará de volta teus filhos, conduzidos com o decoro de filhos do reino, diz o profeta Baruc: Portatos in honore sicutfilios regni (Br 5, 6).

Ó Senhor, exclama Santo Agostinho, quão glorioso será vosso reino, onde todos os Santos reinam convosco, revestidos de luz como com um manto, e tendo sobre suas cabeças uma coroa de pedras preciosas! O reino da eterna bem- aventurança, onde sois, Senhor, a esperança dos Santos e a coroa de sua glória[6].

As palavras tronos e coroas, que se apresentam tantas vezes na linguagem da Sagrada Escritura, provam que todos os eleitos serão reis.

Ó cidade de Deus! Gloriosas coisas são ditas de ti: Gloriosa dicta sunt de te! Civitas Dei!

No Céu, os eleitos serão como deuses, sexto princípio de sua felicidade

Os eleitos serão transformados em Deus por sua visão e seu amor; estarão como incorporados Nele; Deus encherá de tal maneira a seus eleitos com sua glória, que parecerão muito mais deuses do que simples criaturas.

No Céu, todos os eleitos são como deuses, diz Santo Agostinho: Quotquot ibi sunt, dii sunt (De spiritu et anima).

A glória é a consumação da graça; os eleitos, diz São Pedro, participam da natureza de Deus: Divinae consortes naturae (2 Pd 1, 4). Ali, participam eles plena e perfeitamente; porque Deus, manifestando-se claramente aos bem-aventurados, os transforma em si mesmo, a fim de fazê-los semelhantes, isto é, felizes, gloriosos, e como deuses. A finalidade de todas as ações e de todas as contemplações dos eleitos é a deificação: convertem-se em Deus como o ferro se converte em fogo.

No Céu, a alma iluminada pela luz incriada, brilha com um esplendor divino: o amor de Deus apodera-se dela de tal maneira, que nela nada aparece senão Deus; parece-se ao ferro encandecido em uma frágua, que se converte em fogo.

Sabemos sim, diz o Apóstolo São João, que quando Jesus Cristo se manifestar claramente, seremos semelhantes a ele na glória, porque o veremos como Ele é: Scimus quoniam, cum apparuerit, símiles ei erimus, quiniam eum sicuti est (1 Jo 3, 2).

Entre Deus e nós existem três princípios de semelhança:

1.° a natureza; porque, como Deus, somos de uma natureza inteligente;

2.° a graça, que faz nascer em nós as virtudes, como diz São Bernardo; e

3.° a glória beatifica tanto que, no Céu, aproxima-nos de Deus tanto quanto seja possível.

No Céu, diz Santo Agostinho, a alma humana estará absorta e perdida; far- se-á divina: Absorbebitur et perdetur mens humana, et fiet divina (In Psalm. XXXV).

São Bernardo assegura que Deus, nesta vida, tudo presenteou com número, peso, medida, porém, no Céu, tudo está ali sem peso, sem número, nem medida (Serm. In Cant.).

Os eleitos vem Deus Nele mesmo, veem-No em si mesmos, e veem-se Nele.

No Céu cumpre-se, de algum modo, o dito de Satanás a nossos primeiros pais: sereis como deuses: Eritis sicut dii (Gn 3, 5).

Ó cidade de Deus, gloriosas coisas são ditas de ti: Gloriosa dicta sunt de te, civitas Dei (Sl 86, 3).

No Céu, os eleitos terão a felicidade suprema, possuirão todos os bens

No Céu, os eleitos meditam a majestade incompreensível de Deus, saboreiam suas doçuras; admiram-Lhe, amam-Lhe e louvam-Lhe.

Aquele a quem nada lhe falta, é verdadeiramente rico e feliz; porém somente aos bem-aventurados não lhes falta nada. Eles são, pois, os únicos ricos e felizes.

Quão grande é a felicidade dos eleitos, diz Santo Agostinho. No Céu, nenhum bem faz falta, nenhum mal existe. Louva-se ali Aquele que é tudo em todos. Bem-aventurados aqueles que habitam em vossa casa, ó Senhor; eles Vos louvam durante os séculos dos séculos. Todos os membros da assembleia dos eleitos ocupam-se de celebrar a Deus. Somente a glória verdadeira está ali onde não há lisonja para aquele que é louvado, nem erro da parte daquele que louva. No Céu, está a honra verdadeira que não se recusa a nenhum daqueles que a merecem, e somente é concedida aos que dela são dignos (Lib. I de Civit. Dei, c. VII).

No Céu, existe a paz que não tem término, a glória infinita, a eterna alegria, a festa eterna.

No Céu, diz Santo Agostinho, brilha Aquele que não pode estar contido em nenhum lugar; ali, ouve-se uma harmonia que o tempo não limita; ali respira-se um perfume que não é levado pelos ventos; ali saboreia-se um prazer que não altera a saciedade. Ali, vê-se a Deus sem esforço; ali, Ele é conhecido sem temor de equivocação; ali, Ele é amado; ali, Ele é louvado sem interrupção (De Spiritu et Anima).

Como, Senhor, exclama São Bernardo, não haveis de embriagar aos eleitos com uma torrente de prazeres, Vós que haveis derramado sobre aqueles mesmos que Vos crucificaram o bálsamo de vossa Misericórdia? (Serm. In Cant.).

No Céu, diz Santo Agostinho, está o cúmulo de felicidade, a glória suprema, a alegria infinita, e, enfim, todos os bens: Ibi est cumulus felicitatis, supereminens gloria, superabundans laetitiae, et omnia bona (Lib. Medit., c. XIX).

Apressemo-nos, pois, a entrar naquele repouso eterno, diz São Paulo aos Hebreus: Festinemus ergo ingredi in illam requiem (Hb 4, 11). Com efeito, diz São João Crisóstomo: o descanso[7] está ali, onde não há nem solicitude, nem trabalho, nem tristeza, nem dores, nem gemidos, sem agonia. Não é desta terra, da qual se tem dito: “Comerás o pão com o suor do teu rosto”. Tudo ali é paz, regozijo, felicidade e delícias. Ali não há inveja, nem ciúmes, nem enfermidades, nem morte. Ali não há trevas, senão um dia sereno; ali, não há cansaço nem desgosto (Homil. IV).

No Céu, diz São Gregório, está a luz que não se apaga, a alegria a qual não interrompem os gemidos, o desejo que não se cansa, o amor sem tristeza, a saciedade sem desgosto, a vida que não se acaba com a morte, a saúde que jamais se altera por enfermidades. Uma caridade perfeita reina ali, uma mesma alegria e um mesmo regozijo existem para todos[8].

No Céu, diz São Bernardo, a recompensa consiste em ver a Deus, viver com Deus, viver de Deus, estar próximo de Deus, e estar em Deus, que será tudo em todos. E onde encontra-se Deus, Bem supremo, ali acha-se a felicidade suprema, o supremo prazer, a verdadeira liberdade, a caridade perfeita, a eterna segurança e a eternidade que não engana; ali está a verdadeira alegria, a ciência perfeita, a formosura e a bem-aventurança infinitas. Ali encontra-se a paz, a piedade, a bondade, a luz, a virtude, a honradez, a alegria, a doçura, a vida que sempre dura, a glória, o louvor, o repouso, o amor e a admirável concórdia[9].

O reino de Deus, diz Santo Agostinho, está pleno de luz, de paz, de caridade, de doçura, de felicidade infinita, e de um bem inefável superior a todo pensamento e a toda expressão. A vida futura é eterna e eternamente feliz; ali se goza de uma seguridade inalterável, de uma tranquilidade segura, de uma alegria pacífica, de uma feliz eternidade e de uma eterna dita. O amor é ali perfeito, o temor nulo, o dia sem crepúsculo: Futura vita sempiterna et sempiterne beata, ubi est certa securitas, secura tranquillitas, tranquila jucunditas, feliz aeternitas, aeterna felicitas; ubi amor estperfectus, timor nullus, dies aeternus (Lib. Medit., c. XXII).

O homem é feliz, diz em outra parte o mesmo Santo Padre, chegando à possessão do Ser cuja felicidade é eterna. Eis aqui a felicidade sem fim, eis aqui para o homem o princípio de uma vida que não cessará nunca, de uma sabedoria que não conhecerá término: a luz que lhe ilumina, é a luz eterna[10].

Os eleitos, diz o Apocalipse, estão diante do trono de Deus, e Lhe servem dia e noite em seu Templo; e Aquele mesmo que está sentado no trono habitará no meio deles. Não terão mais fome, nem sede, já não lhes incomodará mais o calor do sol nem o mormaço, porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será seu pastor e lhes levará a fontes de águas vivas, e Deus enxugará toda lágrima de seus olhos (Ap 7, 15-17).

Regozijemo-nos, tenhamos alegria, dizem os eleitos, e tributemos glória a Deus, porque as bodas do Cordeiro chegaram, e sua esposa está preparada: Gaudeamus et exultemos, et demus gloriam ei; quia venerunt nuptiae Agni, et uxor ejus praeparavit se (Ap 19, 7). Esta esposa de que fala o Apocalipse, é a Santa Igreja coroada por Jesus Cristo no Céu. Felizes aqueles que estão chamados para o banquete nupcial do Cordeiro: Beati qui ad caenam nuptiarum Agni vocati sunt (Ap 19, 9).

Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor no Apocalipse. Eu darei gratuitamente de beber da fonte de água da vida àquele que tenha sede. Aquele que vencer possuirá estes bens, e eu serei seu Deus e ele será meu filho: Ego sum Alfha et Homega, initium et finis, Ego sitienti dabo de fonte aquae vitae grátis. Qui vicerit, possidebit haec, et erro illi Deus, et ille erit mihi filius (Ap 19, 6­-7).

Senhor, diz o Salmista, ensinastes-me as sendas da vida: cumular-me-eis de gozo com a vista de vosso divino rosto: à vossa destra se acham delícias eternas (Sl 15, 11). Um rio caudaloso acrescenta alegra a cidade de Deus; o Altíssimo é glorificado em seu Tabernáculo: Fluminis impetus laetificat civitatem Dei. Sanctificabit tabernaculum suum Altissimus (Sl 45, 5). Feliz, Senhor, exclama o Salmista em outro lugar, aquele a quem Vós elegestes e achegastes a Vós: ele habitará em vosso Tabernáculo. Cumulados seremos dos bens de vossa casa: Beatus quem elegisti et assumpsisti: inhabitabit in atriis tuis. Replebimur in bonis domus tuae (Sl 64, 5). Felizes aqueles que habitam em vossa casa, Senhor, eles vos louvarão para sempre: Beati qui habitant in domo tua, Domine; in saecula saeculorum laudabunt te (Sl 83, 5).

Plenos de gozo estão, ó Sião, todos quantos em ti habitam (Sl 83, 1). Plantados na casa do Senhor, os justos florescerão nos átrios da casa de nosso Deus (Sl 91, 13). Gozarão os Santos na glória, e regozijar-se-ão em suas moradas (Sl 149, 5).

Aquele que desfrute da bem-aventurança, diz São Bernardo, verá a Deus tanto como queira; fará Dele suas delícias, e Lhe possuirá para sua dita. Estará pleno de força na eternidade; brilhará na verdade, regozijar-se-á na bondade. Terá a eternidade por término de sua existência, a facilidade de conhecer, a dita do repouso. Como os anjos, será habitante daquela Cidade, cujo templo é Deus, o Pai, cuja luz é Jesus Cristo, e cuja caridade é o Espírito Santo[11].

No Céu, diz Santo Agostinho, há uma festa sem fim, uma eternidade sem mancha, uma serenidade sem nuvens: Ubi festivitas sine fine, aeternitas sine labe, serenitas sine nubes (Lib. De Civit. Dei).

Deus manifesta todo bem a seus eleitos: Ego ostendam omne bonum tibi (Ex 33, 19).

O anjo no momento de deixar Tobias, pai e filho, disse-lhes: Parecia que comia e bebia convosco, porém eu me sustento de um manjar invisível e uma bebida que os homens não podem ver: Videbar quidem vobiscum manducare et bibire; sed ego cibo invisibili, etpotu, qui ab hominibus videri non potest utor (Tb 12, 19).

No Céu, diz São Bernardo, está a consumação da alegria e da felicidade; porém, esta consumação seria a consumação do desejo? É mais um azeite que alimenta; porque o desejo pode se comparar com uma chama. O bem-aventurado estará pleno de alegria, porém não terá fim seu desejo; e, por conseguinte, tampouco sua ânsia; donde provirá aquela saciedade não acompanhada de desgosto; donde aquela insaciável curiosidade que, sem embargo, não conhece inquietude; donde aquela sede eterna e inexplicável que não é o resultado da necessidade; donde aquela embriaguez, plena de sobriedade, que se sacia, não com vinho, senão com a verdade, e que suspira por Deus[12].

No momento de sua morte, Santo Tomás de Aquino respondeu aos que lhe perguntavam se necessitava de alguma coisa: Não necessito de nada, porque logo terei tudo, e gozarei do Bem supremo e único (In ejus vita).

A eternidade forma a coroa dos eleitos no Céu. A felicidade é sua vestimenta, seus discursos são uma harmonia, eles abraçam o bem infinito que lhes sacia.

No Céu, diz São Bernardo, veremos qual doce é o Senhor; contemplaremos o brilho de sua glória, o esplendor dos santos e a honra do poder do grande Rei. Conheceremos o poder do Pai, a sabedoria do Filho, a admirável clemência do Espírito Santo; assim teremos o conhecimento desta Augusta Trindade (De Praemio caelest. patriae).

As delícias celestiais aumentam o apetite, ao mesmo tempo que o saciam; porque quanto mais se desfruta delas, mais se aprecia sua excelência, conforme aquelas palavras do Eclesiástico: Qui edunt me, adhuc esurient; et qui bibunt me, adhuc sitient: Os que me comem, ainda terão fome, e os que me bebem terão ainda sede (Ecl 24, 29).

Assegurou o Senhor o bem de cada uma de todas as suas obras. Porém, e a glória Dele, quem se saciará de contemplá-la? Uniuscujusque confirmavit nona? Et quis satiabitur videns gloriam ejus? (Ecl 42, 26).

Contemplemos a admirável saciedade dos Anjos e dos Santos. De que doçura não encherá os eleitos a eterna visão de Deus! Tudo o que agrada, tudo o que é vantajoso, todas as riquezas, todas as delícias, o repouso e o consolo estão no Céu; porque o que poderia faltar ali onde se vê e se possui a Deus, a quem nada falta? Os eleitos veem a Deus e desejam não deixar de O ver: tão formoso é; amam-No, e desejam não deixar de amar-Lhe: tão digno é de amor. Possuindo a Deus, eles descansam nesta felicidade; unidos à verdadeira bem-aventurança, são soberanamente felizes; contemplando ao Ser eterno, eles também são eternos; unidos à verdadeira luz, tornam-se luminosos.

Alegrai-vos, pois, bem-aventurados eleitos, porque já vedes Aquele a quem amais, já obtivestes Aquele que desejáveis por largo tempo! Ó minha alma, desperta-te, excita tua inteligência e medita, o quanto possas, que bem e que grande bem é Deus; porque, se qualquer bem é agradável, quando mais agradável há de ser o Bem que encerra todos os bens, o Bem que se diferencia de todos os bens criados, como o Criador é diferente da criatura! Se a vida criada é boa, qual deve ser a excelência da vida criadora! Se a saúde é preciosa, quão preciosa é a saúde que cura todos os males! Se é admirável a sabedoria que se descobre no mundo visível, quão admirável deve ser a sabedoria que tudo fez do nada! Enfim, se há numerosos gozos nos bens da terra, que gozo infinito não há de se experimentar ao possuir aquele que produz tudo o que é agradável!

Gozar de Deus é uma felicidade tão grande, que o coração do homem não poderia naturalmente contê-la; romper-se-ia e explodiria, se Deus deixasse de o fortificar e conservar. Os eleitos amam de tal maneira a Deus com toda a sua alma e com toda a sua força, que seu coração não basta para seu amor; são tão felizes, que seu coração não basta para conter a alegria de que transborda. Na eterna e perfeita felicidade, os eleitos gozam de Deus de três modos:

1.° contemplando-Lhe nas demais criaturas;

2.° contemplando-Lhe em Si mesmo, que é infinitamente mais doce;

3.° contemplando à Trindade em si mesma, o que constitui a suprema felicidade, porque a vida eterna consiste em ver a Deus como Ele é.

A paz de Deus, esta paz que é superior a todo entendimento, e mais ainda a todo merecimento, está na doce morada do Céu. Ninguém busque, pois, o meio de expressar o que não lhe foi dado experimentar. Será colocada em vosso colo uma boa medida, calcada, apertada, e bem cumulada, até que se derrame, diz Jesus Cristo: Mensuram bonam, et confertam, et cogitatam, et superefluentem dabunt in sinum vestrum (Lc 6, 38).

Assim como o homem com seus cinco sentidos, a vista, a audição, o paladar, o olfato e o tato, goza das coisas temporais exteriores, da mesma maneira que o Céu goza inefavelmente de Deus de cinco maneiras: ele O vê, ouve-O, degusta-O, sente- O e une-se a Ele com eternos abraços.

Volta tua vista a Sião, cidade onde se celebram nossas solenidades, diz Isaías; teus olhos verão a Jerusalém, mansão opulenta (Is 33, 20). Isaías chama à Igreja triunfante:

1.° cidade das festas, porque o Céu fará uma festa perpétua, uma alegria, um louvor e uma harmonia que durará pelos séculos dos séculos;

2.° chama-a Jerusalém, palavra que significa visão da paz,

3.° chama-a mansão opulenta, porque ali se encontram, com abundância, todos os esplendores, todas as graças, todas as riquezas, todas as glórias.

Ó cidade santa! Não se ouvirá mais falar de iniquidade em tua terra, nem de estragos, nem de pragas dentro de teus confins; melhor ainda, reinará a felicidade dentro de teus muros, e em tuas portas ressoarão cânticos de louvor: Non audietur ultra iniquitatis in terra tua, vastitas et contritio in terminis tuis; et occupabit salus muros tuos, et portas tuas laudatio (Is 60, 18).

No Céu, não haverá iniquidade, destruição, pragas, senão que, entre todos os eleitos, reinarão a equidade, a santidade, a caridade supremas. Aqui na terra, frequentemente, o inimigo invade nossos muros e apodera-se de nossas portas: aflige-nos a tribulação, a fome, os desgostos, as enfermidades e as lágrimas, etc. Porém, no Céu, reinam a paz, a alegria, a felicidade e o regozijo: ouvem-se ali ressoar louvores e cânticos de amor etc.

Escutai a São Bernardo: Dizemos, Senhor, Vós que o sabeis o que nos preparais. Teremos em abundância os bens de vossa casa, porém, quais bens? Será vinho, azeite ou trigo? Mas nós conhecemos estes bens, vemo-los e cansam-nos. Buscamos o que nossos olhos não viram, o que o ouvido não percebeu, o que não passou em pensamentos humanos. Deus será, diz, tudo para todos. Aqui na terra, a razão engana-se muitas vezes nos juízos que forma, a vontade é joguete de mil agitações, a memória está afligida com numerosos esquecimentos, vossa criatura tão nobre, entretanto, está sujeita, com pesar às três vaidades e misérias que acabo de indicar, ainda que tomado pela esperança de ver-se livre delas. Porém, no Céu, o que satisfaz os desejos da alma será para a inteligência a plenitude da luz, para a vontade a paz soberana, para a memória a recordação eterna. Ó verdade, ó caridade, ó eternidade! Em que dores não se precipita aquele que se afasta de Vós? Em que temores não se submerge? Desgraçados! Que “trindade” teremos colocado no lugar correspondente à Trindade Santa! Meu coração foi agitado por inclinações contrárias: daqui veio minha dor; recordo-me de que a força me abandonou várias vezes: daqui vem o meu temor; de que a luz me fez falta: daqui veio o meu erro; Ó “trindade” de minha alma, ofendestes a Trindade Suprema! Sem embargo, não te desanimes, não te perturbes, espera em Deus; pois eu O louvarei, todavia, quando minha inteligência escapar para sempre do erro, minha vontade, da dor, e minha memória do temor (Serm. II, in Cant.).

Disse o Senhor: Meus criados comerão, meus criados apagarão sua sede, regozijar-se-ão, entoarão, sob os impulsos de júbilo de seu coração, hinos de louvor. As precedentes angústias caíram no esquecimento e desapareceram de meus olhos. Eu vou criar novos Céus e nossa terra, e das coisas ou tribulações primeiras não se fará mais memória, nem recordação alguma, senão que vos alegrareis e regozijareis eternamente naquelas coisas que vou criar; pois eis aqui que eu formarei Jerusalém, cidade de júbilo, e a seu povo, povo de alegria. E colocarei minhas delícias em Jerusalém, e encontrarei meu gozo em meu povo: jamais se ouvirá nela a voz de pranto, nem de lamento (Is 65, 15-17).

Fazendo o elogio de Santa Paula, diz São Jerônimo: Paula terminou sua carreira, conservou a fé, agora desfruta da coroa da justiça, e acompanha o Cordeiro por todas as partes. Está saciada, porque teve fome. Plena de alegria, canta. Tudo o que havíamos ouvido dizer, vemo-lo realizado na cidade de nosso Deus. Intercâmbio feliz! Chorou, para adquirir alegria eterna; desprezou as águas lamacentas e venenosas para apagar sua sede nas fontes do Senhor; aplicou-se o cilício, para fazer credora de cingir o vestido sem mancha dos eleitos e poder dizer: Vós me despistes os trapos que me cobriam, e me revestistes de regozijo. Ela comia cinza com seu pão. Ela mesclava suas lágrimas com a bebida, repetindo: Dia e noite, dessedentei-me com minhas lágrimas, a fim de nutrir-me durante a eternidade com o pão dos Anjos e poder cantar “Provai e vede quão suave é o Senhor”.

Congratulai-vos, pois, diz Isaías, com a nova Jerusalém e regozijai-vos todos com ela todos vós que a amais: transbordai com ela de gozo todos quantos por ela estais chorando, a fim de que sugueis assim, de seus peitos, o leite das consolações celestiais até ficar saciados, e possais extrair abundante fartura de delícias de sua consumada glória. Porque isto diz o Senhor: Eis que eu derramarei sobre ela como um rio de paz, e como uma torrente que tudo inunda, a glória das nações; vós sugareis seu leite, sereis levados em suas ancas, e acariciados sobre seu colo, como uma mãe acaricia a seu filho; assim Eu vos consolarei a vós, e encontrareis vossa paz e consolação em Jerusalém. Vós o vereis e se regozijará vosso coração, e vossos ossos rejuvenescerão como a erva, e será visível a mão do Senhor a favor de seus servos, ao passo que fará experimentar sua indignação os seus inimigos (Is 66, 10-11).

Ó quantos filhos darei a ti! diz o Senhor por boca de Jeremias: eu te darei a terra deliciosa, uma herança esclarecida de exércitos de gentes. E acrescenta: Tu me chamarás Pai e não cessareis de caminhar atrás de mim (Jer 3, 49).

A herança da pátria celestial, diz Santo Tomás, é admirável:

1.° pelo esplendor da visão divina; porque diz o Salmista: Em vossa luz veremos a luz (Sl 35, 10);

2.° pela doçura do amor divino, segundo aquelas palavras de Davi: Quão excelente é o meu cálice que santamente embriaga! (Sl 22, 5);

3.° pela familiaridade do trato com Deus; porque, como nos diz a Sabedoria: Encontra-se grande glória em participar de seus raciocínios (Sb 8, 18);

4.° pela magnificência das obras de Deus, segundo as palavras do Eclesiástico (Eclo 43, 27);

5.° pela grandeza a que seremos elevados, como o atesta o profeta Zacarias: Salvá-vos-ei, e sereis objeto de benção (Zc 8, 15); e

6.° Pela doçura que se experimenta na sociedade dos santos (S. Th. III, q. art. 9).

No Céu, diz Santo Agostinho, tudo é o sumo da grandeza, tudo é verdade, tudo santidade, tudo eternidade: In coelho, omnia summa sunt, vera sunt, sancta sunt, aeterna sunt (In Psalm. XLIX).

1.° no Céu, desfrutaremos de uma felicidade eterna, e de uma alegria sem medida e sem fim. Despoja-te, Jerusalém, da veste de luto correspondente a tua aflição, diz o profeta Baruc, e veste-te de brilho e da magnificência daquela glória eterna que te vem de Deus: Exue te, Jerusalem, stola luctus, et vexationis tuae, et indue te decore, et honore ejus quae a Deus tibi est sempiternae gloriae (Br 5, 1);

2.° os eleitos estarão no esplendor da glória;

3.° terão um nome novo;

4.° no Céu estão os exércitos dos Santos.

Quantas serão vossas delícias, ó Vós que amais a Deus!, exclama Santo Agostinho; regozijar-vos-eis na abundância da paz. Vosso ouro será a paz, vossa prata a paz, tudo o que desejais, será paz para vós. Ali, vosso Deus será tudo para vós; alimentar-vos-eis Dele para não ter fome; bebereis Dele para não ter sede;

sereis iluminados por Ele para não vos tomar cegos; sereis sustentados por Ele para não cairdes. Ele vos possuirá inteiramente, e vós O possuireis da mesma maneira, por Deus e vós não formareis mais que uma só coisa por união de amor[13].

Ó vida, exclama o mesmo Doutor, ó vida que Deus preparou para aqueles que Lhe amam, vida que é realmente a vida, vida ditosa, vida segura, vida tranquila, vida digna de desejar-se, vida pura, vida casta, vida santa, vida que não conhece a morte, vida sem tristeza, vida sem mancha, sem dor, sem inquietude, sem alteração, sem mudança, sem turbação, vida plena de formosura, de dignidade; quanto mais estudo-te, mais desfaleço de amor (Medit., CXXII).

Deus será nossa morada, acrescenta Santo Agostinho, e nós seremos a morada de Deus: Habitabimur et habitabimus (Lib. IV de Civit., c. VII).

No Céu, encontra-se:

1.° uma alegria indizível jamais debilitada pelo fastio etc.;

2.° a integridade de todas as faculdades da alma. A alma, em consequência do pecado de Adão, experimenta em sua inteligência a obscuridade e a ignorância; em sua vontade, uma inclinação para coisas perecíveis; na parte irascível, temores e espantos diversos; na parte concupiscível, a debilidade e a inclinação ao mal; em sua memória, o esquecimento que se fixa no passado como o mofo e o ferro. No Céu, Jesus Cristo cura todos os males, dando à inteligência a luz e a ciência; à vontade a constância e o bem; ao irascível, uma força heroica; ao concupiscível, a honestidade e a retidão que fazem que somente se deseje o bem; à memória, a recordação eterna do bem e o eterno esquecimento do mal;

3.° a saúde da alma, que será a glória, a visão e a possessão de Deus.

Depois da ressurreição dos corpos, os eleitos participarão da glória

O corpo, diz São Paulo, à maneira de uma semente é posto na terra em estado de corrupção, e ressuscitará incorruptível: é posto na terra disforme, e ressuscitará glorioso. É posto na terra privado de movimento, e ressuscitará pleno de vigor; é posto em terra como um corpo animal, e ressuscitará como um corpo todo espiritual, isto é, livre de todas as alterações materiais, e em perfeita concordância com o espírito: Seminatur in ignobilitate; surget in gloria. Seminatur in infirmitate; surget in virtute. Seminatur corpus animale, surget corpus spiritale (1 Cor 15, 42-44).

A luz tem quatro qualidades, que transmitirá aos corpos gloriosos: a claridade, a incorruptibilidade, a agilidade e penetração[14].

Os corpos dos eleitos, diz Santo Agostinho, não estarão sujeitos à deformidade, ao peso, à enfermidade, nem à corrupção. Sua claridade ou esplendor preservar-lhes-á de toda deformidade; escaparão do peso com sua agilidade; das debilidades, com a penetração ou sutileza; da corrupção, com a impassibilidade (De Civit. Dei).

O Céu durará eternamente

Um rio caudaloso alegra a cidade de Deus. Deus está em seu meio, não será abalada; Deus a socorrerá já desde o raiar da aurora: Deus in medio ejus non commovebitur (Sl 45, 6).

O Senhor reinará com os justos para sempre, diz a Sabedoria: Regnabit Dominus illorum in perpetuum (Sb 3, 8).

Os justos viverão eternamente, acrescenta a Sabedoria: Justi in perpetuum vivent (Sb 5, 16).

A vida eterna, diz São Bernardo, é a plenitude, é um dia que não conhece ocaso; é o sol sempre em seu ápice; é a verdadeira glória em todo o seu brilho, a eterna verdade, a verdadeira eternidade, a eterna e verdadeira saciedade. Sua duração não tem término, seu esplendor não tem sombra; aqueles que gozem dela, não temerão nunca perdê-la (Serm. in Psalm.).

Se buscamos bens, diz São Gregório, amemos os que teremos por toda a eternidade; e se tememos alguns males, temamos os castigos que não hão de ter fim: Si bona quaerimus, illa diligamus quae sine fine habebimus; si autem mala pertimescimus, illa timeamus quae a reprobis sine fine tolerantur (Epist. ad Andraeam).

Teus olhos verão um tabernáculo que não poderá ser transladado a nenhum outro lugar, diz Isaías: Oculi tui videbunt trabernaculum quod nequaquam transferi poterit (Is 33, 20).

Terão a Sião, diz também Isaías, cantando louvores, coroados de gozo sempiterno: desfrutam de um celestial prazer e contentamento, e fugirá deles para sempre a dor e o pranto (Is 30, 10).

A eternidade é a inteira, perfeita e infinita possessão da vida. A eternidade:

1.° não tem fim;

2.° jamais está interrompida;

3.° é inteira em cada instante de sua duração;

4.° é o perfeito gozo da vida e de todos os bens.

Nos bens da terra, há muitas imperfeições, e muitas coisas nos fazem falta. Por exemplo, se se tem riquezas, faltam honras; se se tem honras, falta a saúde; se se tem a saúde, falta a ciência; se tendes ciência, vos falta eloquência. Se assistis a um banquete, ao momento que vos achais satisfeitos, já desaparece vosso apetite e o prazer que experimentáveis; o vigor, a força de alma e de corpo se desvanecem logo. Na vida eterna, ao contrário, os bem-aventurados disfrutam de todos os bens de uma só vez; possuem as riquezas de Deus, as honras de Deus, a ciência de Deus, a saúde de Deus, a força de Deus, as felicidades de Deus, tem todos estes bens de uma só vez, e os terão todos durante a eternidade. Não deixarão, pois, de ser felizes: Laetitiae sempiterna super caput eorum (Is 35, 10).

Os justos, diz Jesus Cristo, irão à vida eterna: Ibunt justi in vitam aeternam (Mt 25, 46).

O que é a eterna bem-aventurança? Perguntemo-lo aos que chegaram a ela e a desfrutam. Pedro, Paulo, João,… os Santos Apóstolos, dizei-nos:

O que é a bem-aventurança?

Não é impossível expressá-lo de modo que se nos entenda, e sem embargo, já faz mil e oitocentos anos que desfrutamos dela.

Perdestes alguns dias de vossa felicidade eterna?

Nem uma hora, nem um momento, é como se começasse a cada instante: sempre nova, sempre deliciosa, sempre a mesma, e ainda nos resta uma eternidade para gozar.

O que vem a ser essa dita tão grande?

É o abismo das alegrias, o abismo dos tempos, o abismo dos séculos, alegrias, tempos e séculos que jamais terão término nem limite; é a longitude, a altura e a profundidade incomensuráveis. Ainda que sejamos muito prudentes e muito sábios, não podermos apreciar nossa eternidade, nem medi-la; ela escapa a todo Jamais terá fim nosso reino, nossa alegria, nossa glória, nossa felicidade. Temos o eterno peso de uma sublime e incomparável glória: “Aeternum gloriaepondus operatur in nobis” ( 2Cor 4, 17).

Mártires, confessores, virgens etc., dizei-nos quanto durou o tempo de vossa prova, quanto sofrestes, e qual é agora vossa sorte, e quando ela haverá de durar.

Nossas provas, nossos sofrimentos não duraram mais que um instante; e graça nos fez encontrar o modo de suplantá-los, e nossa recompensa não terá fim.

O Céu tem uma juventude eterna, uma formosura eterna, uma vida eterna, uma paz eterna, uma amor eterno. Somente quando Deus veja o fim de Sua eternidade, os eleitos deixarão de ser felizes.

Ó cidade de Deus, gloriosas coisas se disse de ti: Gloriosa dicta sunt de te, civitas Dei (Sl 86, 3).

É fácil ir ao Céu

As aflições tão curtas e tão ligeiras da vida presente, diz São Paulo, produzem-nos um eterno peso de uma sublime e incomparável glória: Id enim quod in praesenti est momentaneum et leve tribulationis nostrae, supra modum in sublimitate aeternum gloriae pondus operatur in nobis (2 Cor 4, 17).

Escutai a São Bernardo explicando aquelas palavras consoladoras do grande Apóstolo. Vós seguis, murmurando e dizendo: As penas são demasiado largas e terríveis; eu não posso sofrer tanto tempo uma carga tão pesada. O Apóstolo diz que o se sofre é momentâneo e passageiro; e, sem embargo, vós não haveis certamente recebido, como ele, por cinco vezes, quarenta açoites menos um; não haveis trabalhado mais que todos os outros; não haveis resistido até ao derramamento de sangue. Considerai que os trabalhos não são nada comparados à glória. Porque, primeiramente, na incerteza em que viveis, com que finalidade contais os dias e as horas? Passam as horas, e o sofrimento com elas; as penas não estão ligadas entre si de tal modo que se constituam num todo; sucedem e desaparecem. Não ocorre o mesmo à glória e à recompensa destinadas ao prêmio do trabalho; não conhecem nem diminuição nem fim, e existem inteiras a cada instante, porque são eternas.

Em segundo lugar, a pena se apura gota a gota, sofremo-la pouco a pouco, passa e não dura mais que um instante. Porém, na remuneração, há uma torrente de delícias, um rio impetuoso que inunda de alegria; há um rio de glória, um rio de paz, um rio de felicidade.

Em terceiro lugar, não nos estão prometidas ricas vestimentas e uma casa formosa, mas a própria glória. Porque, na realidade, os justos não esperam alegria alguma, senão que possuam a própria alegria. Os homens buscam sua felicidade em meios dos banquetes, das pompas, das riquezas, dos prazerem enganosos; porém, amargas e inesgotáveis lágrimas são o término destas pretendidas alegrias, entretanto, tão curtas. Deus, ao contrário, reserva aos eleitos, não uma gota, senão um favo de mel puro e dulcíssimo; reserva-lhes a própria alegria, a vida, a glória, a paz e a grandeza; e isto tudo de uma só vez, por toda a eternidade. Esta é a recompensa, esta é a coroa que podemos obter com labutas ligeiras e de pouca duração (Serm. 1).

A glória que espero, diz São Francisco de Assis, é tão grande, que qualquer enfermidade, qualquer mortificação, qualquer humilhação, qualquer pena, regozija- me: Tanta est gloria quam exspecto, ut me omnis morbus, omnis morificatio, omnis himuliatio, omnis poena me delectet (São Boaventura, in ejus vita).

O reino dos Céus vende, diz Santo Agostinho: Vós o quereis? Comprai-o. Não há motivos para estardes ansiosos em coletar grandes somas por medo do aumento de preços. Seu valor é igual ao que vós tendes. Não examineis o que tendes, mas o que sois. O Céu vale o que vós valeis. Dai-vos a vós mesmos e o tereis. Porém, dir-me-eis, eu sou mal, e talvez Deus não me queira. Dando-vos a Ele, sereis bons. E quando o sejais, sereis o preço da mesma coisa que comprareis: Regnum Dei venale est; eme, si vis. Nec multum exaestues de re magna propter pretii magnitudinem. Tantum valet quantum habes. Noli quaerere quid habeas, sed qualis sis. Res ista tanti valet, quanti es tu. Ta da, et habebis illam. Sed malus sum, inquies, et forte ne non accipiet. Dando te illi, bonus eris; cum autem bonus fueris, pretium ipsius rei eris (Serm. LXIV, in Evang. S. Joann.).

Amar não é muito difícil; o coração foi feito para amar. E nós merecemos o Céu pelo amor. O amor de Deus é a moeda com a qual podemos comprar a coroa da glória.

Porque somos estúpidos?, pergunta-o São Pedro Crisólogo. Onde estamos? Que sonho é este que nos entorpece? Que esquecimento mortal é este que se apoderou de nós? Porque não trocamos a terra pelo Céu? Porque não compramos as riquezas eternas com aquela que se dissipa tão rapidamente? Porque não nos procuramos os bens imperecedouros por meio dos bens caducos da terra? (Serm. CXXIV).

Vivei para a verdade, para a imortalidade, para a eternidade, e tereis a Deus por recompensa.

Escutai ainda ao admirável e incomparável Santo Agostinho, pondo na boca do Senhor as seguintes palavras: ‘O que possuo está à venda; comprai-o! O que Deus vende?, prossegue este Padre da Igreja, o repouso, o Paraíso. De que maneira se faz pagar? Com trabalho. Com que trabalho? Um repouso eterno deveria ser comprado com um trabalho eterno; porém, quão grande e a misericórdia de Deus! Deus não diz: trabalhai durante um milhão de anos; não diz: trabalhai mil anos; nem sequer diz: trabalhai durante cinquenta anos, senão: trabalhai durante o pouco tempo que viveis na terra, e assim alcançareis o repouso que não terá fim (In Psalm. XCIII).

As penas atuais, diz São Bernardo, não são nada, em comparação dos pecados que nos são perdoados, da graça e dos consolos que agora se nos concedem, e da glória sem fim que se nos promete: Non sunt condgnae passiones hujus temporis adpraeteritam culpam quae remittitur; adpaesentem consolationis gratiam quae mittitur; ad futuram gloriam quaepromittitur nobis (Serm. in Cant.).

Perguntai aos eleitos se o Céu lhes custou muito, e se os trabalhos que sofreram estão em proporção de sua dita, de sua glória, de sua coroa eterna.

Perguntai aos réprobos se, caso fosse de que Deus lhes permitisse voltar à terra para fazer penitência e ganhar o Céu, achariam muito dura essa permissão.

MEIOS DE GANHAR O CÉU

1.° É preciso desejá-lo

O primeiro meio para chegar ao Céu é desejá-lo. Quando será que eu chegarei, diz Santo Agostinho, segundo o Salmista, e me apresentarei ante a face de Deus, para ver-Lhe na bondade de seus eleitos, para regozijar-me na alegria de seu povo, e para que Ele seja louvado com sua herança. Quando verei aquela Cidade da qual se diz: Tuas praças, Jerusalém, estão calçadas de ouro puro, e em todos os bairros se ouvem cantares de Aleluia! Ó cidade santa, cidade bela, eu te saúdo de longe e clamo a ti, eu te busco; porque desejo ver-te e descansar em ti; porém, me detém os laços da carne. Ó Cidade digna de ser desejada! Teus muros estão formados com uma única pedra, tua guarda é o próprio Deus, teus cidadãos sempre alegres, porque se congratulam sempre na visão de Deus[15].

Combati com valor, diz o grande Apóstolo, conclui a carreira, guardei a fé. Somente resta-me esperar a coroa da justiça que me está reservada, e que o Senhor, que é o justo juiz, me há de dar naquele dia; e não somente a mim, senão também a todos aqueles que desejam sua vinda[16].

Como deveis ser vós na santidade de vossa vida e piedade de costumes, aguardando com ânsia, e correndo a esperar a vinda do dia do Senhor, dia em que os Céus incendiados se dissolverão, e derreter-se-ão os elementos com o ardor do fogo? Bem que esperamos, conforme sua promessa, novos Céus e nova terra, onde habitarão eternamente a justiça[17].

Ah! exclama o Real Profeta, quem me dará asas como as da pomba? E voarei e descansarei?: Quis dabit mihi penas sicut comumbae? Et volabo, et requiescam? (Sl 54, 7). E certamente qual coisa posso apetecer eu entre as do Céu, nem o que hei de desejar sobre a terra fora de Vós, ó Deus meu? Ah, minha carne e meu coração desfalecem. Ó Deus de meu coração, Deus que sois a minha herança por toda a eternidade[18].

Ó quão amáveis são vossas moradas, Senhor dos Exércitos! Minha alma suspira e padece êxtases, ansiando estar nos átrios do Senhor. Transportando-se de gozo meu coração e meu corpo, contemplando ao Deus vivo. O passarinho achou uma fenda onde se abrigar, e a rola, um ninho onde colocar seus filhotes. Vosso altares, ó Senhor dos Exércitos, ó Rei meu e Deus meu… sejam minha casa e meu ninho. Bem-aventurados, Senhor, os que moram em vossa casa, louvar-Vos-ão pelos séculos dos séculos[19].

Se é tão doce esperar o Céu, quanto mais não será possuí-lo!, exclama Santo Agostinho: Si spes dulcis est, quanto res dulcior erit! (Lib. de Civit. Dei).

Que os desejos terrenais, diz São Leão, não detenham nossas almas chamadas à elevação; que as coisas perecíveis não ocupem aos que estão destinados às coisas eternas: Sursum vocatus ânimos desideria terrena non deprimant; ad aeternapraeelectosperitura non occupent (Serm. de Quadrag.).

2.º É preciso praticar a pureza

O segundo meio para chegar ao Céu é praticar a pureza.

Os filhos deste século, diz Jesus Cristo, contraem matrimônio reciprocamente. Porém, entre aqueles que serão julgados dignos de outro século, e da ditosa ressurreição dentre os mortos, nem os homens tomarão mulheres, nem as mulheres, maridos, porque não poderão já morrer, outra vez, sendo iguais aos anjos de Deus, pelo estado da ressurreição a que chegarão (Lc 20, 34-36).

A morte reina aqui na terra; eis por que todos tratam de ter descendentes; o pai quer perpetuar sua vida na de seus filhos; porém, no Céu, diz São João Crisóstomo, não existe a morte e, por conseguinte, tampouco casamento: Illic autem mors non erit, et consequenter nec nuptiae (Homil. XXI, 27).

Quem subirá ao monte do Senhor?, pergunta o Rei Profeta. Ó, quem poderá estar no Santuário? É aquele que tem puras as mãos e limpo o coração: aquele que não recebeu em vão sua alma, nem fez juramentos enganosos a seu próximo. Este é aquele que obterá a benção do Senhor, e a misericórdia de Deus, seu Salvador (Sl 23, 3-5).

Bem-aventurados aqueles que mantêm puro seu coração, diz Jesus Cristo, porque eles verão a Deus! Beati mundo corde, quoaniam ipse Deum videbunt (Mt 5, 9).

Jamais possuirão o Céu os impudicos, diz São Paulo: Neque inpudici regnum Dei consquentur (Gl 5, 21). Jamais a corrupção possuirá a herança incorruptível: Neque corruptio incorruptelam possidebit (1 Cor 15, 50).

E, vi, diz São João no Apocalipse, que o Cordeiro estava sobre o Monte Sião, e com cento e quarenta e quatro mil pessoas que tinham escrito em suas frentes o nome Dele e o Nome de seu Pai. Ao mesmo tempo, ouvia uma voz do Céu, semelhante ao ruído de muitas águas e ao estampido de um grande trovão: e a voz que ouvi, era como de citaristas que tangiam suas cítaras. E cantavam como um cântico novo ante o Trono, e diante dos quatro animais e dos anciãos: e ninguém podia cantar nem entender aquele cântico além daqueles cento e quarenta e quatro mil que foram resgatados da terra. Estes são os que não se profanaram com mulheres, porque são virgens. Estes seguem ao Cordeiro onde quer que Ele vá (Ap 16, 1-4).

3.° É necessário fazer-se violência

O reino dos Céus se alcança à viva força, e os violentos são os que lhe arrebatam, diz Jesus Cristo: Regnum caelorum vim patitur, et violenti rapiunt illud (Mt 11, 12).

1.° tendemos ao Céu e fazemo-nos donos dele por meio da força;

2.° chega-se ao Céu fazendo violência às paixões com a prática das virtudes;

3.° chega-se por meio do combate seguido da vitória;

4.° chega-se, vivendo como anjo, pois o Céu é a casa dos Anjos; somente o alcançaremos fazendo-nos semelhantes a eles.

Façamos violência ao Senhor, diz Santo Ambrósio, não O obrigando, mas chorando; não provocando-Lhe com injúrias, senão prosternando-nos humilhados e gemendo a Seus pés. Ó feliz violência que não excita a indignação de Deus, senão que atrai sua misericórdia, arranca provas de bondade Daquele a quem a fazemos, e nos proporciona a salvação! Porque aquele que assim faz violência a Jesus Cristo, será visto por Ele com complacência. Seguindo nosso caminho, apoderemo-nos do Senhor, porque ele é a vida; esforcemo-nos, como ladrões, em despojar-Lhe de seus bens; apressemo-nos a tomar de seu Reino os tesouros, a vida eterna. Ele é tão rico e generoso, que não opõe negativa nem resistência, e depois de haver dado tudo, nem por isso deixa de possuir tudo. É preciso atacar-Lhe vigorosamente, não com espada ou paus, nem a pedradas, senão com doçura, com boas obras, com castidade.

Tais são as armas que deve empregar nossa fé. Porém, a fim de podermos servir-nos delas nesta luta, comecemos por fazer violência a nosso corpo, combatamos seus vícios: assim receberemos a recompensa de nossas virtudes; porque devemos começar por reinar sobre nós mesmos, se queremos apoderar-nos do reino do Salvador e do mesmo Salvador[20].

Regnum coelorum vim patitur, et violenti rapiunt illud: o Reino dos Céus quer ser tomado de assalto, e somente aqueles que assim o tomam, chegarão a assenhorar-se dele. O Céu está alto; o caminho é estreito, espinhoso, cheio de perigos e de inimigos; está escarpado; etc. Olhai aquilo que fizeram os mártires… Violenti rapiunt illud. É preciso imitar o valor do soldado que toma de assalto. Se por um pouco de ambição, de glória ou de honra, o soldado dá provas de uma energia e de um valor heroicos; se para conquistar uma coroa perecível expõe-se a mil penas, a mil privações, a mil gêneros de morte. Quanto zelo, quanta força e constância não deva desprender o cristão para obter uma glória eterna, uma coroa que durará sempre!

A Celestial Jerusalém é chamada Cidade Forte: Urbs Fortitudinis (Is 26, 1); porque, primeiro, é necessário força e valor para entrar nela: ninguém pode penetrar ali sem estas duas virtudes: o Céu é a pátria dos homens fortes e robustos; segundo, porque a Jerusalém Celestial é também muito forte. Quereis saber como está defendida? Escutai o profeta Isaías: O mesmo Salvador é seu muro e antemuro (Is 26, 1). Está com a torre de Davi, cingida de baluartes, da qual pendem mil escudos, todos os escudos dos valentes (Ct 4, 4). Avançando, pois, com valor, é como se pode dar em assalto e penetrar em seu recinto sagrado.

Esforçai-vos, diz Jesus Cristo, para entrar pela porta estreita: Contendite intrare per angustiam portam (Lc 13, 24). Esforçai-vos, isto é, armai-vos, correi, apoderai-vos da cidade eterna, não deixeis de lutar até que tenhais chegado ao porto, à suprema felicidade.

Não se podem obter grandes recompensas, diz São Gregório, sem grandes trabalhos: por essa razão, São Paulo, aquele valoroso atleta, dizia: Não será coroado senão aquele que combater segundo as leis. Alegre-se, pois, nossa alma, com a grandeza das recompensas, e não se assuste pelos trabalhos e pelo combate[21].

4.° É preciso vencer e perseverar

Sê fiel até a morte, e te darei a coroa da vida eterna, diz o Senhor no Apocalipse: Esto fidelis usque ad mortem, et dabo tibi coronam vitae (Ap 11, 10). Ao vencedor, Eu o farei sentar comigo no meu trono: Qui vicerit, dabo ei sedere mecum in trhono meo: sicut et ego vici, et sedi cum Patre meo in throno ejus (Ap 3, 21).

Jesus Cristo oferece-nos a coroa da glória celestial; põe-na à nossa vista; e para excitar-nos a que a alcancemos, dá-lhe diversos nomes e distintos títulos: ora a chama de árvore da vida, ora maná oculto, outras vezes pedra preciosa, aqui um nome novo, ali veste branca, em outra parte estrela da manhã, coluna, trono, etc.

Ânimo, pois, atletas de Jesus Cristo, combatei com valor, apoderai-vos do Céu. Como fez o grande Apóstolo, esquecei as coisas passadas, e ide correndo até o ponto final de vossa carreira, para ganhar o prêmio a que Deus chama desde o alto por Jesus Cristo. É necessário que nenhum trabalho vos pareça demasiado largo, que nenhuma dor seja para insofrível por vós, posto que se vos foi prometido o Céu, a coroa celestial, a eternidade bem-aventurada.

Jesus Cristo, diz o Apocalipse, tinha um arco, e foi-lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso para continuar as vitórias: Habebat arcum, et data est ei corona, et exivit vincens ut vinceret (Ap 6, 2). Este é o que deve fazer todo cristão se quer obter o Céu.

5.° É mister ser paciente

Mediante vossa paciência, diz Jesus Cristo, salvareis vossas almas (Lc 21, 19). In patientia vestra possidebitis animas vestras. Dizem as Atas dos Apóstolos, que São Paulo fortificava aos discípulos e exortava-lhes à perseverança; porque dizia, devemos entrar no reino de Deus por meio de muitas aflições: Per multas tribulationes oportet nos intratre in regnum Dei (At 14, 22).

6.° É preciso estudar os exemplos que nos deram os Santos e, sobretudo, os mártires

Que tão grande bem é o Céu que a esperança nos assegura! Diz Santo Agostinho. É glorioso merecê-lo, e doce possuí-lo, posto que, para merecê-lo, os mártires desprezam as ordens injustas de seus perseguidores, e não temem nem a espada, nem o fogo, nem a morte mais cruel (Lib. de Civit.).

Estes, lê-se no Apocalipse, que estão cobertos de brancas vestes, quem são e de onde vieram? Eu lhe disse: Meu senhor, vós o sabeis. Então, me disse: Estes são aqueles que vieram de uma grande tribulação, e lavaram suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro. Por isso, estão diante do trono de Deus: Hi qui amicti sunt stolis albis, qui sunt et unde venerunt? Hi sunt qui venerunt de tribulatione magna, et laverunt stolas suas, et dealbaverunt eas in sanguines Agni; ideo sunt ante thronum Dei (Ap 7, 13-15).

Padecemos por Jesus Cristo, dizem os mártires: ferem-nos as unhas de ferro, despedaçam-nos os dentes das feras, enchem-nos de chagas os açoites guarnecidos de pontas agudas, nossos membros são deslocados, mata-nos a espada ou queimam- nos vivos; porém, prontamente virá o Sol de justiça, o Juiz pleno de equidade para levantar-nos, para curar e adornar com uma glória eterna nossos membros desgarrados, rotos, mutilados, queimados, devorados: dentro de um instante nossa alma gozará a glória de Deus. Tal era vosso pensamento, ó São Lourenço, quando estendido em uma grelha incandescente, e recheadas de sal vossas feridas, vós ríeis de vossos verdugos. Pensavas no Céu, ó São Vicente, quando não somente vencestes os tormentos, senão também ao mesmo cruel Daciano, tirano e verdugo vosso, com a paciência, a doçura e a generosidade. Sobre a glória eterna meditáveis, ó Santa Cristina, quando atormentada por vosso idólatra pai, e dizia-lhe, lançando- lhe pedaços de vossa carne: Recobra, tirano, recobra a carne que gerastes.

Buscamos os jejuns, as vigílias, os cilícios, a disciplina, para Vós, ó Jesus, dizem os penitentes; mortificamo-nos dia e noite, porque esperamos a ressurreição da carne, e esta carne, hoje macilenta lívida, maltratada e quase morta, ser-nos-á devolvida vigorosa, formosa, florescente e radiante. Então reformareis, Senhor, os corpos que humilhamos, e os fareis semelhantes ao vosso corpo luminoso. E direis a nossas almas: posto que fostes fiéis em poucas coisas, vou fazer-vos donos de grandes bens: entrai na alegria de vosso Senhor: Quia super pauca fuisti fidelis, super multa te constituam; intra in gaudium Domini tui (Mt 25, 21).

Não choremos aqui na terra, dizem os verdadeiros fieis, expostos às tribulações, combatendo e conquistando a vitória; estamos em tempo de aflição e de prova; suspiramos e gememos; nossa carne, o mundo e o demônio nos farão guerra. Ah, fazei, Senhor, que a aurora da salvação eterna brilhe, por fim, sobre nós; que estas enfermidades, que não são mais que sombras, desapareçam; que o sol da eternidade levante-se no horizonte; e que a noite da mortalidade cesse, a fim de que estejamos para sempre ao abrigo dos escrúpulos, dos temores, dos pesares, das tentações, das debilidades, das dores, e que a serenidade, a paz, a força, a alegria, a felicidade sucedam-lhe durante os séculos dos séculos.

7.° É preciso usar do mundo como se não usássemos dele

Paulo Orósio, amigo de Santo Agostinho, dizia: Eu me sirvo neste momento da terra, porém como se fosse minha pátria; porque a verdadeira pátria, a que eu estimo, não está aqui. Não me apeguei a nada, e creio possuir tudo, quando Aquele a quem amo está comigo; Ele sempre é o mesmo ao lado de todos e não abandona a ninguém, está em todas as partes e tudo Lhe pertence (in ejus vita).

É preciso morrer para todas as coisas presentes, viver de Deus, desprezar tudo o que é vão, desejar o real e o sólido, não fazer nenhum caso dos bens da terra, amar os do Céu, morrer para o mundo e viver para Deus, morrer no tempo e viver para a eternidade.

Ó homens, diz São Pedro Crisólogo, se haveis de viver na terra, consagrai- Lhe vossos trabalhos; porém se haveis de abandoná-la, porque, então, desejais nela o que vos pertence, vosso coração, vossa alma, vossa vontade, vossa memória etc? (Serm. CXXIV).

8.° É necessário meditar o que seja o Céu

Elevemos nossa alma até as coisas eternas, admiremos o que é verdadeiramente sublime, disse Sêneca: Mittamus animum ad illa quae aeterna sunt, miremur in sublime (In Prov.).

Levantai os olhos ao Céu, diz São Cirilo, vivei de sua recordação, como peregrino que para lá se dirige; sejam vossos atos e vossos pensamentos dignos do Céu; seja este o fim de vossos esforços, de vossos olhares e de vossos desejos. Quando se apresente alguma coisa penosa, quando a tentação vos mortifique, quando uma cruz pesada vos sobrecarregue, lançai um olhar à cidade celestial, e dizei: Sofrerei toda estas provas, e sairei vitorioso delas por maiores que possam ser. Assim se vai ao Céu (Catech. III, 4).

O pensamento do Céu reanima o ânimo abatido, faz perseverar aos bons e leva o arrependimento ao coração do pecador, etc.

9.° É preciso santificar-se

Caríssimos meus, diz o Apóstolo São João, agora somos filhos de Deus, porém não aparece ainda o que seremos algum dia. Sabemos, sim, que quando Jesus Cristo se manifestar claramente, seremos semelhantes a Ele: porque O veremos tal como Ele é. Entretanto, quem tem tal esperança Nele, santifica-se a si mesmo, assim como Ele também é santo (1 Jo 3, 2-3).

Para ser semelhantes a Jesus Cristo na glória, devemos esforçar-nos em parecer-nos a Ele em santidade, em virtude, em amor.

Santo Agostinho disse muito acertadamente: os justos chegam ao bem supremo por meio de uma cadeia composta de virtudes do seguinte modo: primeiramente, a alma se acha rodeada de fé como de um precioso anel; a fé se une à esperança; a esperança, à caridade; a caridade, às obras; as obras, ao soberano Bem com a boa intenção; a boa intenção se completa com a perseverança, que, por sua vez, chega a Deus, manancial de todos os bens: Ad hoc summum bonun justi quadam catena trahuntur. Quae de virtutibus hoc modo connectitur: in primis fides animam, quase quidam circulus, compectitur; fides spe nutritur, spes dilectione tenetur, dilectio operatione expletur, operatio ad summum bonum intentione trahitur; intentio boni perseverantia clauditur; perseverantia, Deus fons omnium bonorum dabitur (De Cognit. Verae Vitae).


Referências:

[1]  Id quod parat Deus diligentibus, se fide non comprehenditur, spe non attingitur, caritate non capitur, desideria et vota trangreditur; adquiri potest, aestimari non potest (Epist.).

[2]  Ibi siquidem videtur Deus sine intermissione; cognoscitur sine errore; amatur sine offensione; laudatur sine fatigatione (Lib. de Civit.).

[3] Non tardat Dominus promissum modicum et videbimus eum, ubi jam nihil rogemus, nihil interrogemus, quia nihil desiderantur remanebit, nihil quaerendum latebit (Lib. De Civitate Dei).

[4] Semper vidente, et semper videre desiderant: tam desiderabilis est ad videndum. In hac delectatione requiescunt pleni Dei: ashaerentes semper beatitudini, beati sunt; contemplantes semper aeternitatem, aeterni sunt; juncti vero lamini, luz facti sunt. O beata visio, videre Regem angelorum in decore suo, videre Sanctum Sanctorum, per quem facti sunt. Gaudete et exultate, justi, qui videtis quem amasti, habetis quem desiderastis diu, tenetis quem amittere numquam timetis ipse est salus, vita, pax et omnia bona (De Anima et Spiritu).

[5] Ibi videbimus gloriae decorum, Sanctorum splendorem, et regiae potestatis honorem; cosgnoscemus Patris potentiam, Filii sapientiam, Spiritus Sancti beniignissimus clementium. O beata visio, videre Deum in seipso, videre in nobis et nos in Eo felici jucunditate et jucundi felicitate (In I Medit., c. IV).

[6] O quam gloriosum est regnum, in quo Dominie, regnant omnes Sancti, amici, lumine, sicut vestimento, habentes in capite suo coronam de lapide pretioso! O regnum beatitudinis, sempiternae, ubi tu, Domine, spes Sanctorum, et diandema gloriae! (Soliloq., c. XXXV),

[7] Nota do tradutor: Sobre o sentido do descanso dominical aqui na terra, pálido e importante reflexo do descanso eterno do Céu, há que se buscar o equilíbrio entre o sentido religioso e as exigências humanas que se encontram no dever do descanso. Santo Agostinho descreveu o Céu com uma frase lapidar: “Ali descansaremos e veremos. Veremos e amaremos. Amaremos e louvaremos, eis o que será num final sem fim ” (Ibi vacabimus et videbimus. Videbimus et amabimus. Amabimus et laudabimus, ecce quod erit in fine sine fine). Leiam-se estas interessantes palavras de um bispo brasileiro: “O Céu será o lugar do descanso de nossas fadigas. Merece descanso quem se aplica ao que faz, evitando a ociosidade e a preguiça. Aplicar-se significa ter o sentido dos deveres do próprio estado, atenção ao bem que nos é possível fazer, significa não desperdiçar tempo no trabalho. Chegar ao final do dia num agradável cansaço, depois de ter preenchido bem todas as oportunidades de encontro com as pessoas e ter contribuído para o bem da coletividade já é fonte de repouso. Mais ainda será no ocaso de nossa vida, quando nos apresentarmos diante do Senhor. No Céu nós veremos! Encontraremos tudo o que esperamos na fé durante esta vida, contemplaremos a face do Senhor. Até lá, o descanso do dia a dia ou das férias é feito também de tempo para contemplar a natureza, as pessoas, identificar o crescimento dos filhos e demais familiares, enxergar detalhes que nos passam despercebidos no cotidiano da lida da vida. No Céu nós amaremos! Depois da caminhada nesta terra, só levaremos o amor, que ultrapassa as fronteiras entre o tempo e a eternidade. De fato, “O amor jamais acabará. Agora nós vemos num espelho, confusamente; mas, então, veremos face a face. Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido. Atualmente permanecem estas três: a fé, a esperança, o amor. Mas a maior delas é o amor” (I Cor 13, 8.12-13). Quem ama não se estressa, pois se sente feliz ao fazer o bem. Quando repousamos, seja para amar mais e melhor no dia seguinte. Ao fazer férias, não seja este o tempo de vícios e abusos, mas tempo de relacionamento digno e qualificado com as pessoas, o que será fonte de sadio relaxamento. No Céu, nós louvaremos! O ponto de partida da oração é o louvor, antes da ação de graças, do pedido de perdão ou da súplica. E será também o seu ponto de chegada na eternidade, onde proclamaremos para sempre os louvores de Deus. Aqui na terra, sabemos que Deus é glorificado no ser humano vivo, e que experimentamos desde já um antegozo da eternidade, quando somos capazes de elevar expressões de louvor a Deus. Rezar louvando, cantar a glória de Deus, edificar as pessoas pela liturgia bem celebrada e vivida. Tudo isso é fonte de repouso em Deus! Dia de folga, Domingo, Férias! Tudo pode ser diferente olhando para o Céu!

[8] Ibi est luz sine defectu, gaudium sine gemitu, desiderium sine poena, amor sine tristitia, satietas sine fastidio, vita sine merte, salus sine languore. Perfecta viget in omnibus caritas, una omnium laetitiae, uma jucunditas (In Psalm. VII).

[9] Praemium est videre Deum, vivere cum Deo, vivere de Deo, esse cum Deo, esse in Deo, qui erit omnia in omnibus. Et ubi est summum bonum, ibi est summa felicitas, summa jucunditas, ver libertas, perfecta caritas, aeterna securitas, er secura aeternitatis; ibi est vera laetitia, plena scientia, omnis omnis pulchritudo, et omnia beatitudo. Ibi est pax, pietatis, bonitas, luz, virtus, honestus, gaudium, dulcedo, vita perennis, gloria, laus, réquiens, amor, et dulcis concordia (De Praemio coelest. patriae)

[10] Homo fit beatus contingendo illud quod semper beatum manet, et est illud ipse beatitudo perpetua, et unde fit homo vivens vita perpetua, unde fit homo sapientia perpetua, unde fit modo illuminatus, lumen sempiternum (Serm. XXXIII, de Verbis Domini in Joann.).

[11] Videbit beatus Deum ad voluntatem, habebit ad voluptatem, fruetur adjucunditatem. In aeternitate vigebit, in veritate fulgebit, in bonitate gaudebit. Sicut habebit permanendi aeternitatem, sic cognoscendi, requiescendi felicitatem. Civis siquidem erit sanctae illius civitatis, cujus angeli cives sunt. Deus Pater templum est, Filius ejus splendor, Spiritus Sanctus caritas est (De Praemio caelest. patriae).

[12] Nunquid consummatio gaudii, desiderii non erit finis, ac per hoc, nec quaerendi. Hinc illa satietas sine fastidio. Hinc insatiabilis illa sine inquietudine curiositas. Hinc aeternum illud atque inexplicabile desiderium nesciens egestatem. Hinc denique sóbria illa ebrietas, verum, non merum, ingurgitans; non madens vino, sed ardens Deo (De Praemio caelest. patriae).

[13] Quae erunt, o amator Dei, delitiae tuae? Delectabuntur in multitudine pacis. Aurum tuum erit pax, argentum tuum pax, praedia tua pax, vita tua pax, Deus tuus pax, quidquid desideras, pax tibi erit. Deus tuus totum tibi erit; manducabis eum, ne esurias; bibes eum, ne sitias; iluminaberis abe o, ne sis caecus; fulcieris abe o, ne deficias. Possidebit te totus; integer totum habebis, totum et illo habebit, quia et tu, et ille unum eritis (In Psalm. XXXVI).

[14] Penetração ou sutileza, isto é a capacidade de entrar e sair de qualquer ambiente sem quaisquer esforços (Nota do tradutor).

[15] Quando veniam, et apparebo ante faciem Domini, ad vivendum eum in bonitate electorum suorum, ad laetandum in laetitia gentis suae, ut laudetur cum haereditate sua? Quando videbo civitatem illam de qua dictum est: Plateae tuae, Jerusalem, sternentur auto mundo, et in te cantabitur canticum laetitiae, et per omnes vicos tuos ab universis dicetur aleluia? O civitas sancta, civitas speciosa, de longínquo te saluto, ad te clamo, te requiro; desidero enim videre te, er requiescere in te: sed non sinor, carne retentus! Ó civitas desiderabilis! Muti tui lapi unus, custos tuus ipse Deus, cives tui sempe laeti, sempre enim gratulantur in visione Dei (Lib. De Spiritu et Anima, c. LXII).

[16] Bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi. In reliquo reposita est mihi iustitiae, quam reddet mihi Dominus in illa die, justus Judex. Non solum autem mihi, sed et his qui diligunt adventum eius (II Tm IV, 7-8).

[17] Exspectantes et properantes adventum diei Domini […] Novos vero caelos et terram novam secundum promissum ipsius exspectamus, in quibus iustitia habitat. Propter quod, carissimi, haec exspectantes, satagite immaculati et inviolati ei inveniri in pace (II Pet. III, 12-14).

[18] Quid mihi est in caelo, et a te volui super terram? Deficit caro mea et cor meum, Deus cordis mei, et pars mea Deus in aeternum (Psalm. LXXII, 25-26).

[19] Quam dilecta tabernacula tua Domine virtutum! Concupiscit et defecit anima mea in atria Domini. Cor meum et caro mea exultaverunt in Deum vivum. Etenim passer invenit sibi; domum et turtur nidum suum, ubi ponat pullos suos. Altaria tua, Domine virtutum: Rex meus et Deus meus! Beati qui habitant in domo tua, Domine! In saecula saeculorum laudabunt te (Psalm. LXXXIII, 2-5).

[20] Vim faciamus Domino, num compellendo, sed flendo; non provocando injurii, sed lacrymis exorando; non blasphemando per superbiam, sed per humilitatem moerendo. O beata violentia, quae non indignatione percutitur, sed misericórdia condonatur! Beata, iniquam, quae vim patienti bonitate elicit, et utilitatem tribui inferente. Quo quis enim violentior Christo fuerit, eo religiosior habebitur a Christo. Aggredimur in intinere Dominum, siquidem ipse est via, et more latronum, suis eum spoliare vitimur, cuppimus illi auferre regnum, thesaurus et vitam. Sed ille tam dives et largus est, ut non abnuat, non resistat; et cum omnia dederit, nihilominus omnia possideat. Aggredimus illum, non ferro, non fuste, non saxo, sed mansuetudine, bonis operibus castitate. Haec sunt arma fidei nostrae, quibus in congressione certamus. Ut autem his armis uti in vi inferenda possimus, ante corporibus nostrisquadammodo Faciamus vim, expugnemus membrorum vitia, ut virtutum praemia consequamur; prius enim ipsi regnare debemus in nobis, ut regnum possimus diripere Salvatoris (Serm. V).

[21] Ad magna praemia perveniri non potest nisi per magnos labores: unde et Paulus egregius dicebat: Non coronabitur nisi legitime certaverit. Delectet igitur mentem magnitudo praemiorum, sed non deterreat certamen laborum (Homil. XXXVIII, in Evang.)