Capítulo X
Parvulus natus est nobis, et filius datus est nobis – “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado” (Is 9, 6)
A razão de haver querido o Filho de Deus nascer menino foi para se fazer acessível aos corações de todas as idades, e para mais facilmente roubar o nosso amor.
E por que razão, pergunta São Francisco de Sales, tomou Jesus esta tão doce e amável condição de menino, se não foi para nos obrigar a amá-lo e nele depositar toda a confiança? Já antes dissera São Pedro Crisólogo: Deus quis nascer menino, porque quis ser amado.
Nosso Senhor Jesus Cristo, escreveu o piedoso padre Guéric, ardentemente deseja que o amemos com esse abandono com que um menino bem formado ama o melhor dos pais; que nós o temamos como escravos temem um senhor severo e cruel, isso é que ele não pode sofrer. E assim é que manifestando-se aos homens não ostenta já um aparato de poder e majestade capaz de fazer tremer; na forma de um menino prefere antes aparecer, pois a salvar e a fazer-se amar é ao que ele vinha, não a julgar e fazer-se temido. Afoitamente corramos pois agora a lançar-nos ante o trono da sua misericórdia, nós que outrora no trono de sua majestade nem pensar ao menos podíamos sem nos sentirmos possuídos de um certo pavor religioso. No presépio de Belém nada há que inspire temor; misericórdia e amor é o que ali tudo respira. Lá está Jesus cheio de doçura; nem o que é irritar-se, ele sabe quando é ofendido, ou se alguma coisa se irrita, é fácil em apaziguar-se. Vamos, pois, ao presépio, tomemos a Jesus nos braços, abracemo-lo ao coração, e peçamos-lhe que nos abrase das chamas do seu amor.
Senhor Jesus, doce Salvador da minha alma, qual é a minha confiança nesta vida? Ou qual a minha mais doce consolação de tudo que aos meus olhos se apresenta debaixo do céu? Não sois vós, Senhor meu Deus, cujas misericórdias não têm número? Onde me foi bem sem vós? E convosco onde me foi mal? Mais quero ser pobre por vós, que rico sem vós. Por melhor hei o peregrinar convosco na terra, que sem vós possuir o céu; onde estais vós, aí está o céu, onde faltais está a morte e o inferno. Todos os meus desejos sois vós, e por isso, longe de vós devo plenamente confiar, e nas minhas necessidades só de vós, ó meu Deus, posso esperar socorro. Vós sois a minha esperança, a minha confiança, o meu sempre fiel consolador… Meus olhos a vós se elevam; em vós ponho toda a minha confiança, o meu Deus. Santificai a minha alma e abençoai-a com a nossa bênção celeste, para que seja vossa santa morada, trono da vossa eterna glória, e para que neste templo que vos dignais habitar nada haja, nada haja que ofenda os vossos olhos. Olhai para mim, Senhor, em vossa imensa bondade; e segundo a multidão de vossas misericórdias ouvi a oração deste pobre servo vosso, longe de vós desterrado na região as trevas e da morte. Conservai, protegei a alma do vosso pobre filho no meio dos perigos desta vida corruptível: a vossa graça o acompanhe e conduza pelo caminho da paz à pátria da eterna luz. Ó Jesus! Jesus Menino, de vossa misericórdia espero esta graça.
São Francisco de Assis, ao falar do mistério do nascimento do Filho de Deus, transportes de admiração e amor o enleavam. Sentimentos iguais partilhava São Bernardo; ouçamo-lo: Eis soou nesta nossa terra de exílio, em nossas tendas de pecadores, um brado de alegria, de regozijo e salvação. Uma palavra cheia de doçura e consolação acaba de ferir nossos ouvidos. Jubilai, ó montes, e fazei retumbar os louvores do Senhor. Regozijam-se os céus e exulte a terra, inundem-se de alegria os campos e tudo o que neles habita, saltem de contentamento as árvores das florestas, ante a face do nosso Deus, que acaba de chegar ao meio de nós. Escutai, ó céus, presta ouvidos, ó terra; tu sobretudo, tu ó homem, fica tomado de pasmo; Jesus Cristo, Filho de Deus, acaba de nascer em Belém de Judá! Que coração há tão de pedra, tão insensível, que não se derreta a uma tão doce palavra? Que mais agradável nova se nos podia dar? Quando se ouviu tal? Quando ouviu jamais o mundo tão consoladoras palavras: Jesus Cristo, Filho de Deus, acaba de nascer em Belém de Judá! De que doce suavidade não são repassadas! Pudesse eu fazer sentir sua doçura e energia; mas expressões me faltam, e temo tirar-lhes a força, fazendo a mínima mudança. Jesus Cristo, Filho de Deus, acaba de nascer em Belém de Judá. Ó nascimento adorável!… Ó vós todos, todos que estais no pó, levantai-vos e adorai a Jesus menino; vem salvar-nos, curar-nos e cobrir-nos de glória.
Ó vós, pecadores, pobres ovelhas desgarradas, já podeis respirar; para vos procurar e salvar o que estava perdido é que Jesus vem à terra. Ó vós, que estais doentes, havei ânimo; Jesus vem curar os corações com a unção da sua misericórdia. Ó vós todos que nutris em vossa alma desejos de chegar às grandes dignidades, regozijais-vos, o Filho de Deus desce à terra para vos fazer participantes do seu reino. Ide ao presépio, ide sem temor visita-lo; quando está sobre o trono de sua majestade impõe respeito e temor; mas aqui, na forma de um menino, só instila amor e confiança. Poderiam os olhos de Jesus inundados em lágrimas não vos tocar o coração? Chora este divino Salvador, mas não como os outros meninos nem pela mesma razão; os demais meninos por temor e fraqueza é que choram, Jesus chora de compaixão e amor por nós.
Nasceu-nos um menino; foi-nos dado um filho. Vamos ao presépio e com respeito escutemos as instruções que nos queira dirigir. Sua língua não pode ainda articular palavra, mas todos os membros do seu corpinho são outras tantas bocas que clamando-nos estão: Amai a Deus de todas as vossas forças; bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados; tomai o último lugar; o que se humilha será exaltado, o que se exalta será humilhado; não queirais entesourar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consome, e onde os ladrões os desenterram e roubam; mas entesourai para vós tesouros no céu onde não os consome a ferrugem nem a traça e os ladrões não os desenterram nem roubam; só uma coisa é necessária, e esta coisa necessária é a vossa salvação; de que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?…
Meu melífluo Jesus, quão belas acho eu vossas lições! Quão admiráveis! Oh! Quanto eu desejaria pô-las todas em prática por amor vosso! Mas aí! Sou tão fraco, tão fraco, que para o bem é não poder nada de todo.
Ó meu Jesus, ó Jesus menino, Jesus tão bom, tão terno, tão compassivo! Tende piedade de mim. Amar-vos quero eu, bem o sabeis, pois vedes o fundo dos corações: eia pois, concedei-me o vosso santo amor. Oh! Que se eu pudesse amar-vos como a santa Virgem e todos os santos! Quão doce me fora! Oh! Quem me dera poder fazer-vos amar de todos os homens! Mas sequer ao menos, ó Jesus meu! Graças a vós, esse vivo e ardente desejo já o tenho; dignai-vos, eu vo-lo suplico, aceitar estes votos do meu coração.
Nasceu-nos um menino, foi-nos dado um filho. O Eterno tornou-se menino, o Onipotente fez-se fraco, o Infinito e Independente submeteu-se às suas próprias criaturas; humilhou-se até ao ponto de se fazer homem e nascer num curral, e o amor que nos tem é que o levou a operar todos estes prodígios. Ó caridade, exclama Santo Tomás de Vilanova, ó mais potente triunfo do amor! O invencível tu o fizeste vencer o Onipotente deixou-se cativar. Ó verdadeiro excesso de caridade! Um Deus menino! E por amor de nós! E para nos inspirar confiança! E para melhor cativar o nosso coração! Amemos, pois, esse Deus tão bom e tão amável, e para de mais em mais nos excitarmos a amá-lo, não nos cansemos de repetir, e cada vez com uma nova efusão de alegria e amor estas tão tocantes palavras: Nasceu-nos um menino, foi-nos dado um filho.
Ó meu rico menino Jesus, doce Salvador meu! A vós amo e em vós confio; sim, toda a minha esperança, e amor sois vós. Ah! Que seria de mim agora pobre miserável, se não descêsseis do céu para salvar-me? Muito tempo há já que as ofensas de que me tornei culpado me haveriam arremessado às chamas do inferno. Para sempre seja bendita a vossa misericórdia por ainda estardes pronto a receber-me se me arrepender dos meus pecados. Ó Jesus meu, vós estais lendo no fundo do meu coração e vedes quão arrependido estou. Recebei-me em vossa graça, e fazei que eu morra para mim mesmo, a fim de só para vós, ó meu único bem, viver.
Consumi, em mim, ó fogo abrasador, tudo o que desagrada aos vossos olhos, e tomai posse de todos os meus afetos. Amo-vos, ó doce e amável menino Jesus! Amo-vos, ó Deus de minha alma! Amo-vos, ó meu tesouro, minha vida, meu tudo! Amo-vos, e meu último suspiro quero exalar a dizer: Amo-vos, meu Deus, a fim de então começar amar-vos com um amor mais perfeito, e que jamais terá fim.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Amor do Próximo
Se alguém disser: Amo a Deus, e aborrecer o seu irmão, é um mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus a quem não vê? Apesar destas palavras de São João, muitos há que andam grosseiramente iludidos. Para com os pobres são duros, dos outros gostam de dizer mal, injúria por mui leve isso dificilmente a perdoam; desprezam os mais; mas lá porque repetem a miúde: “Meu Deus, amo-vos! Amo-vos, meu Deus?” julgam-se estar mui sobre o seguro. Não imites tal proceder, meu caro Teótimo; a todos os homens ama como a teus irmãos, como a criaturas em que está gravada a imagem de Deus. De todos deseja ardentemente a salvação. Doce e meigo rosto mostra sempre a todos os teus inimigos e aos que te perseguem muito principalmente. De tua boca somente saiam palavras de paz e a suave unção da caridade tempere sempre o agro do teu coração. Para socorrer e consolar os teus irmãos está sempre pronto, sê todo compaixão para com os aflitos e pecadores. Das virtudes dos outros te alegra como se tuas foram, doi-te das suas misérias, como das tuas; transforma-te, por assim dizer, em cada um de teus irmãos. A ninguém desprezes. Repele cuidadosamente os juízos temerários e suspeitas desfavoráveis ao próximo. De todos te habitua a julgar bem. As palavras e ações de outrem sempre com singelo coração as toma à boa parte, dizia Luiz de Blois. Oh! Quão bela é a virtude da caridade para com o próximo! Mas ai! Meu caro Teótimo, é tão rara! Entra no fundo do teu coração, e vê até que ponto a possuis.
Estás verdadeiramente disposto a perdoar a todos os teus inimigos e até mesmo a fazer-lhes bem? Não gostas de quando em quando de criticar a vida do próximo? Sonda bem o teu coração, repito; ama os teus irmãos como a ti mesmo, é o que de ti exige Jesus Cristo, e hás de ser tu que não queiras obedecer a um tão justo pedido? Nem um dia deixes passar sem tomar as medidas necessárias, para a noite em verdade puderes dizer: Meu Deus, amo-vos de todo o meu coração, e amo também ao meu próximo como a mim mesmo por amor de vós.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 66-72)