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Do primeiro fruto da terceira palavra

Capítulo IX. Do primeiro fruto da terceira palavra
Desta terceira palavra muitos frutos pode colher, quem atentamente a ponderar. O primeiro será o conhecimento do infinito desejo, que Cristo teve de padecer, para nos salvar, a fim de que a redenção fosse pleníssima e copiosíssima. Enquanto os outros homens providenciam, que na sua morte, e principalmente na morte violenta, desonrosa e infamante, lhes não assistam os seus parentes, para que não tenham de sentir dobrado sofrimento e tristeza, por eles estarem presentes; Cristo, não satisfeito com o próprio sofrimento atrocíssimo, cheio de dores e de desonra, quis além disso que Sua mesma Mãe, e Seu amado discípulo assistissem, e em pé permanecessem junto da Cruz, para que a dor da compaixão de pessoas que Lhe eram caras Lhe duplicasse o Seu sofrimento. Estava Cristo na Cruz, e o Seu sangue corria em grande abundância como de quatro fontes; quis que junto dEle estivesse Sua Mãe, o Seu discípulo, e também Maria, irmã de Sua Mãe, e Madalena, as quais, além de outras santas mulheres, Lhe consagravam a mais extremosa afeição, para que delas rebentassem quatro fontes de lágrimas, a fim de que Ele quase não padecesse maior tormento do sangue que derramava, do que da grande chuva de lágrimas, que a pena dos que Lhe assistiam, exprimia dos seus corações. Parece-me que estou ouvindo Cristo a dizer:

Cercaram-me as agonias da morte (Sl 17); mas não menos me rasga o coração a espada que Simeão profetizou (Lc 2), a qual transpassou com uma dor incrível a alma da minha inocentíssima Mãe. Assim separas cruel morte, não só a alma do corpo; mas também uma Mãe, e tal mãe, de um filho, e de tal filho?!

Foi este o motivo porque o amor Lhe não deixou dizer Minha Mãe, mas sim Mulher, eis aí o teu filho. De tal modo amou Deus os homens, que para sua redenção sacrificou o seu unigênito Filho; e de tal modo seu unigênito Filho amou seu Pai, que para sua honorificação derramou em abundância o Seu próprio sangue, e não satisfeito com os tormentos que padecia lhes acrescentou a dor da compaixão, para que a satisfação dos pecados fosse copiosíssima. Por isso o Pai e o Filho recomendam-nos por uma razão, e modo inefável, a Sua caridade para não nos perdermos e conseguirmos a vida eterna: e apesar disto o coração humano ainda resiste à tamanha caridade, e antes quer expor-se à ira do Onipotente, do que saborear a doçura da Sua misericórdia e ceder à caridade do amor divino. Não podemos, sem dúvida, ser mais ingratos nem deixar, de merecer todos os suplícios; pois, amando-nos Cristo tanto, que quis por nós padecer muito mais do que seria necessário; e, quando para a nossa redenção bastaria apenas uma gota do Seu sangue, Ele quis derramá-lo todo e sofrer tormentos inumeráveis; nós nem por Seu amor, nem para a nossa salvação, queremos sofrer o bastante para a conseguirmos. À causa deste tão grande desmazelo e loucura não é outra senão não considerarmos séria e atentamente, como devemos, na paixão e amor de Cristo, nem escolhermos ocasiões e lugares acomodados para objeto de tanta importância, pois em pouco tempo, e como a correr, lemos ou ouvimos ler a Sua paixão. Por isso o santo profeta nos exorta:

“Atendei e vede se há dor igual á minha dor” (Lm 1)

Eo Apostolo:

“Considerai, pois atentamente aquele que sofreu tal contradição dos pecadores contra a sua pessoa, para que não vos fadigueis, desfalecendo em vossos ânimos” (Hb 12)

Tempo, porém virá em que debalde nos arrependamos desta nossa tão grande ingratidão para com Deus, e desmazelo da nossa salvação. Muitos são, pois os que no último dia mostrarão arrependimento, e dirão, quando angustiados:

“Erramos; não há dúvida; e não brilhou para nós o Sol da justiça” (Sb 5)

Nem dirão assim pela primeira vez naquele dia, mas mesmo antes do dia do Juízo, logo que a morte lhes fechar os olhos do corpo, se lhes abrirão os da alma, e então verão o que não quiseram ver enquanto era tempo.


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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 100-103)