Meditação para o Sábado da Paixão
SUMARIO
Prosseguiremos nas nossas meditações sobre a cruz considerada como o grande livro que nos instrui; e veremos que ela nos ensina:
1.º A tomarmos um terno interesse em tudo o que respeita ao próximo;
2.° De nos separarmos de todo o espírito de egoísmo.
— Tomaremos depois a resolução:
1.° De buscarmos em todas as coisas a glória de Deus e o bem do próximo;
2.° De desapegarmos o nosso coração de tudo o mais.
O nosso ramalhete espiritual será a palavra de São Paulo:
“Julguei não saber coisa alguma entre nós senão a Jesus Cristo e este crucificado” – Non judicavi me acire aliquid inter vos, nisi Jesum Christum, et hunc crucifixum (1Cor 2, 2)
Meditação para o Dia
Adoremos Jesus crucificado como nosso doutor e nosso mestre. É Ele que nos ensina o que devemos buscar, estimar e amar, a saber: os interesses de Deus e do próximo; o que devemos evitar, desprezar e odiar, a saber: tudo o que é contrário a estes dois grandes interesses. Demos-Lhe graças por este ensino, e roguemos-Lhe que se digne conformar com Ele o nosso procedimento.
PRIMEIRO PONTO
A Cruz ensina-nos a tomar um terno interesse em tudo o que respeita ao próximo
Com efeito, a cruz mostra-nos:
1.° No próximo, qualquer que seja, um homem tão ternamente amado de Jesus Cristo que, para o salvar, Ele desceu do céu à terra, se fez homem, deu o Seu sangue, a Sua honra, a Sua liberdade, a Sua vida, e se identificou com cada filho de Adão, até dizer:
“Tudo o que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos, a mim é que o fazeis, e tudo o que deixardes de lhe fazer, a mim o deixais de fazer” – Quandiu fecistis uni ex his fratribus meis minimis, mihi fecistis (Mt 25, 40). Quandiu non fecistis uni de minoribus his, nec mihi fecistis (Ibid, 45)
Ora, posto isto, é evidente que, sob pena de desobedecermos a Jesus Cristo, devemos tomar um temo interesse em tudo o que respeita ao próximo, à sua salvação, à sua reputação ou honra, aos seus gostos ou desgostos, à sua prosperidade ou adversidade. Ser indiferente aos interesses de uma pessoa que Nosso Senhor tanto preza; ofendê-la, contristá-la, prejudicá-la ou escandalizá-la é ofender ao mesmo Jesus Cristo. Todos os interesses dessa pessoa devem ser-nos preciosos como os de Jesus Cristo; devemos reputar-nos muito felizes e honrados por tudo o que pudermos fazer em seu serviço, e aproveitar com amor todas as ocasiões disso.
2.° A cruz ensina-nos até onde devemos levar o zelo pelos interesses do próximo: porque se Jesus Cristo, na véspera da Sua morte, nos ordenou que nos amassemos uns aos outros, assim como Ele nos amou (1), a cruz apresenta-se a nós como o comentário deste preceito: ensina-nos que devemos estar dispostos a fazer todos os sacrifícios para bem do próximo; a sofrer tudo dos outros sem a ninguém fazer sofrer coisa alguma: a suportar todas as privações e todos os incômodos, e, conforme a ocasião, a sacrificar-nos pela felicidade de nossos irmãos, pois que é assim que Jesus crucificado nos amou.
Entremos aqui em nós mesmos. Quantos serviços recusados ao próximo, e que teríamos podido prestar-lhe? Quantas vezes o vimos em aperto, em embaraço, arriscando os seus interesses por inaptidão ou ignorância? Teríamos podido tirá-lo desse lance difícil com um bom conselho, uma caridosa advertência, um bom ofício, que pouco nos teria custado; e voltando a cabeça, continuamos o nosso caminho, sem nos importarmos com o seu infortúnio! Oh! Quão longe estamos de amar os nossos irmãos como Jesus Cristo nos amou!
SEGUNDO PONTO
A Cruz ensina-nos a separar-nos de todo o espírito de Egoísmo
Antes da vinda de Jesus Cristo, ninguém sabia viver senão para si. Buscar gozos, riquezas e glória; evitar a pobreza, o sofrimento, a humilhação: era o cuidado de todo o gênero humano. Jesus Cristo apareceu na cruz, mostrou-Se ao mundo, e do alto desse novo púlpito diz-lhe:
«Aprende de mim a esquecer-te de ti, a despir-te desse miserável egoísmo que só pensa em si; que pouco se importa que os outros sejam desditosos, contanto que goze; que julga que se engrandece cercando-se dos falsos bens da terra, muitas vezes até em prejuízo de outrem, e que se abaixa, tendo uma vida oculta, desconhecida, privando-se dalguma coisa para. obsequiar. Vê-me: eu sou o Filho amado de Deus, e não obstante isto sou pobre, padecente, humilhado. Porventura, se a riqueza e a abundancia, o prazer e a glória fossem verdadeiros bens, não m’os teria dado Deus meu Pai? Se a pobreza, a humilhação, o sofrimento, fossem males, m’os teria ele dado em partilha? Instrui-te com o meu exemplo, e sabe que tudo o que passa é nada (2); «que tudo é vaidade, exceto amar a Deus e servi-lo» (3)
Estas sublimes verdades, emanadas do Calvário há mais de vinte séculos, têm mudado a face do mundo, inspirado a milhares de almas os mais nobres sentimentos, os mais generosos sacrifícios pelo bem da religião e da sociedade; e tem-se visto essas almas, desafeiçoadas de tudo pela cruz, vender os seus bens para socorrer os pobres, abraçar uma vida austera para se entregar mais seguramente a Deus, sofrer a perseguição como uma boa fortuna, e alegrar-se por terem sido julgadas dignas de padecer por Jesus Cristo. Eis como a cruz tem retirado o mundo do egoísmo e lhe tem substituído a caridade com os seus heroicos sacrifícios. Quem não compreende estas coisas só tem uma falsa virtude, mescla de um semblante devoto com o amor-próprio, com a busca de seus gostos e de suas comodidades, a distração, o amor do mundo e das suas vaidades: estado pior que os grandes vícios, porque estes despertariam o remorso, enquanto que essa falsa devoção conserva a alma em uma segurança que a leva à morte. Não somos nós do número dos que não tem ainda compreendido esta grande lição da cruz:morte ao egoísmo?
Resoluções e ramalhete espiritual como acima
Referências:
(1) Ut diligatis invieem, sicut dilexi vos (Jo 13, 34)
(2) Omnia… aritror ut stercora (Fl 3, 8)
(3) Vanitas vanitatum, et omniq vanitas, praeter amare Deum et illi soli servire (I Imitação 1, 3)
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(HAMON, Monsenhor André Jean Marie. Meditações para todos os dias do ano: Para uso dos Sacerdotes, Religiosos e dos Fiéis. Livraria Chardron, de Lélo & Irmão – Porto, 1904, Tomo II, p. 204-207)