As Dores de Nossa Senhora
Resumo histórico.
Duas vezes no ano lembra-se a Igreja das Dores de Maria Santíssima: na Sexta-feira que antecede ao domingo de Ramos e no dia 15 de setembro. Já antes dessas solenidades vinha o povo cristão consagrando terna lembrança às Dores da Mãe de Deus. No século XIII a tendência geral fixa-se na celebração das Sete Dores de Maria. A Ordem dos Servitas, principalmente, fundada em 1240, muito contribuiu para propagar essa devoção. Pois seus membros deviam santificar a si e aos outros pela meditação das Dores de Maria e de seu Filho. Pelos fins do século XV era quase geral no povo cristão o culto compassivo das dores de Maria. Os poetas de vários países consagraram-lhe inúmeras poesias. O hino Stabat Mater dolorosa tem por autor o franciscano Jacopone da Todi (1306). A festa foi primeiramente introduzida pelo Sínodo de Colônia em 1423, sob o título de Comemoração das Angústias e Dores da Bem-aventurada Virgem Maria, para expiação das injúrias cometidas pelos Hussitas contra as imagens sagradas. Propagou-se rapidamente, tomando o nome de festa de Nossa Senhora da Piedade. Em 1725 introduziu-a o papa Bento XII no Estado Pontifício, e em 1727 estendeu-a para a Igreja universal. Mas, porque perdia um pouco de seu valor, por estar na quaresma, Pio VII, em 1804, mandou que fosse celebrada também no terceiro domingo de setembro. Com a reforma do Breviário, por Pio X, veio a festa a ter uma data fixa no dia 15 de setembro (Nota do tradutor).
Maria foi a Rainha dos Mártires por causa da duração e intensidade de suas dores
Quem poderia ouvir sem comoção a história mais triste que jamais houve no mundo? Uma nobre e santa senhora tinha um único filho, o mais amável que se possa imaginar. Era inocente, virtuoso e belo. Ternamente retribuía o amor de sua mãe. Nunca lhe havia dado o mínimo desgosto, mas sempre lhe havia testemunhado todo respeito, toda obediência, todo afeto. Nele, por isso, a mãe tinha posto todo o seu amor, aqui na terra. Ora, que aconteceu? Pela inveja de seus inimigos, foi esse filho acusado injustamente. O juiz reconheceu, é verdade, a inocência do acusado e proclamou-a publicamente. Mas, para não desgostar os acusadores, condenou-o a uma morte infame, como lhe haviam pedido. E a pobre mãe, para sua maior pena, teve de ver como aquele tão amante e amado filho lhe era barbaramente arrancado, na flor dos anos. Fizeram-no morrer diante de seus olhos maternos, à força de torturas e esvaído em sangue num patíbulo infamante. Que dizeis, piedoso leitor? Não vos excita à compaixão a história dessa aflita mãe?
Já sabeis de quem estou falando? Esse Filho, tão cruelmente suplicado, foi Jesus, nosso amoroso Redentor. E essa Mãe foi a bem-aventurada Virgem Maria, que por nosso amor se resignou a vê-lo sacrificado à justiça divina pela crueldade dos homens. Portanto é digna de nossa piedade e gratidão essa dor imensa que Maria sofre por nosso amor. Mais lhe custou sofrê-la, do que suportar mil mortes. E se não podemos corresponder dignamente a tanto amor, demoremo-nos hoje, ao menos por algum tempo, na consideração de suas acerbíssimas dores. Digo, por isso: Maria é Rainha dos mártires, porque as dores de seu martírio excederam às dos mártires 1° em duração; 2° em intensidade.
I. Duração do martírio de Maria
Maria é realmente uma mártir
Jesus é chamado Rei das dores e Rei dos mártires, porque em sua vida mortal padeceu mais que todos os outros mártires. Assim também é Maria chamada com razão Rainha dos Mártires, visto ter suportado o maior martírio que se possa padecer depois das dores de seu Filho. Mártir dos mártires é por isso o nome que lhe dá Ricardo de São Lourenço. E bem lhe pode aplicar o texto do profeta Isaías: Ele te há de coroar com uma coroa de amargura (22,18). A coroa, com a qual foi constituída Rainha dos mártires, foi justamente sua dor tão acerba, que excedeu à de todos os mártires reunidos. É fora de dúvida o real martírio de Maria, como assaz o provam Dionísio Cartuxo, Pelbarto, Catarino e outros. Pois, conforme uma sentença incontestada, para ser mártir é suficiente sofrer uma dor capaz de dar a morte, ainda que em realidade se não venha a morrer. São João Evangelista é reverenciado como mártir, não tenha embora morrido na caldeira de azeite fervendo, senão haja saído dela mais robustecido, como diz o Breviário. Para a glória do martírio, segundo Tomás, basta que uma pessoa leve a obediência ao ponto de oferecer-se à morte. Maria, no sentir do Abade Oger, foi mártir não pelas mãos dos algozes, mas sim pela acerba dor de sua alma. Se não lhe foi o corpo dilacerado pelos golpes do algoz, foi seu bendito coração transpassado pela Paixão de seu Filho. E essa dor foi suficiente para dar-lhe não uma, porém mil mortes. Vemos por aí que Maria não só foi verdadeiramente mártir, mas que seu martírio excedeu a todos os outros por sua duração. Pois que foi sua vida, senão um longo e lento martírio?
Duração do martírio de Maria
Assim como a Paixão de Jesus começou com seu nascimento, diz São Bernardo, também assim sofreu Maria o martírio durante toda a sua vida por ser em tudo semelhante ao Filho. Como observa Santo Alberto Magno, o nome de Maria significa, entre outras coisas, amargura do mar. Aplica-lhe o Santo por isso o texto de Jeremias: Grande como o mar é a minha dor (Jr 2,13). Com efeito, é o mar amargo e salgado. Assim foi também toda a vida de Maria sempre cheia de amarguras, porque não lhe desaparecia do espírito a lembrança da Paixão do Redentor. Mais iluminada pelo Espírito Santo que todos os profetas, compreendia melhor do que eles as predições a respeito do Messias, registradas na Escritura. Está isso acima de toda e qualquer dúvida. Assim instruiu um anjo a Santa Brígida, e ainda ajuntou que Nossa Senhora sentia terna compaixão com o inocente Salvador, mesmo antes de lhe ser Mãe. E tudo por causa do conhecimento que possuía sobre as dores a serem suportadas pelo Verbo Divino, para a salvação dos homens, e sobre a cruel morte que o aguardava em vista de nossos pecados. Já então começou portanto o padecimento de Maria.
Mas sem medida tornou-se essa dor, desde o dia em que a Virgem ficou sendo Mãe de Jesus. Sofreu daí em diante um perene martírio, observa Roberto de Deutz, tendo em vista as dores que esperavam por seu Filho. É também o que significa a visão de Santa Brígida, em Roma, na igreja de Santa Maria. Aí lhe apareceu a Santíssima Virgem em companhia de São Simeão, e de um anjo que trazia uma longa espada a gotejar sangue. Essa espada era um emblema da mui longa e acerba dor que dilacerou o coração de Maria, durante toda a sua vida. O supracitado abade põe nos lábios de Maria as seguintes palavras: Almas remidas, filhas diletas, não vos deveis compadecer de mim, só por aquela hora em que assisti à morte de meu amado Jesus. Pois a espada, prenunciada por Simeão, transpassou minha alma em todos os dias de minha vida. Quando eu aleitava meu Filho, o aconchegava ao colo, já contemplava a morte cruel que lhe estava reservada. Considerai por isso que áspera e intensa dor eu devia sofrer!
Maria, pois, teve razão para dizer com Davi: A minha vida se consome na dor e os meus anos em gemidos (Sl 30,11). A minha dor está sempre ante os meus olhos (Sl 37,18). Passei toda a minha vida entre dores e lágrimas, porque a minha dor, que era a compaixão com meu Filho, nunca se apartava dos meus olhos. Eu estava sempre contemplando todos os seus tormentos e a morte que ele um dia havia de sofrer. Revelou a Divina Mãe a Santa Brígida que, mesmo depois da morte e da ascensão de seu Filho ao céu, continuava viva e recente em seu materno coração a lembrança dos sofrimentos dele. Acompanhava-a até nos trabalhos e nas refeições. Vulgato Taulero escreve, por isso, que a Virgem passou toda a sua vida em perpétua dor, carregando no coração luto e pesar.
O tempo não mitigou os sofrimentos de Maria
O tempo, que costuma mitigar a dor dos aflitos, não pôde aliviá-la em Maria. Aumentava-lhe, pelo contrário, a aflição. Crescendo, ia Jesus mostrando cada vez mais a sua beleza e amabilidade. Mas de outro lado ia também se avizinhando da morte. Com isso cada vez mais a dor por haver de perdê-lo apertava também o coração da Mãe. Tal como a rosa que cresce por entre espinhos, crescia a Mãe de Deus em anos no maior dos sofrimentos. E como crescem os espinhos à medida que a rosa desabrocha, cresceram também em Maria – rosa mística do Senhor – os penetrantes espinhos das aflições.
Passemos agora à consideração da intensidade das dores de Nossa Senhora.
II. Intensidade do martírio de Maria
Maria é Rainha dos mártires
Pois entre todos os martírios foi o seu o mais longo e também o mais doloroso. Quem lhe poderá medir jamais a extensão? Ao considerar o sofrimento dessa Mãe dolorosa, não sabia Jeremias a quem compará-lo. Pois não exclama: A quem te compararei? Porque é grande como o mar o teu desfalecimento. Quem te remediou? (Lm 2,13). – “Ó Virgem bendita, como a amargura do mar excede todas as amarguras, assim tua dor excede todas as outras dores” – desta forma explica Hugo de São Vítor o citado texto. Na opinião de Eádmero, a dor de Maria era suficiente para causar-lhe a morte a cada instante, se Deus não lhe tivesse conservado a vida por um singular milagre. E São Bernardino de Sena chega a dizer que a intensidade de seu sofrimento tão aniquiladora foi, que, dividida por todos os homens, bastaria para fazê-los morrer todos, repentinamente.
Os mártires sofreram tormentos no corpo, Maria sofreu-os na alma
Vejamos contudo as razões por que o martírio de Maria foi mais doloroso que o de todos os mártires. Devemos refletir, em primeiro lugar, que estes sofreram em seus corpos por meio do fogo e do ferro, enquanto a Virgem padeceu o martírio na alma. Nesse sentido lhe dissera Simeão: E uma espada transpassará até a tua alma (Lc 2,35). O santo ancião queria dizer: Ó Virgem sacrossanta, os outros mártires hão de ter o corpo ferido pela espada, porém vós tereis a alma transpassada e dilacerada pela Paixão de vosso Filho. Quanto a alma é mais nobre que o corpo, tanto a dor de Maria foi superior à de todos os mártires. Não são as dores da alma comparáveis aos tormentos do corpo, disse o Senhor a S. Catarina de Sena. Por isso, escreve Arnoldo de Chartres: Por ocasião do grande sacrifício do Cordeiro imaculado, que morria por nós na cruz, poderíamos ter visto dois altares: um no Calvário, no corpo de Jesus, outro no Coração de Maria. Enquanto que o Filho sacrificava seu corpo pela morte, Maria sacrificava sua alma pela compaixão.
Os mártires sofreram imolando a própria vida, enquanto Maria sofreu oferecendo a vida de seu Filho
A estas palavras dá Santo Antonino por motivo: Maria amava a vida do Filho muito mais que a própria vida. Sofreu por isso no espírito tudo o que no corpo padeceu o Filho. Mais ainda. Seu coração afligiu-se mais presenciando os tormentos do Filho, do que se ela própria os tivesse sofrido em si. Sem dúvida alguma a Virgem padeceu em seu coração todos os suplícios com que viu atormentado o seu amado Jesus. Sabem todos que as penas dos filhos são também penas das mães que os veem sofrer.
Quanto suplício de espírito não suportou a mãe dos Macabeus, à vista do martírio dos seus sete filhos! Isto considera Santo Agostinho e diz: Vendo-os, sofreu com todos; amava-os a todos e por isso só em vê-los sentiu o que eles experimentaram no corpo. Deu-se o mesmo com Maria. Todos os tormentos, açoites, espinhos, cravos e a cruz afligiram, juntamente com o corpo de Jesus, o coração de Maria para lhe consumar o martírio. O que Jesus suportou na sua carne, em seu coração o suportou a Mãe, comenta o Beato Amadeu. Este tornou- se, pois, como que um espelho, diz São Lourenço Justiniano. As pancadas, as chagas, os ultrajes, e tudo mais que sofreu Jesus, se via refletido nesse espelho. Segundo São Boaventura, as mesmas chagas que estavam espalhadas pelo corpo de Jesus, se achavam todas reunidas no coração de Maria. Assim a Virgem, por sua compaixão para com o Filho, em seu terno coração foi flagelada, coroada de espinhos, carregada de opróbrios, pregada à cruz. Às citadas palavras que nos descrevem a Mãe no Calvário, segue-se a pergunta do suposto São Boaventura: Dizei-me, Senhora, onde estáveis então? Porventura junto da cruz, apenas? Não; melhor posso dizer que estáveis na própria cruz, crucificada juntamente com vosso Filho. Com Isaías diz o Redentor: Eu calquei o lagar sozinho e das gentes não se acha homem comigo (63,3). Sobre isto observa Ricardo de São Lourenço: Senhor, tínheis razão de dizer que padecestes sozinho, quando da Redenção do gênero humano, e que nenhum homem tivestes compadecido de vós. Porém, uma mulher, vossa Mãe, sofreu em seu coração tudo quando sofrestes em vosso corpo.
Mas tudo isso ainda é dizer pouco sobre as dores de Maria. Como já se disse, a Santíssima Virgem mais sofreu à vista de seu atormentado e querido Jesus, do que se pessoalmente houvesse suportado os tormentos e a morte do Filho. Erasmo, falando dos pais em geral, diz: Mais do que as próprias, sentem os pais as dores dos filhos. Nem sempre isso é verdade. Mas certamente o era em Maria, porque amou imensamente mais a seu Filho e a vida dele, que a si mesma e as mil vidas que tivera. É bem acertada por isso a observação do Beato Amadeu, ao dizer que Maria, diante das dolorosas penas de seu amado Jesus, padeceu muito mais do que se tivesse sofrido toda a sua Paixão. E é clara a razão de tudo. Pois não está a alma humana mais com aquilo que ama, do que com aquilo que anima? E não afirmou o próprio Salvador: Onde está o vosso tesouro, aí estará o vosso coração? (Lc 12,34). Assim, pois, Maria, se pelo amor vivia mais no Filho do que em si mesma, ao vê-lo morrer tinha de suportar dores incomparavelmente mais acerbas, do que se a fizessem sofrer a morte mais cruel do mundo.
Os mártires sofreram consolados. Maria padeceu sem consolo
Há ainda uma circunstância a mostrar-nos como o martírio de Maria excedeu incomparavelmente ao dos mártires todos. Não só ela sofreu dores indizíveis, como também as sofreu sem alívio algum, na Paixão de seu Filho. Padeciam os mártires os tormentos a que os condenavam maus tiranos, porém o amor de Jesus lhes tornava as dores amáveis e suaves. Quanto não sofreu um São Vicente, por exemplo! Atormentaram-no sobre um cavalete, descarnando-o com unhas de ferro, com lâminas candentes o queimaram também. Entretanto, dele que vemos e ouvimos? Santo Agostinho nos diz: Parecia ser um a sofrer e outro a falar. Com tal fortaleza de ânimo e tal desprezo dos tormentos falou o mártir ao tirano, que parecia ser um Vicente que sofria, e outro que falava. Tanta lhe era a doçura do amor com que Deus o confortava naquelas torturas! Dolorosos suplícios teve de suportar também um São Bonifácio. Picaram-no, meteram-lhe pontinhas de ferro debaixo das unhas, entornaram-lhe pela boca chumbo derretido. Mas o Santo repetia sem cessar: Eu vos dou graças, Senhor Jesus Cristo. Horrivelmente sofreram igualmente um São Marcos e São Marcelino, com os pés pregados numa estaca. Disse-lhes então o tirano: Miseráveis, retratai-vos e sereis livres dessas penas! – Mas de que penas falais? Nunca passamos tempo tão delicioso como este, em que estamos sofrendo voluntariamente por amor de Jesus Cristo, responderam-lhe os santos. Um São Lourenço, enquanto assava sobre uma grelha, sofria horrores. Mas a chama interior do amor divino, diz São Leão, era mais poderosa para consolar-lhe a alma, que o fogo externo para lhe atormentar o corpo. Tal era o ânimo que lhe comunicava esse amor, que o Santo chegava a desafiar o tirano, dizendo: Queres comer minha carne? Anda depressa; já de um lado está assada. Vira e come! Ah! responde Santo Agostinho, é que ele estava embriagado com o vinho do amor divino, e por isso não sentia os tormentos nem a morte.
Quanto mais os santos mártires amavam, pois, a Jesus, menos sentiam os tormentos e a morte. Bastava-lhes a lembrança dos sofrimentos de um Deus crucificado para consolá-lo. Podia, porém, nossa Mãe dolorosa achar consolo no amor a seu Filho e na lembrança de seus sofrimentos? Não; justamente esse padecimento era todo o motivo de sua maior dor. Único e crudelíssimo algoz lhe foi tão somente o amor que consagrava ao Filho. Todo o martírio de Maria consistiu em vê-lo, amado e inocente, sofrer tanto, e em compadecer-se de suas dores. Tanto mais acerba e sem alívio lhe era a dor, quanto mais o amava. Grande como o mar é a tua dor e quem te curará? (Lm 2,13). Ah! Rainha dos céus, aos outros mártires o amor mitigou as penas e pensou as feridas. A vós, porém, quem suavizou jamais a grande aflição? Quem curou j amais as chagas doloríssimas de vosso coração? O Filho que vos podia dar consolo era a causa única de vosso penar, e o amor que lhe tínheis constituía todo o vosso martírio. Cada um com o instrumento de seu martírio, representam-se os mártires: São Paulo com a espada; Santo André com a cruz; São Lourenço com a grelha. No entanto Maria é representada com o Filho morto, nos braços. Só Jesus foi o instrumento de seu martírio, por causa do amor que lhe consagrava. Ricardo de São Vítor reduz tudo isso à concisa sentença: Nos mártires o amor era um consolo nos sofrimentos, em Maria, pelo contrário, cresciam as penas e o martírio na proporção de seu amor.
É certo que, quanto mais se ama uma pessoa, tanto mais se sente a pena de perdê-la. A morte de um irmão, de um filho, aflige mais, certamente, que a de um amigo. Cornélio a Lápide diz, por isso: Para medir a dor de Maria pela morte do Filho, é preciso ponderar a grandeza do amor que lhe devotava. Mas quem poderá medi-lo? Era duplo o amor de Jesus no coração de Maria, observa o Beato Amadeu: um sobrenatural, com que o amava como a seu Deus, e natural o outro, com que o estremecia como Filho. Esse duplo amor reuniu-se num só, imenso e incalculável amor, a ponto de Guilherme de Paris ousar dizer: Tanto era o amor da Santíssima Virgem a Jesus, que uma pura criatura não seria capaz de amá-lo mais. Ora, conclui Ricardo de São Vítor, como o amor de Maria não comporta comparações, também não as comporta a sua dor. Imenso era o amor da Senhora a seu Filho e também incalculável devia ser a sua pena ao perdê-lo, observa Santo Alberto Magno.
Imaginemos que a Mãe de Deus, junto ao Filho moribundo na cruz, nos dirige as palavras de Jeremias: Ó vós todos que passais pelo caminho, atendei e vede se há dor semelhante à minha dor (Lm 1,12). Ó vós que viveis na terra, e não vos compadeceis de mim, parai um pouco a contemplar-me neste momento em que estou vendo morrer meu Filho diletíssimo. Vede em seguida se, entre todos os aflitos e atormentados, há dor semelhante à minha dor. – Não há, nem pode haver mais amarga tortura do que a vossa, diz o Ofício das Dores de Maria; pois nunca houve no mundo Filho mais amável que o vosso.
Também São Lourenço Justiniano afirma: Não houve jamais Filho mais amável que Jesus, nem mãe alguma mais amante que Maria. Se, pois, nunca houve na terra amor semelhante ao de Maria, como poderia haver então sofrimento semelhante ao seu? Eis por que um escritor não hesita em apresentar como testemunho de Santo Ildefonso esta sentença: Ainda é pouco dizer que as dores da Virgem excedem aos tormentos, mesmo reunidos, de todos os mártires. Eádmero acrescenta que os suplícios mais cruéis infligidos aos santos mártires foram leves e como que nada, em comparação ao martírio de Maria. No mesmo sentido escreve São Basílio de Seleucia: À semelhança do sol, que ofusca o esplendor de todos os outros planetas, o sofrimento de Maria fez desaparecer o de todos os mártires. O douto Pinamonti conclui com este belíssimo pensamento: Tamanha foi a dor que essa Mãe sofreu na Paixão de Jesus, que só essa dor foi compaixão digna da morte de um Deus.
São Boaventura, dirigindo-se à Bem-aventurada Virgem, pergunta: Quisestes, Senhora minha, ser também imolada no Calvário? Para remir-nos não bastava porventura um Deus crucificado? E por que então quisestes também vós, sua Mãe, ser igualmente crucificada? Certamente bastava a morte de Jesus para a redenção do mundo, e até de uma infinidade de mundos. Amando-nos, porém, quis essa boa Mãe concorrer de sua parte para nossa redenção com o merecimento de suas dores, suportadas por nós no Calvário. De onde as palavras de Santo Alberto Magno: Somos obrigados a Jesus pela Paixão que sofreu por nosso amor, mas o somos também a Maria pelo martírio que, na morte do Filho, quis sofrer espontaneamente pela nossa salvação. Espontaneamente o fez, pois um anjo revelou a Santa Brígida que nossa tão compassiva e benigna Mãe preferiu sofrer todas as penas, a ver as almas privadas de redenção e entregues à antiga miséria. Pode-se até dizer, com Simeão de Cássia, que o único consolo de Maria, no meio da acerbíssima dor pela Paixão de Jesus, era pensar no mundo resgatado e ver reconciliados com Deus os homens inimizados outrora com ele.
Maria recompensa a veneração de suas dores
Tão grande amor de Maria bem merece toda a nossa gratidão. Mostremo-la ao menos pela meditação e compaixão de suas dores. Queixou-se, por isso, a Virgem Santíssima a Santa Brígida que muito poucos são os que dela se compadecem, sendo que a maior parte dos homens vivem esquecidos de suas aflições. Recomendou-lhe em seguida, com muita insistência, que delas guardasse contínua memória. Quanto é agradável a Maria essa meditação de suas dores podemos deduzi-lo da aparição com que contemplou em 1239 aqueles 7 devotos seus, fundadores da Ordem dos Servitas. Apresentou-se-lhes tendo nas mãos um hábito negro, ordenou-lhes meditassem com frequência e amor em suas dores, e que em memória delas vestissem aquela lúgubre roupeta. O próprio Jesus Cristo revelou a Santa Verônica de Binasco que ele mais se agrada em ver meditados os sofrimentos de Maria, que contemplados os seus próprios. Filha, disse o Senhor, caras me são as lágrimas derramadas sobre minha Paixão; mas, como amo imensamente a minha Mãe, ainda me é mais cara a meditação das dores que ela padeceu, vendo-me morrer.
Assim é que Jesus prometeu graças extraordinárias aos devotos das dores de Maria. Pelbarto refere-nos a seguinte revelação de Santa Isabel a esse respeito. São João Evangelista, depois da Assunção da Senhora, muito desejava revê-la. Obteve com efeito essa graça e sua Mãe querida apareceu-lhe em companhia de Jesus Cristo. Ouviu em seguida Maria pedir ao Filho algumas graças especiais para os devotos de suas dores, e Jesus prometer quatro principais graças. Ei-las:
1. esses devotos terão a graça de fazer verdadeira penitência por todos os seus pecados, antes da morte;
2. Jesus guardá-los-á em todas as tribulações em que acharem, especialmente na hora da morte;
3. ele lhes imprimirá no coração a memória de sua Paixão, dando-lhes depois um prêmio especial no céu;
4. por fim os deixará nas mãos de sua Mãe para que deles disponha a seu agrado, e lhes obtenha todos e quaisquer favores.
Comprovando tudo isso, leia-se o exemplo seguinte que mostra quanto é útil à salvação eterna venerar as dores de Maria.
Exemplo
Lê-se nas Revelações de Santa Brígida que havia um senhor tão nobre pelo nascimento como vil e depravado pelos costumes. Fizera pacto expresso com o demônio, a quem havia servido como escravo durante sessenta anos seguidos, sem se aproximar dos sacramentos, e levando a pior vida que se pode imaginar. Ora, estando para morrer esse fidalgo, Jesus Cristo, para usar com ele de misericórdia, ordenou a Santa Brígida que pedisse a seu diretor espiritual que o fosse visitar e exortar a confessar-se. O padre foi, mas o doente respondeu que já se tinha confessado muitas vezes, não necessitando mais de confissão. Foi segunda vez, porém o infeliz escravo do inferno obstinou-se na sua impenitência. Jesus de novo disse à Santa que o padre não devia desanimar. Este voltou terceira vez e referiu ao doente a revelação feita à Santa, dizendo-lhe que tinha voltado por ordem do Senhor, o qual queria usar de misericórdia em seu favor. Isto ouvindo, o infeliz começou a enternecer-se e a chorar. Mas como, (exclamou em seguida), poderei ser perdoado? Durante sessenta anos servi ao demônio, e dele me fiz escravo e tenho a alma tão carregada de inúmeros pecados! – Filho, respondeu- lhe o padre, animando-o, não duvides; se te arrependeres, prometo-te o perdão em nome de Deus. Começando então a ter confiança, disse o infeliz ao confessor: Meu Pai, eu me julgava condenado e desesperava da minha salvação; mas agora sinto uma dor de meus pecados, que me anima a ter confiança. Com efeito, confessou-se no mesmo dia quatro vezes, com muita contrição. No dia seguinte comungou, e morreu seis dias depois, muito contrito e resignado. Depois de sua morte, Jesus Cristo falou de novo a Santa Brígida e disse-lhe que aquele pecador se tinha salvado, que estava no purgatório, e devia a salvação à intercessão da Virgem, sua Mãe, pois apesar da vida perversa que levara, tinha conservado a devoção às suas dores, recordando-as sempre com compaixão.
Oração
Ó minha Mãe dolorosa, Rainha dos mártires e das dores, chorastes tanto vosso Filho, morto por minha salvação; mas de que me servirão vossas lágrimas, se eu me perder? Pelos merecimentos, pois, de vossas dores, impetrai-me uma verdadeira emenda de vida, com uma perpétua e terna compaixão de Jesus e vossas dores. E já que Jesus e vós, sendo inocentes, tanto padecestes por mim, obtende-me que eu, réu do inferno, padeça também alguma coisa por amor de vós. Digo-vos com São Boaventura: “Ó minha Senhora, se eu vos magoei, feri e enternecei meu coração, para castigar-me; se eu vos tenho servido, fazei-o então em recompensa disso. Considero uma vergonha me ver sem chagas, quando vós e Jesus estais feridos por meu amor”. Finalmente, ó minha Mãe, ainda um pedido. Pela aflição que sentistes vendo diante de vossos olhos vosso Filho, entre tantos tormentos, inclinar a cabeça e expirar na cruz, suplico-vos que me alcanceis uma boa morte. Ah! não me abandoneis na última hora, ó advogada dos pecadores. Não deixeis de assistir minha alma aflita e combatida, na terrível e inevitável passagem da vida à eternidade. E como é possível que eu perca então a palavra e a voz, para invocar vosso nome e o de Jesus, que sois toda a minha esperança, invoco-vos desde já, a vosso Filho e a vós, pedindo-vos que me socorrais no instante final, e dizendo: Jesus e Maria, a vós recomendo a minha alma. Amém.
Voltar para o Índice de Glórias de Maria, por Santo Afonso