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A Virtude da Paciência, a Abnegação e o Amor da Cruz

Compre a coleção As 12 Virtudes para cada mês do ano, na Editora Rumo à Santidade
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Mês de Dezembro: A Virtude da Paciência, a Abnegação e o Amor da Cruz

Mês de Dezembro

Breve introdução sobre a Paciência e o Apóstolo Patrono

Estamos na terra para fazermos penitência e merecermos; não é ela, portanto, lugar de repouso, mas de trabalhos e sofrimentos. As dores, adversidades e outras tribulações hão de ser as mais belas jóias da nossa corôa no paraíso. Pratiquemos a paciência:

1. Quando a morte nos arrebata os parentes ou amigos;

2. Na pobreza;

3. Nos desprezos e perseguições;

4. Nas desolações espirituais;

5. Nas tentações;

6. Nas doenças.

A resignação na morte, para fazer a vontade de Deus, é bastante para assegurar a nossa salvação eterna.

Pondera que nesta vida, quer queiras, quer não, terás necessariamente de padecer. Procura por isso padecer de maneira meritória, isto é, pacientemente; violenta-te e evita romper em queixas e lamentos. Se te venceres, Deus te fará experimentar durante a tribulação uma doçura desconhecida dos mundanos, mas muito conhecida daqueles que amam a Deus.

Se Deus te visitar com doenças, pobreza, perseguições e outras adversidades, humilha-te diante dEle, e dize com o bom ladrão:

“Recebemos o que mereciam nossas ações” (Lc 23, 41).

E mesmo que não tenhas perdido a inocência batismal, certamente já terás merecido um longo purgatório. Por isso alegra-te se fores castigado neste mundo e não no outro.

Consola-te também nos sofrimentos internos com a esperança do céu. Recorda-te das palavras de São Paulo:

“Os padecimentos deste mundo não tem comparação com a glória futura que será manifestada em nós” (Rom 8, 18)

“O que aqui é para nós uma tribulação momentânea e ligeira produz em nós, de um modo maravilhoso no mais alto grau, um peso eterno de glória” (2 Cor 4, 17)

Se tua vida te parecer insuportável, olha para teu divino Salvador, que te precede, carregando a cruz. Ouve o que Ele diz:

“Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo e tome todos os dias a cruz sobre si” (Lc 9, 23)

Teu Salvador vai sempre adiante, e só pára ao chegar ao monte Calvário, para ai morrer por ti.

Acostuma-te a submeter-te já antecedentemente na oração a todos os sofrimentos que talvez te sobrevirão; assim procederam os santos e por isso estavam sempre prontos a abraçar todas as cruzes, mesmo as que lhes sobrevinham inesperadamente.

Suplica, finalmente, ao Senhor instantemente que te conceda a graça da paciência, pois, sem a oração, nunca obterás essa grande graça. Justamente na oração encontraram os santos mártires a coragem para suportar os mais atrozes tormentos e a morte mais ignominiosa. Se recorreres ao Senhor com confiança, Ele te livrará dos teus padecimentos ou então te concederá a graça de suportá- los com paciência. Ele mesmo disse:

“Vinde a mim todos que andais em trabalhos e vos achais carregados e eu vos aliviarei” (Mt 11, 28)

Sumário
I. A sua natureza
II. Da Paciência em Geral
III. Da Paciência nas Enfermidades
IV. Da Paciência nas Injúrias e Perseguições
V. Da Paciência na Desolações Espiritual
VI. Alguns avisos a respeito do Exercício da Paciência
VII. A Abnegação e o Amor da Cruz no Redentor
VIII. A Prática da Paciência
IX. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Mês de Dezembro: A Virtude da Paciência, a Abnegação e o Amor da Cruz. Apóstolo Patrono: São Mateus


I. A Natureza da Paciência

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

Para os verdadeiros cristãos que despojaram o velho homem e revestiram o novo voltado à imagem de seu Deus pelo Redentor, já não há, diz São Paulo, nem grego nem judeu, nem circuncidado nem incircunciso, nem bárbaro ou cita, nem escravo ou homem livre; mas o Cristo é tudo em todos (Col 3, 11). E quando lhe estiver submisso, diz ainda o mesmo apóstolo, o Filho homenageará aquele que lhe submeterá todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos (1Cor 15, 28). Tal será no céu o reino perfeito da caridade.

Arrebatado em êxtase eterno pela beleza infinita, o eleito, sem olhar para si, põem em Deus todas as suas complacências, exulta da felicidade de Deus, prorrompe em hinos de louvor à majestade, ao poder, à justiça, à bondade e à misericórdia de seu Deus; numa palavra: vive só de Deus, em Deus, por Deus e para Deus, e encontra delícias infinitas nessa imersão de todas as suas potências em Deus, porque, criado para amar a Deus, o nosso pobre coração acha necessariamente nEle, e não pode achar senão nEle, a satisfação plena e completa de todos os seus desejos e o seu perfeito repouso.

Eis o ideal de perfeição de que devemos aproximar-nos, estabelecendo em nós o reino da caridade.
Para Ele devem tender todos os nossos esforços; o exercício de todas as virtudes só tem essa finalidade. Todos tiram da caridade a sua perfeição e têm por fim realizar em nós o reino perfeito dessa virtude, seja afastando os obstáculos que ela possa encontrar em seu caminho, como a temperança e a pobreza; seja satisfazendo as suas nobres aspirações, como a oração e o zelo das almas.

Mas, depois que o pecado arruinou a nossa pobre natureza, é o amor desregrado do eu o grande obstáculo para o reino da caridade em nós. Antes do pecado, o coração do homem ia direito a Deus, amando-O sobre todas as coisas por causa dEle mesmo, e não O amando senão em Deus, segundo Deus e para Deus. O pecado transtornou essa bela ordem; desde então o nosso coração encheu-se de instinto egoísta, substituindo o eu a Deus e referindo-lhe tudo como a seu centro.

E do mesmo modo como da caridade nascem na alma todas as virtudes, todas as paixões más e todos os vícios são manifestações do eu desregrado a entronizar-se em nós no lugar de Deus: o orgulho é o eu que se gloria com pretensões a uma excelência que lhe não convém; a avareza é o eu que quer gozar a posse do ouro; pelo vício vergonhoso o eu se compraz em revolver-se nos lodosos gozos da carne.

A luta no mundo é entre esses dois amores que se disputam o nosso coração. Conforme for o vencedor, seremos ou da Igreja de Deus ou da igreja de Satanás. É essa a bela palavra de Santo Agostinho, que não poderemos assaz meditar:

“Dois grandes amores constituem as duas grandes cidades; o amor de Deus até ao desprezo do eu, a cidade dos filhos de Deus; o amor do eu levado até ao desprezo de Deus, a cidade do demônio”

O nosso coração, que tem necessidade do amor, terá um ou outro desses dois amores. Mas eles são incompatíveis: um só pode reinar pela destruição do outro.

Só o amor divino é assaz poderoso para matar esse amor dominante e desregrado do eu; esse amor desregrado do eu é o único inimigo verdadeiramente perigoso que o amor divino encontra em nós; os outros adversários da caridade tiram sua força desse amor desordenado do eu.

Ora, pode-se dizer de maneira geral que é pela abnegação que combatemos esse amor do eu para substituir-lhe o amor de Deus. Quem quer vir após mim, diz Jesus, renuncie-se ou abnegue-se a si próprio, tome a sua cruz e siga-me.

Para apresentarmos com brevidade o nosso pensamento antes de desenvolvê-lo, resumimo-lo assim:

1.º O combate que a mortificação empreende contra a natureza, a abnegação o trava à pessoa.

2.º Como as outras virtudes reprimem os movimentos desordenados da natureza, ela reprime as manifestações desregradas da pessoa; se, pois, a abnegação se limitasse à repressão dessas manifestações desregradas, só poderia ver nela uma virtude geral de combinação com as outras virtudes que exigem essa repressão, como o dissemos a propósito da mortificação.

3.º Mas assim como a mortificação, para domar completamente a natureza, não se contenta de reprimir esses movimentos desordenados, mas lhe impõem privações, sacrifícios voluntários, e a persegue até em suas manifestações indiferentes, ou inocentes, assim a abnegação não se contenta de recalcar as pretensões injustas e desregradas da pessoa, mas constrange-a a renunciar-se nas coisas permitidas.

À alma movida de amor divino não basta, enfim, renunciar-se, esquecer-se e viver só para Ele; alegra- se em sofrer e em imolar-se por seu Senhor pelo amor da cruz. Entremos no assunto.

Parecemos aqui afastar-nos de mestres que gozam, com razão, a maior autoridade; mas depressa se verificará como esperamos que a oposição seja mais aparente do que real, e que o é unicamente no modo de expor e não no fundo das coisas. Alvares de Paz não faz praticamente nenhuma distinção entre a mortificação e a abnegação. Para ele, mortificação, cruz, jejum, renúncia, circuncisão do espírito ou do coração, etc., são apenas sinônimos. Ele diz indiferentemente: abnegação ou mortificação dos sentidos, abnegação ou mortificação do espírito ou da vontade.

Ao que nos parece, pode-se, entretanto, distinguir o combate que travamos à nossa natureza para submetê-la ao domínio da graça, do que devemos sustentar contra a nossa pessoa para em tudo darmos a preferência a Deus sobre nós mesmos.

Observamos primeiro que se podem sofrer no corpo as últimas violências ou impor-se a si mesmo as mais rudes privações, sem se fazer abnegação alguma de si mesmo, e mesmo sem praticar nenhuma virtude. O filho que antes se deixa moer com pancadas por seu pai do que obedecer ou ceder, não prática evidentemente nem a abnegação nem a mortificação. O mesmo se dá com aquele que, forçado pela necessidade, se faz amputar um membro ou se submete a um regime severo para salvar a vida ou a saúde comprometida. Há muitos que se impõem fortes penitências e mortificações, que multiplicam os jejuns e as disciplinas, e que estão prontos a todos os sacrifícios, exceto o das mortificações que nem a obediência os pode fazer abandonar e nos quais se comprazem secretamente. Talvez se diga que são muito mortificados; mas não estão absolutamente mortos a si próprios, não praticam a abnegação.

É que não mortificam, dirá alguém, a sua vontade própria. Mas o homem pode procurar a si mesmo no sacrifício da vontade própria. Quem sacrifica os seus desejos e se submete à vontade de seus superiores para ganhar suas boas graças ou para ser bem visto, prometendo até indenizar-se depois, não obedece se-não ao amor-próprio. Quem poderia ver nele a verdadeira abnegação? Vamos mais longe e suponhamos nessa renúncia à vontade própria um motivo virtuoso. Quem o executa pode propor-se expiar os abusos que fez da sua liberdade e obter o perdão: nesse caso pratica a penitência, mas não esquece a si mesmo, não se renuncia. Ou então renuncia à vontade própria para chegar a dominar a sua vontade, como dominaria qualquer outra das suas faculdades: é a mortificação; mas mesmo aqui não esquece a si mesmo. Sacrificando certos interesses pessoais, preocupa-se em salvaguardar outros mais importantes. Chegamos ao nó da dificuldade, à distinção que se pode estabelecer entre a abnegação e a mortificação. A pessoa reivindica tudo quanto lhe pertence, tudo quanto constitui o indivíduo, e por isso toda a sua natureza; ela diz: meu corpo, minha alma, minha inteligência, meus sentidos, minhas paixões, minha liberdade. Ela pode, pois, renunciar-se, fazer a abnegação de si própria. Assim a mortificação se encontra com a abnegação no mesmo campo de ação. Mas tudo quanto à pessoa pode reivindicar não a constitui; e vimos que muitas vezes ela não se sente atingida pelas violências ou pelos múltiplos despojamentos que ela pode sofrer ou impor-se. Assim, pois, a abnegação e a mortificação poderão exercer-se sobre a vontade própria e imolá-la, sobre os sentidos e crucificá-los, etc. Mas, enquanto que pela mortificação a alma faz esses sacrifícios para domar-se, para adquirir o domínio perfeito sobre si mesmo, para poder caminhar nas veredas das virtudes, pela abnegação ela os realiza em favor dum outro a quem dá a preferência sobre si mesma, esquecendo-se e renunciando-se por ele. É o caso dum amigo que se devota por seu amigo; duma mãe que se esfalfa por seu filho. A abnegação é assim essencialmente filha do amor, e do amor sincero e generoso. Assim se vê também como a abnegação se encontra com as outras virtudes e como delas se distingue.

Encontra-se com as outras virtudes para reprimir os movimentos desordenados do eu; com a humildade combate as pretensões do eu orgulhoso; com a pobreza combate o eu que procura a abundância; com a castidade o eu sensual, etc. E assim se pode ver na abnegação uma virtude geral, como o dissemos da mortificação. Nessas mesmas repressões, porém, em que se une às outras virtudes, a abnegação visa o seu fim particular. A humildade reprime as pretensões orgulhosas do eu, porque lesam a justiça e o respeito devido a Deus; a abnegação visa a destruição do eu e o quer fazer desaparecer para colocar Deus no seu lugar. E em todas as repressões que exerce, em todas as privações que se impõe, a abnegação tem em vista: a substituição de Deus ao eu. Vejamos agora como a abnegação vai mais longe do que as outras virtudes e não contenta-se de reprimir as manifestações desregradas do eu.

Notemos primeiro que atos exteriormente bons ou virtuosos podem não ser inspirados senão por motivo puramente natural e mesmo pelo amor desregrado do eu. É assim que certos filósofos antigos praticavam a pobreza por ostentação; outros guardavam a castidade para se dar mais livremente aos trabalhos da inteligência; muitos há que vestem a libré da humildade por um refinado orgulho. Sejam quais forem as aparências, por excelente que pareça um ato, não pode ser virtude cristã senão quando inspirado por um motivo cristão, sobrenatural; não passa de uma virtude humana, que tem por fim apenas um motivo honesto e conforme à razão.

Além disso, um ato de virtude, por exemplo, um ato de pobreza, pode ser perfeito em si, harmonizando-se com as legítimas preocupações do eu.

A alma que diz a Deus: “Renuncio a todos os bens criados para prender-me a vós, Deus meus et omnia. Sois o meu Deus e o meu tudo; vós só me bastais, só de vós quero gozar”; essa alma, dizemos, pratica perfeitamente a pobreza e os desapegos dos bens da terra; guarda, porém, alguma preocupação de si mesma, preocupação legítima sem dúvida, mas real; não se pode dizer que por esse ato ela faz a abnegação completa de si mesma. O mesmo se diga da alma que, pela humildade, mata em si o orgulho e reprime em seu coração toda tendência desregrada à própria excelência: essa alma põe-se em seu lugar, mas lá fica; dá graças a Deus pelos dons a ela feitos e os refere à sua glória, mas deles goza com muito direito.

Ora, é dessas preocupações legítimas do eu que a alma faz abnegação no fervor da sua caridade. Ela as esquece e interdita, não por julgá-las más ou culpadas, e nem por renunciar aos favores de Deus ou a suas eternas recompensas, absolutamente não; mas o amor verdadeiro e generoso não arrazoa; com são Paulo diz a alma: Seio cui credidi: conheço aquele por quem trabalho; sei que ele cuidará dos meus interesses enquanto eu me ocupar da sua glória; e ela entrega-se toda a seu amor e ao seu serviço.

Aliás, podemos às vezes admirar essa abnegação entre os homens. Vede a mãe de família que passa os dias e as noites à cabeceira do filho enfermo. Só pensa nele, só vive para ele; nem mesmo pensa em cansaço; se lhe viesse esse pensamento, logo o repeliria. Quem lhe poderia exprobrar se cuidasse de si enquanto se dedica por seu filho? E se alguém a exortar a que descanse um pouco, ela só tem uma resposta: Por mim, pouco importa, contanto que meu filho se salve. Esgotando-se dessa forma, ela certamente não quer prejudicar-se, não deseja morrer; só tem uma preocupação: salvar a vida do filho, mesmo a custo da sua; e isso, sobretudo se o filho tem consciência do devotamento materno e pode apreciar as suas fadigas: ela sente-se então feliz por sofrer por ele e cercá-lo de todas as provas de sua ternura. Eis até que ponto o amor humano pode levar a abnegação e a renúncia própria.

Ora, o amor de Deus é o mais perfeito e o mais forte de todos os amores; irá até à abnegação mais completa, mais perfeita, mais sublime. Sob o impulso da caridade, a abnegação faz o homem dizer: Eu em nada; Deus só em tudo.

É assim que uma religiosa carmelita se exprimia muito bem nestas palavras:

“Quero ser ó Jesus, não a rosa que brilha sobre o altar para a vossa glória, mas a que se desfolha e que espezinhais”

Já não é só a humildade que refere tudo à glória de Deus; é a abnegação que se apaga completamente para que só Deus apareça. Melhor ainda o grito de São Paulo: Vivo ego, jam non ego, vivit vero in me Christus.

Assim, pois, enquanto as outras virtudes se harmonizam perfeitamente com as preocupações legítimas do eu, a abnegação realiza em toda a sua perfeição, em toda a sua plenitude, o belo programa de Santo Agostinho: o amor de Deus levado até ao desprezo, até ao olvido completo de si mesmo.

Assim, pois, como a mortificação persegue a natureza em suas mais inocentes manifestações para submeter à natureza à graça, também pela abnegação a alma se renuncia nas coisas lícitas e esquece os seus mais legítimos interesses, para só pensar em Deus. A alma faz ato de abnegação e não só de mortificação cada vez que, impondo-se um sacrifício, uma privação, uma renúncia, o faz dizendo, por exemplo: Não o meu repouso, não as minhas comodidades, mas a glória de Deus; não o meu prazer, mas o prazer de Deus; não a minha vontade, mas a vontade de Deus; não a minha felicidade, mas a glória e a honra de Deus, etc.: são outros tantos atos de abnegação. Ela possui o espírito de abnegação, vive de abnegação e amor perfeito, quando a sua palavra habitual é esta:

“Vós só, ó meu Deus, Vós só e a Vossa glória em tudo e sempre”

Um dia santo Agostinho ouviu uma voz celeste; era nosso Senhor Jesus Cristo que lhe perguntava:

“Agostinho, amas-me?”

Ele respondeu:

“Sabeis, Senhor, que vos amo”. — Pois bem, meu servo, quanto é que me amas?”

O santo replicou:

“Senhor, se todos os ossos do meu corpo fossem candelabros de ouro, e todo o sangue das minhas veias o mais precioso bálsamo, eu vo-lo ofereceria e o deixaria consumir diante de Vós como um sacrifício de louvor e de reconhecimento”

A voz celeste insistiu ainda:

“Dize-me, estarias pronto a fazer ainda mais?”

— “Senhor, disse Santo Agostinho, se minhas veias fossem outros tantos filetes e laços de ouro, servir-me-ia delas para prender-vos ao meu coração e para me ligar a vós, afim de não me poder jamais separar de vós”

— “Agostinho, replicou o Senhor, esse amor é demasiado pequeno; tu me deves e eu quero um amor maior”

— “Ó Rei da glória, exclamou o santo, se fosse possível transmudar o meu ser no Vosso, se fosse possível que Vós fosseis Agostinho e eu fosse Deus, como o Sois agora, eu sacrificaria o ser divino para ser Agostinho, a fim de que Vós, ó meu Deus, fosseis Deus”.

— “Isso, disse o Senhor, merece o nome de amor”

A caridade terá sem esforço essa perfeição no céu, onde a alma, vivendo só para Deus, encontra nEle uma felicidade infinita; para ela tende sobre a terra por atos positivos e repetidos contra o eu que procura sempre manter-se e prevalecer em tudo.

Levada por seu amor materno, a mãe esquece-se e absorve-se no pensamento do filho; não precisa fazer atos positivos contra si mesma, nem sente tentação de preocupar-se de si própria, em detrimento de seu filho. Assim, arrastada pelo impulso da caridade perfeita, a alma arranca-se de si mesma para absorver-se em Deus. Mas infelizmente esse impulso não pode ser habitual. Muitas vezes o eu quer apoderar-se novamente de si mesmo, e a caridade sente a necessidade de renegá-lo por uma palavra firme e generosa; assim se pode distinguir o ato de abnegação do ato formal de caridade:

Eu em nada — Vós só em tudo, meu Deus.

Se os santos do céu, enfim, pudessem ainda desejar qualquer coisa, invejar-nos-iam porque sobre a terra a caridade pode levar a abnegação até ao amor da cruz.

Não contente de oferecer a Deus a renúncia do eu, vai até à imolação dolorosa; não só desaparece o eu, mas desaparece nas chamas do sacrifício: última satisfação do amor que se apraz em sofrer pela pessoa amada.

Não é só o sofrimento ou a cruz aceita e suportada com resignação em espírito de reparação ou de penitência, mas é a cruz desejada, procurada e abraçada generosamente e com delícias como alimento divino da caridade, como instrumento mais eficaz de redenção nas mãos do apóstolo inflamado de zelo, enfim, como o altar bendito em que a alma presa de seu Deus exulta em oferecer-se em holocausto ao seu amor e à sua glória.

Pode-se, pois, dizer com toda a verdade: a abnegação e o amor da cruz são o último esforço, o último triunfo, o reino perfeito da caridade numa alma.

Jesus e Maria, doces amores da minha alma, sofra eu por vós, saiba morrer para vós que tanto me tendes amado e sofrido por mim! Seja eu inteiramente vosso e nada meu. Amém.

II. Da Paciência em Geral

Os escritos seguintes são de Santo Afonso Maria de Ligório.

“Na paciência está uma obra perfeita”, diz o Apóstolo (Tg 1, 4). Pela paciência oferecemos a Deus um sacrifício perfeito, pois, sujeitando-nos voluntariamente às tribulações e contrariedades, desaparece a nossa atividade própria e abraçamos unicamente a cruz que o Senhor nos envia com toda a resignação. A paciência é preferível ao heroísmo, diz o Sábio:

“O homem paciente vale mais que o valoroso” (Pr 16, 32)

Muitos mostram grande coragem quando se trata de compreender e executar uma obra piedosa; mas não têm suficiente paciência para suportar as contrariedades. Seria melhor que um tal fosse mais constante no padecer do que corajoso nas empresas.

Estamos no mundo para ajuntar merecimentos; portanto, a terra não é um lugar de descanso, mas de trabalho e sofrimento, já que não se colhem merecimentos do descanso, mas do trabalho e esforço. Todos os homens, justos e pecadores, devem sofrer na terra; a um falta isto, a outro aquilo; este é nobre mas não é rico; aquele, rico, mas sem a prerrogativa da nobreza; este outro é nobre e rico, mas não tem saúde. Numa palavra, até os reis têm de sofrer e quanto mais alto estão aqui na terra, tanto maiores são os seus sofrimentos.

Por isso só então poderemos gozar de uma verdadeira paz, quando levarmos com paciência a nossa cruz. O Espírito Santo, em vista disso, nos aconselha que não façamos como os irracionais, que se exasperam quando não podem satisfazer seus instintos:

“Não vos torneis como o cavalo e o mulo, que não têm entendimento” (SI 31, 9)

Que adianta, de fato, perder a paciência nas contrariedades? Com isso só se aumenta o mal. Os dois ladrões, que foram crucificados com o divino Salvador, morreram nos mesmos tormentos; mas o bom se salvou, porque os suportou com paciência, e o mau perdeu-se para sempre, porque não sofreu com paciência.

“A mesma provação, diz Santo Agostinho (Sermo 52), conduz os bons para a felicidade eterna, porque se submetem a ela com resignação, e os maus para o fogo eterno, porque a sofrem com impaciência”

Quando evitamos uma cruz que Deus nos envia, depara-se-nos, não poucas vezes, uma outra muito mais pesada. “Os que temem a geada, ver-se-ão cobertos pela neve”, diz o piedoso Jó (6, 16). Afastai de mim somente esta cruz, qualquer outra eu levarei. Oh! Quão insensata é esta expressão! Uma outra cruz te acabrunhará ainda mais e terás só pequeno merecimento e talvez nenhum com isso. Toma, pois, sobre ti de boa vontade toda a contrariedade ou dificuldade que Deus te enviar; alcançarás assim merecimentos e terás menos a padecer; ao menos conservarás a paz, sabendo que fazes a vontade de Deus e não a tua.

Estejamos convencidos que Santo Agostinho tem razão quando diz (Sermo 52):

“A vida inteira do cristão deve ser uma ininterrupta cruz”

Isso vale especialmente para aquelas almas que aspiram à santidade. São Gregório Nazianzeno diz que para essas almas generosas a riqueza consiste na pobreza, a honra, no desprezo, e a alegria, na privação de todos os gozos terrenos. À pergunta:

Quem tende verdadeiramente à perfeição?

Responde São João Clímaco (Scal. parad., gr. 1):

“Aquele que se violenta continuamente”

E quando cessará a necessidade de se violentar? Com a morte somente, pois, como diz São Próspero (De vit. cont., 1. 1, c. 1), “só então terminará o combate, quando estivermos certos da vitória, isto é, quando entrarmos no céu”.

Para nos animarmos a suportar pacientemente todos os padecimentos desta vida, consideremos seriamente os seguintes pontos:

1.º Os sofrimentos são um meio excelente de expiarmos os nossos pecados

Se tens de confessar, alma cristã, que ofendeste a Deus e, apesar disso, queres te salvar, então deves te alegrar quando Deus te envia sofrimentos.

O pecado é uma úlcera da alma, diz São João Crisóstomo, se não vier alguma tribulação para extrair o pus, a alma estará perdida. Oh! Como é digno de lástima o pecador que não quer ser castigado nesta vida por seus crimes.

“Reconhece que Deus, enviando-te sofrimentos, procede como médico, diz Santo Agostinho (In ps. 21, cn. 2), e que a tribulação que te envia não é um castigo para tua perdição, mas um remédio para tua salvação”

Por isso deves agradecer a Deus se Ele te enviar sofrimentos, porque isso é um sinal de que Ele te ama e te considera como filho.

“O Senhor castiga os que ele ama e açoita a todo que recebe por filho” (Hb 12, 6)

Segundo isso, diz Santo Agostinho:

“Se tudo te corre bem, reconhece o Pai que te acaricia; se tens de sofrer, reconhece o Pai que te castiga. És muito digno de lástima, continua ele, se Deus te poupa aqui na terra, apesar de teus pecados” (Sermo 46, c. 6)

Se, portanto, tiveres de padecer, não digas que Deus se esqueceu de ti; dize antes que te esqueceste de teus pecados. Quem ofendeu a Deus deve dizer-Lhe, com São Boaventura:

“Apressai-vos, Senhor, apressai-Vos e feri a Vosso servo com golpes de amor e de salvação, para que não nos atinjam os golpes da Vossa ira e da morte eterna”

Deus certamente não nos envia padecimentos para nossa perdição, mas para nossa salvação e se não nos aproveitamos deles, a culpa é nossa.

“Nunca está Deus mais irritado com o pecador do que quando não se irrita contra ele e não o castiga”, diz São Bernardo (In Cant. sermo 42)

Por isso o Santo suplicava a Deus:

“Eu Vos peço, ó Senhor, que Vos mostreis para comigo como pai de misericórdia, isto é, que Vos digneis castigar-me aqui na terra, por meus pecados, para preservar-me das penas eternas na outra vida”

Tu dizes que não possuis a força para suportar esta ou aquela cruz; se te falta, porém, a força, por que não a pedes ao Senhor? Ele mesmo prometeu sua assistência a todos que lha pedirem:

“Pedi e vos será dado” (Mt 7, 7)

2.º Os sofrimentos são uma fonte de merecimentos

Consola-te em teus sofrimentos com a esperança do céu. São José Calazans dizia:

“Para se ganhar o céu deve-se considerar como insignificante toda a espécie de pena”

Antes dele já dissera o Apóstolo:

“Eu lenho para mim que as penalidades da vida presente não tem proporção alguma com a glória futura que se manifestará em nós” (Rm 8, 18)

Seria pouca coisa se tivéssemos de sofrer todos os padecimentos deste mundo para gozarmos das alegrias celestiais; quanto mais, pois, não devemos abraçar com coração alegre todas as cruzes que Deus nos envia, sabendo que os padecimentos momentâneos desta vida nos alcançam uma felicidade eterna no céu.

“O que aqui é para nós de uma tribulação momentânea e ligeira, produz em nós, de um modo todo maravilhoso, no mais alto grau, um peso eterno de glória” (2 Cor 4, 17)

Em vez de nos entristecermos, devemos nos alegrar de coração quando o Senhor nos visita aqui na terra com sofrimentos.

Quem entrar com mais merecimentos na outra vida, receberá também aí uma recompensa maior, e é esse o motivo por que Deus nos envia tribulações aqui na terra. As virtudes, que são a fonte dos merecimentos que se adquirem unicamente pelo exercício; quando, por exemplo, tem-se mais ocasião para a paciência, fazem-se mais atos de paciência; quando se sofrem mais injustiças, fazem-se mais atos de mansidão. Por isso São Tiago nos anima com as palavras:

“Bem-aventurados os homens que sofrem tentação, porque, depois que tiver sido provado (depois de ter superado a tentação), receberá a corôa da vida” (Tg 1, 12)

Confortado por esse pensamento, São Agapito, um jovem de quinze anos, mostrou um admirável heroísmo em suportar o martírio. Mandando o tirano que lhe pusessem carvões acesos sobre a cabeça, disse o jovem mártir:

“Pouco importa que esta cabeça seja queimada, desde que será coroada de glória no céu”

O mesmo pensamento levou o piedoso Jó a dizer:

“Se recebemos o bem da mão de Deus, por que não deveremos receber também o mal?” (Jó 2, 10)

Queria ele dizer: Se recebemos com alegria bens temporais da mão de Deus, por que não deveríamos receber com alegria ainda maior males transitórios, que nos alcançam alegrias eternas no céu? Foi também este pensamento que pôs na boca de São Francisco estas palavras:

“O bem que eu espero é tão grande, que todo o sofrimento me é um prazer”

Em uma palavra: os santos se alegram se têm de padecer tribulações aqui na terra e se entristecem, de certo modo, quando tudo lhes corre bem.

3.º Os sofrimentos são um sinal de predestinação

Ser visitado aqui na terra por tribulações é um sinal especial de predestinação. Isso diz São Gregório (Mor., 1. 26, c. 18) nestes termos:

“Os escolhidos, destinados à bem-aventurança eterna, terão de viver em aflições aqui na terra”

De fato, lemos na vida dos santos que eles todos, sem exceção, viveram cercados de cruzes. São Jerônimo escreve à virgem Eustoquium:

“Examina a vida dos santos e verás que todos tinham de sofrer tribulações; só Salomão viveu no meio das alegrias e se perdeu talvez eternamente em consequência disso”

São Paulo diz que todos os escolhidos devem ser semelhantes a Jesus Cristo.

“Os que conheceu na sua paciência também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8, 29)

Ora, a vida de Jesus Cristo foi um sofrimento contínuo e, por isso, para sermos glorificados com Jesus Cristo, ajunta o Apóstolo, devemos sofrer com Ele:

“Se padecermos com ele, também com ele seremos glorificados” (Rm 8, 17)

Padecer com Jesus Cristo quer dizer padecer resignadamente como nosso Salvador padeceu: “que não amaldiçoava quando o amaldiçoavam, que não ameaçava quando padecia” (1Pd 2, 23). São Gregório diz que, como a paciência no padecimento é um sinal de predestinação, assim a impaciência é um sinal de perdição. Por isso nos indica o Senhor que acharemos a bem-aventurança eterna só no sofrer com paciência.

“Na vossa paciência possuireis as vossas almas” (Lc 21, 19)

4.º Os sofrimentos nos desprendem das coisas terrenas

Se Nosso Senhor nos envia sofrimentos, é sua intenção nos desprender das alegrias mundanas, que nos poderiam ocasionar a perda da bem-aventurança eterna.

“O mundo é amargo, diz Santo Agostinho (Sermo 289), porque todas as suas alegrias, longe de satisfazerem o coração do homem, se transformam em desgostos e remorsos; e, apesar disso, ama-se o mundo; imagina agora quanto mais o seria se ele fosse doce, como então nos esqueceríamos de nossa alma, de Deus e do céu”

Se uma mãe quer desmamar seu filho e desgostá-lo do leite, esfrega alguma coisa amarga no peito. De semelhante modo procede Deus para conosco; Ele transforma as alegrias deste mundo em amarguras, para que nos desprendamos delas e aspiremos às alegrias celestiais que Ele preparou no céu àqueles que O amam. Para esse fim fez ainda mais Nosso amável Redentor: veio a este mundo e padeceu por nós, para que nós, animados por Seu exemplo, tivéssemos menos temor dos sofrimentos, devendo simplesmente seguir os Seus vestígios. Ouçamos como Ele nos chama à Sua imitação:

“Se alguém quiser seguir-me, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16, 24)

Parece querer dizer: Quem não quiser padecer e carregar sua cruz, renuncie a ser meu discípulo e a acompanhar-me ao céu.

5.º Os sofrimentos são a pedra de toque de nosso amor

Existem pessoas que são amigas só no tempo da prosperidade, diz o Sábio, e que abandonam o amigo quando a infelicidade o atinge.

“Tal é amigo enquanto nisso acha sua conveniência, mas não permanece no dia da tribulação” (Ecl 6, 8)

A prova mais certa do verdadeiro amor consiste em padecer voluntariamente pelo amigo. Por isso o mais agradável sacrifício que se faz a Deus é abraçar de boa vontade todas as cruzes que nos enviar. “A caridade é paciente ela sofre tudo” (1 Cor 13, 4, 7), ela suporta voluntariamente tanto cruzes externas, como a perda da saúde, de bens, da honra, dos parentes e amigos, como internas, por exemplo, tribulações, dores e secura espiritual.

Pela paciência fica provada a virtude; por isso se costuma fazer sobressair na vida dos santos a sua paciência nas adversidades. O demônio nos tenta para nos perder; Deus, pelo contrário, tenta-nos para provar nossa paciência. “Como o ouro na fornalha, assim ele os prova” (Sb 3, 5), isto é, assim como se prova o ouro por meio do fogo, do mesmo modo, por meio das chamas da tribulação, prova Deus o amor dos seus. Se uma alma, portanto, tem de suportar muitas adversidades, é um sinal de que Deus a ama, como o anjo assegurou a Tobias:

“Porque eras grato a Deus foi necessário que a tentação te provasse” (Tb 12, 13)

E São João Crisóstomo diz:

“Se Deus dá a alguém ocasião de sofrer muito, concede-lhe uma graça maior do que se lhe desse poder de ressuscitar mortos, porque, quando operamos milagres, somos devedores a Deus, mas quando sofremos com paciência, torna-se Deus, por assim dizer, nosso devedor”

Como é possível que olhemos para o crucifixo e vejamos um Deus morrendo em um mar de dores e desprezos sem querer suportar pacientemente, por amor desse Deus, todos os sofrimentos e evitar e abraçar com alegria todos eles? Santa Maria Madalena de Pazzi dizia:

“Toda a dor, por maior que seja, torna-se doce quando se considera a Jesus na cruz”

Sentindo uma vez o sábio Justo Lípsio grandes dores, um dos circunstantes o exortou à paciência apresentando-lhe o exemplo de alguns filósofos pagãos; o paciente, porém; levantou seus olhos para o crucifixo e disse:

“Aqui está a verdadeira paciência”

Queria dizer com isso que o exemplo de um Deus que tanto padeceu por amor de nós era um estímulo suficiente para padecer por amor dEle todas as dores.

“Quem ama o Crucificado ama igualmente as dores e o opróbrio”, diz São Bernardo (In Cant. s. 25)

Perguntando Santa Delfina a Santo Elziário, seu marido, como podia ele suportar sem impacientar-se tantas ofensas da parte de homens incultos, respondeu:

“Não deves julgar que sou insensível a tais ofensas; muito as sinto; mas volto-me para Jesus Crucificado e não cesso de contemplá-lo até meu espírito estar inteiramente tranquilo”

Depois de ter sido ferida pelo amor de Deus, Santa Catarina de Gênova dizia que ela nem sabia mais o que era sofrimento; apesar de sofrer imensas dores, não se perturbava nem um instante por isso, pois ela considerava essas penas como enviadas por Aquele que ela amava tão ternamente, e isso a consolava.

Nós todos devemos padecer, queiramos ou não; procuremos por isso sofrer de modo meritório, isto é, com paciência. A paciência é um escudo que nos preserva de toda a tribulação, que as perseguições, doenças, perdas e outros males trazem consigo. Sem esse escudo estamos entregues sem proteção alguma a todos os males. Cuidemos, portanto, de pedir a Deus, antes de tudo, a paciência, pois não alcançamos essa grande graça sem a pedir.

Se nos sobrevierem adversidades, empreguemos esforços para não rompermos em palavras de impaciência e queixas; privando-se o fogo do ar, extingue-se ele imediatamente. Experimentaremos também brevemente os frutos da vitória:

“A quem vencer darei a gostar o maná escolhido” (Ap 2, 17)

Se nos violentarmos nos sofrimentos e adversidades e tomarmos sobre nós de boa mente a cruz que Nosso Senhor nos enviar, Ele nos fará sentir uma doçura inefável nas tribulações, uma doçura que é desconhecida dos mundanos, mas que é muito conhecida daqueles que amam a Jesus Cristo.

“É mais doce sofrer tribulações com uma boa consciência, diz Santo Agostinho, do que gozar todas as alegrias com uma consciência má” (De catech. rud., c. 16)

6.º Os sofrimentos fizeram a delícia dos santos

Para quem se decide a padecer por Deus, não existem mais cruzes: achará até alegria no seu padecer. Percorramos a vida dos santos e veremos como eles amaram os sofrimentos.

Santa Gertrudes dizia que os sofrimentos lhe ocasionavam uma tal alegria que, para ela, não havia tempo mais triste que aquele em que nada tinha de sofrer. Santa Teresa afirmava que não podia viver sem padecer e, por isso, exclamava muitas vezes:

“Ou padecer ou morrer”

Santa Maria Madalena de Pazzi ia ainda mais longe, sendo sua senha:

“Padecer e não morrer”

O mártir São Procópio dizia ao algoz que lhe aplicava sempre outros tormentos:

“Atormenta-me quanto quiseres, mas fica sabendo que quem ama a Jesus Cristo nada deseja tão ardentemente como sofrer por seu amor”

Sendo São Górdio ameaçado com uma morte atroz se não renunciasse a seu divino Mestre, respondeu:

“Sinto poder morrer uma só vez por meu Salvador”

Dizendo isto, caminhou intrepidamente para a morte. O Pe. Spínola escreveu de seu cárcere, onde muito teve de sofrer:

“Oh! Como é doce padecer por Jesus Cristo. Já tive notícia de minha condenação; peço-vos que agradeçais à divina Bondade pela grande graça que me concede”

A assinatura dizia: Carlos Spínola, condenado à morte por amor de Jesus Cristo. Logo depois foi ele queimado a um fogo lento. Ao ser amarrado ao poste começou a cantar o salmo: Louvai ao Senhor, todos os povos, em ação de graças, e, cantando, rendeu o espírito a Deus.

Mas como podiam os santos mártires padecer com tanta alegria? Perguntar-me-á alguém; não eram eles de carne e sangue como nós, ou tornou-os Deus insensíveis à dor? São Bernardo (In Cant. s. 61), responde:

“Não foi a insensibilidade, mas o amor de Jesus Cristo que os fez padecer com tanta paciência e alegria. A dor não lhes faltava, mas eles a venciam e desprezavam por amor de seu divino Mestre”

Um grande servo de Deus, o Pe. Hipólito Durazzo, da Companhia de Jesus, dizia:

“Por mais que Deus nos custe, nunca o compraremos caro demais”

Quem não sabe padecer por Jesus Cristo, dizia São José Calazans, também não sabe ganhar Jesus Cristo. As almas que entendem a linguagem do amor, encontram na cruz o cumprimento de todos os seus desejos, pois sabem que agrariam a Deus quando a abraçam de boa vontade.

III. Da Paciência nas Enfermidades

Antes de tudo deve-se praticar a paciência nas enfermidades. Elas são a pedra de toque de nossos sentimentos e dão a conhecer se eles são ouro puro ou só ouropel. Muitos têm bom humor, são pacientes e devotos enquanto gozam de boa saúde; atacados, porém, por alguma doença, cometem mil faltas e ficam inconsoláveis; mostrara-se impacientes para com todos, mesmo aqueles que os assistem por caridade; queixam-se da menor dor, da menor indisposição; queixam-se de todos, do médico, de seus pais, daqueles que os tratam, etc. Isso mostra que o ouro aparente é cobre.

Mas eu padeço tanto, dirá alguém, e nem sequer me poderei queixar, ou comunicar aos outros o que sofro? Não te proíbo externar tuas dores quando são muito fortes; quando, porém, são insignificantes, é uma fraqueza te queixares a cada um e desejar que todos tenham dó de ti. Quando os remédios não ajudam, deves praticar a paciência e te entregar inteiramente nas mãos de Deus.

“Se conhecêssemos o grande tesouro escondido nas doenças, diz São Vicente de Paulo, as receberíamos tão alegremente como quando se recebem os maiores favores”

Esse Santo suportou, sem uma palavra de queixa, as mais violentas dores que lhe ocasionavam suas enfermidades contínuas, as quais eram tão grandes que, muitas vezes, não tinha descanso nem de dia, nem de noite, e, contudo, guardava sempre uma tal serenidade que parecia que nada tinha a sofrer. Oh! Como é edificante guardar sempre a tranquilidade e a resignação no tempo da doença, Era o que se dava com São Francisco de Sales, que, quando estava doente, expunha simplesmente seu estado ao médico, obedecia-lhe pontualmente, tomando todos os remédios prescritos, por mais repugnantes que fossem, e ficava então inteiramente tranquilo, sem se queixar de suas dores um instante só.

Que belo exemplo para aqueles que não cessam de queixar-se do menor mal-estar e que devem ter continuamente ao redor de si parentes e amigos para se compadecerem de seu estado.

“Aprendei a padecer por amor de Deus, dizia Santa Teresa, e não queirais que cada um o saiba” (Cam. da perf., c. 12)

Por uma graça especial do divino Salvador, o venerável Pe. Luis da Ponte foi uma vez, em sexta-feira santa, atacado por tantas dores corporais, que tinha de sofrer um tormento especial em cada parte de seu corpo. Isso comunicou a um de seus amigos, mas apenas o fez se arrepender tanto que fez o voto de nunca mais confiar a pessoa alguma o que tivesse te sofrer no futuro. Disse eu acima, por uma graça especial de Deus, porque os santos recebem as doenças o sofrimentos que Deus lhes envia como favores especiais de sua mão.

Alguns doentes clamam talvez em sua impaciência: Onde está a caridade? Vede como se esquecem de mim e me abandonam neste leito de dores! Pobres doentes! Eu vos lastimo não por causa de vossa doença, mas por causa de vossa falta de paciência, que vos torna duplamente doentes, a saber, no corpo e na alma. Os outros se esqueceram de vós, mas vós vos esquecestes de Jesus Cristo, que, abandonado por todos, morreu numa cruz por amor de vós. Por que vos queixais destes ou daqueles? queixai-vos de vós mesmos por terdes tão pouco amor a vosso divino Salvador e, por isso, tão pouca paciência.

A uma senhora piedosa, que sofria violentas dores, deram uma vez um crucifixo e aconselharam-na que pedisse ao Senhor que a libertasse de suas dores. A isso respondeu: Como podeis pretender que eu deseje descer da cruz, tendo nas mãos meu Salvador crucificado? Quero padecer de bom grado por amor daquele que, por amor de mim, quis padecer dores muito maiores que as minhas. Foi igualmente isso o que disse uma vez Jesus Cristo a Santa Teresa, achando-se ela doente e sentindo grandes dores. Ele apareceu-lhe coberto de chagas e disse-lhe:

“Contempla estas feridas, minha filha, nunca tuas dores serão tão grandes”

Por isso a Santa, quando padecia alguma enfermidade, costumava dizer:

“Quando eu considero de quantos modos padeceu o Salvador, Ele que era tão inocente, não sei como poderei me queixar de minhas dores”

“Muitos nunca se teriam santificado, se tivessem tido uma boa saúde”, diz Salviano

E, de fato, lemos dos santos que eles todos, com pequena exceção, estavam sujeitos a várias doenças. Por isso continua Salviano:

“Aqueles que se consagraram ao amor de Jesus Cristo são doentes e querem ser doentes”

Outros dizem: Eu não me queixo de estar doente, mas dói-me não poder ir à igreja, nem comungar, nem rezar e ser pesado aos outros. Permite-me que responda a cada uma dessas queixas em particular. Dize-me, por que desejas ir à igreja receber a santa comunhão? Para guardares a Deus, não é? Muito bem; mas se agora é do agrado de Deus que não vás à igreja e não comungues, mas que estejas presa a teu leito de dores, que motivo tens então para te lamentares? Ouve o que escreveu uma vez o bem-aventurado João d’Ávila a um sacerdote enfermo:

“Meu amigo, não penses agora no que havias de fazer se estivesses são, mas resigna-te em estar doente enquanto for isso agradável a Deus. Se buscas a vontade de Deus, que te importa estar doente ou não?”

São Francisco de Sales afirma que melhor se serve a Deus quando se padece do que quando se trabalha.

Dizes também que não podes rezar. Por que não? Concedo que não possas meditar; que te impede, porém, volvei tuas vistas a Jesus Crucificado e oferecer-Lhe as dores que sofres? Fazes a mais bela oração se, no meio de teus sofrimentos, te conformares com a vontade de Deus, unires tuas dores com os sofrimentos de Jesus Cristo e os ofertares em sacrifício a Deus. Assim procedia São Vicente de Paulo quando se achava gravemente doente. Transportava-se placidamente à presença de Deus e não se esforçava muito em fixar sua atenção em um ponto determinado, mas contentava-se com excitar, de tempos a tempos, um ato de amor, de confiança, de agradecimento ou resignação, principalmente quando seus sofrimentos aumentavam. São Francisco de Sales dizia:

“Quando se consideram as tribulações em si, causam elas assombro: consideradas, porém, em relação com a vontade de Deus, produzem alegria e contentamento” (Amor de Deus, 1. 9, c. 2)

Dizes, finalmente, que nesse estado não podes trabalhar e és pesado aos outros. Mas, como te submetes à vontade de Deus, deves supor o mesmo dos outros: eles veem que não é por tua culpa que te tornas a eles pesado, mas porque Deus assim o quer. Todos esses desejos e queixas não nascem do amor de Deus, mas do amor-próprio; queremos servir ao Senhor, não como Lhe apraz, mas como nos agrada.

Que tesouro de merecimentos não se podem adquirir só pela resignação na vontade de Deus durante o tempo da doença! O Pe. Baltasar Álvarez teve um dia a felicidade de ver a grande glória que Deus linha preparado a uma freira, em recompensa da sua paciência em suportar uma enfermidade. Ele afirma que essa piedosa religiosa recolheu maiores merecimentos nos oito meses de sua doença que outras religiosas fervorosas em vários anos. Com a paciência com que suporíamos as doenças e mal-estar merecemos uma grande recompensa e talvez a maior que Deus nos preparou no céu. Isso foi revelado a Santa Liduína. Apesar de todos os seus sofrimentos, nutria a Santa ainda o desejo de sofrer a morte de mártir. Sentindo ela uma vez um ardente desejo de receber essa graça, viu uma corôa sumamente brilhante mas ainda incompleta e conheceu que lhe estava destinada. Desejando, porém, que ela ficasse acabada, rogou a Deus que aumentasse seus sofrimentos. O Senhor a atendeu e enviou-lhe soldados que não só a acabrunharam com insultos, mas também a espancaram barbaramente. Logo depois apareceu-lhe um anjo com a corôa acabada e disse-lhe que seus últimos sofrimentos tinham acrescentado as pedras preciosas que ainda faltavam; pouco tempo depois deixou ela esta vida pela eterna.

Mui particularmente devem os doentes se conformar com a morte, se está próxima sua última hora, seja qual for a espécie de morte que Deus lhes envia. Afinal, que é a vida senão uma contínua tempestade, em que nos achamos continuamente em perigo de nos perder para sempre? São Luís Gonzaga, que morreu na flor da idade, recebeu alegremente a morte, dizendo:

“Agora acho-me, como espero, na graça de Deus; porque não sei o que acontecerá mais tarde comigo, quero morrer agora, se aprouver a Deus chamar-me desta vida”

Mas S. Luís foi um santo, dirás, e eu sou um pecador. Ouve o que te responde o Beato João d’Avila:

“Se nossa alma se achar em um estado mediocremente bom, devemos desejar a morte para escapar ao perigo de perder a graça de Deus, ao qual estamos aqui na terra incessantemente expostos. Oh! Quão desejável é obter a segurança, por meio da, morte, de que não se pode mais perder a Deus”

Mas até agora, dirás, não recolhi, ainda merecimento algum para minha alma: desejo viver mais tempo para poder fazer algum bem antes de morrer. Quem, porém, te diz que não te tornarás pior no futuro? Que não cairás em pecado mortal e te perderás para sempre? Aqui no mundo ninguém vive sem pecado, ao menos sem pecado venial. Dor isso diz São Bernardo:

“Por que desejas viver, visto que tanto mais pecamos quanto mais vivemos?” (Medit., c. 2)

Além disso, se amamos a Deus, devemos desejar vê-lO no céu face a face e amá-lO; se a morte, porém, nos abrir a porta, não podemos entrar na pátria feliz. Por essa razão exclamava Santo Agostinho, abrasado de amor para com Deus:

“Senhor, fazei que eu morra, para que chegue à vossa visão” (Sol. anim. ad Deum, c. 1)

IV. Da Paciência nas Injúrias e Perseguições

Outra ocasião de praticar a paciência nos oferecem as injúrias e perseguições a que, às vezes, estamos expostos. Não cometi falta alguma, dizes, por que deverei suportar pacientemente essa ofensa ou perseguição? Deus, certamente, não exige tanto! Mas não sabes o que Jesus Cristo respondeu a São Pedro Mártir, quando ele se queixava de ter sido encarcerado injustamente?

“Senhor, que mal fiz eu para ter de sofrer esta perseguição?”

Perguntava o Santo. E Jesus crucificado lhe respondeu:

“E que mal fiz eu para ser pregado nesta cruz?”

Se, depois, teu Salvador, alma cristã, por amor de ti, quis sofrer a morte, não é muito se tu, por amor dEle, receberes ultrajes. É verdade que Deus não quer o pecado daquele que te ofende ou persegue, mas Ele quer que suportes pacientemente, por amor dEle e para teu próprio bem, essas adversidades.

“Se não temos o defeito que nos atribuem, diz Santo Agostinho (In ps. 68, s.-1), temos, contudo, outros; temos os nossos pecados, que nos tornam merecedores não só desses castigos, mas de outros muito maiores”

Santa Teresa nos deixou em seus escritos a seguinte memorável máxima (Cam. da perf., c. 14):

“Quem tende à perfeição nunca deverá dizer: Fizeram-me uma injustiça. Se não quiseres levar nenhuma outra cruz além daquela que mereceste, a perfeição não é para ti”

Insultos e injúrias constituem a única alegria procurada pelos santos. São Filipe Néri suportou, durante trinta anos, em sua residência, na igreja de São Jerônimo, em Roma, muitíssimos maus tratos de um miserável; apesar disso, não queria abandonar esse lugar, não obstante os convites de seus filhos espirituais, que o queriam junto de si, em seu Oratório, recentemente fundado; afinal, só obrigado por uma ordem expressa do Papa consentiu em habitar com seus irmãos de Ordem.

Todos os santos tiveram de sofrer perseguições aqui na terra. São Basílio foi acusado de heresia junto ao Papa São Dámaso. São Cirilo de Alexandria foi condenado como herege em um Concílio de quarenta Bispos e deposto de seu Bispado. Santo Atanásio foi acusado de magia e São João Crisóstomo, de impureza. São Romualdo, depois de ter cem anos, foi acusado de um horrendo crime, de forma que se dizia que ele merecia ser queimado vivo. De São Francisco de Sales inventaram que ele tinha comércio ilícito com uma mulher, e essa calúnia pesou por muito tempo sobre ele; só depois de três anos é que veio à luz sua inocência. Entrou uma vez no quarto de Santa Liduína uma mulher, que começou a dirigir à santa as mais abomináveis palavras que imaginar se possam. Conservando Liduína a tranquilidade de costume, aquela miserável se enfureceu tanto que escarrou na face da santa; apesar disso, permaneceu ela inabalável em sua paciência.

Não pode ser de outra forma:

“Todos os que quiserem seguir a Jesus Cristo sofrerão perseguição”, como diz o Apóstolo (2 Tm 3, 12)

Portanto, se não quiseres sofrer perseguição, nota Santo Agostinho, é para temer que ainda não começastes a imitar a Jesus Cristo.

Quem foi mais inocente e santo do que nosso Salvador? Apesar disso, foram os homens tão longe na sua perseguição que O pregaram na cruz, na qual expirou, saturado de chagas e opróbrios.

Para nos ensinar a suportar pacientemente as perseguições, São Paulo nos exorta a pensar constantemente em nosso Salvador Crucificado. Estejamos convencidos que, se suportarmos com paciência todas as injúrias, Deus mesmo tomará a si nossa justificação; e se Ele permitir que levemos uma vida desprezada, o faz unicamente para recompensar com mais glória, no outro mundo, a nossa paciência.

Em uma palavra: humilhação, pobreza, dores, toda a espécie de tribulações são, para uma alma que não ama a Deus, uma ocasião para se afastar ainda mais dele; para uma alma, porém, que está cheia de amor de Deus, são elas uma razão para mais estreitamente se ligarem a Ele e mais perfeitamente amá-lO. “Muitas águas não puderam extinguir a caridade”, diz o Espírito Santo (Ct 8, 7); sim, as tribulações, por maiores e mais numerosas que sejam, não podem apagar, em um coração que nada mais ama além de Deus, a chama do amor, antes, pelo contrário, a avivam cada vez mais.

V. Da Paciência na Desolação Espiritual

Devemos, finalmente, praticar a paciência no desamparo espiritual. É este o sofrimento mais doloroso e atroz que pode atingir uma alma que ama a Deus. Quando um cristão piedoso goza de consolações espirituais, todas as injúrias, todas as dores, todas as perdas e perseguições são capazes de o perturbar; antes aumentam a alegria de seu coração por lhe darem ocasião de oferecer ao Senhor esses padecimentos e unir-se mais intimamente com Ele. Ao contrário, causa a uma alma que ama a Deus o mais atroz tormento não sentir mais em si nenhuma devoção, nenhum zelo, nenhum santo desejo, mas só frieza e aridez na oração e na santa comunhão. E, contudo, diz Santa Teresa que uma tal alma dá a Deus a mais segura prova de seu amor quando continua no seu caminho, sem nenhum estímulo sensível e até sentindo repugnância interna e tormento de espírito.

“O Senhor prova aqueles a quem ama por meio de secura de espírito e tentações”, diz a Santa (Vida, c. 11)

Achando-se uma vez a beata Ângela de Foligno em um tal estado, queixou-se ao Senhor de a ter abandonado.

“Não, minha filha, lhe respondeu o Senhor, amo-te, agora, mais que antes e tenho-te mais unida a mim do que nunca”

É um engano, diz São Francisco de Sales, querer medir a piedade segundo o grau de consolação que se sente no serviço de Deus. A verdadeira devoção, diz ele, consiste na firme vontade de fazer tudo o que agrada a Deus. Pela aridez espiritual une-se Deus mais intimamente com as almas que Ele ama de modo particular. O que nos, impede de unir-nos verdadeiramente a Deus é o apego às nossas inclinações desregradas; por isso, quando Deus quer levar uma alma a amá-lO com perfeição, procura libertá-la de todo o apego às coisas criadas. Para conseguir isso, priva-a, pouco a pouco, dos bens terrestres: riquezas, honras, parentes, saúde do corpo, etc. Envia-lhe toda a espécie de adversidades: desgostos, humilhações, perda de pessoas amadas, doenças, etc. São esses outros tantos meios de que Deus se serve para desprender as almas das criaturas, a fim de que lhe dedique todo o seu amor.

No começo da conversão, Deus concede algumas vezes à alma muitas consolações interiores, para lhe inspirar o desejo dos bens espirituais, e o comove tanto, que ela derrama uma torrente de lágrimas. Assim, a alma abandona, aos poucos, as criaturas e se entrega a Deus, ainda que mui imperfeitamente, desde que o faz mais em vista daquelas consolações do que para agradar a Deus. Mas ela, pelo contrário, julga amar tanto mais a Deus quanto mais gosto experimenta em seus exercícios de piedade. Quando, por isso, tem de deixar esses seus exercícios de predileção, para cumprir com as exigências da obediência ou da caridade ou, então, com seus deveres de estado, se exaspera e se entristece, e também quando não acha mais as mesmas consolações nesses exercícios, abandona-os ou, então, encurta-os cada vez mais, até que, afinal, não se incomoda mais com eles.

Isso se dá com muitas almas que Deus chama a um amor especial: trilham, no princípio, o caminho da perfeição, mas só enquanto acham nele consolações sensíveis; quando, porém, cessam os doces sentimentos, tornam-se negligentes e recomeçam o seu antigo modo de vida. É um defeito geral de nossa natureza corrompida que nós procuramos, em tudo o que fazemos, a nossa própria satisfação.

Por isso precisamos nos convencer que o amor de Deus ou a perfeição não consiste em doces sentimentos e consolações sensíveis, mas em vencer o amor-próprio e cumprir com a vontade de Deus.

Enquanto duram as consolações interiores, não é preciso muita virtude para se renunciar aos prazeres sensuais e suportar com paciência injúrias e adversidades. Uma alma, que é favorecida de Deus com aquele gozo sensível, suporta pacientemente tudo que lhe ocorre; mas sua paciência provém mais do atrativo daquelas consolações do que do verdadeiro amor de Deus.

Para que a alma se firme na virtude, afasta-se Deus dela para curá-la de seu amor-próprio, que se compraz naquelas doçuras. Assim, nos atos de oferecimento próprio, de confiança e de amor de Deus, acha frieza e desgosto em vez da antiga alegria com que os praticava; sente fastio em todos os exercícios de devoção, na oração, na leitura espiritual, até na santa comunhão; mais ainda: chega mesmo a encontrar trevas e aflições, e parece-lhe que, para si, to as ama e lhes prepara no céu um lugar onde encontrarão consolações perfeitas e eternas; quanto mais atribuladas viveram nesta terra, tanto mais consoladas serão no seio dos bem-aventurados, onde não cessarão de agradecer ao Senhor e dizer, com o salmista (SI 93, 19):

“Segundo as muitas dores que experimentou o meu coração, alegraram a minha alma as tuas consolações”

Santa Joana Francisca de Chantal sofreu durante quarenta anos toda a sorte de tribulações internas, principalmente tentações e o temor de se achar na desgraça de Deus e de estar abandonada por Ele. Seus padecimentos eram tantos e tão veementes, que ela dizia que só o pensamento da morte lhe podia trazer um alívio. Apesar disso, seu rosto estava, sempre alegre, mostrava-se sempre afável na conversação; sua vista eslava sempre voltada para Deus e ela descansava confiadamente no seio de sua santa vontade. São Francisco de Sales, que era seu diretor espiritual, e sabia perfeitamente com que agrado Deus a olhava, dizia que se dava com seu coração o mesmo que com um cantor surdo que, por mais bela que seja sua voz e seu canto, não encontra nisso nenhuma satisfação. Em uma de suas cartas à Santa, dá-lhe o seguinte conselho:

“Deveis mostrar uma fidelidade inabalável ao Senhor e só cuidar do cumprimento de sua santa vontade; deveis servi-lO não só sem consolação alguma, mas também no meio desse dilúvio de tristeza e aflição em que vos achais presentemente”

Todos os santos passaram a maior parte de sua vida em desolação espiritual e trevas.

“Oh! Que insensibilidade de coração não sinto eu, exclamava São Bernardo; não encontro mais gosto nem na leitura espiritual, nem na meditação, nem na oração vocal” (In Cant., s. 54)

Deus reserva o gozo que deve ser a nossa recompensa para a vida futura. A terra é um lugar de sofrimentos e de merecimentos; o céu é a mansão da recompensa e da alegria. Por isso os santos não procuravam nem desejavam, durante a sua peregrinação aqui na terra consolações sensíveis, mas fervor interior.

“É muito melhor combater contra as tentações e a aridez segundo a vontade de Deus, diz o Beato João d’Ávila, do que querer elevar-se à contemplação contra a vontade de Deus. Para dizer a verdade, segundo as experiências que fiz, conto pouco com as almas que nadam em consolações espirituais, se antes disso não passavam por tribulações internas, pois, muitas vezes, tais pessoas trilham o bom caminho enquanto dura a consolação, e abandonam tudo e entregam-se à tibieza, quando são provadas por aridez espiritual”

Talvez alguém me replique: Quero suportar essa tribulação se for a vontade de Deus que eu a sofra: o que me aflige, porém, é o pensamento de que essa desolação poderia ser um castigo de minha infidelidade para com Deus. Concedo que pode ser um castigo e, se pecaste por apego às criaturas, te asseguro que Deus, que é cioso dos corações dos que se dedicaram a seu serviço, se afastou com toda a razão de ti. Posto que seja um castigo, justo que te submetas a Ele. Não és o primeiro a afirmar que mereceste o inferno? Por que te queixas então? Podes exigir que Deus te cumule de consolações? Contenta-te, pois, com o tratamento que Deus te dá; abraça-O tranquilamente e procura afastar quanto antes a causa de teu desamparo interior; rompe com aquele amor às criaturas, com aquelas dissipações de espírito, com aquele desejo excessivo de ver, de falar, de ouvir, e oferece-te de novo inteiramente ao Senhor; então esquecerá Ele as tuas faltas e te receberá novamente em sua graça. Não deves, porém, exigir que Ele te faça sentir tuas antigas consolações; suplica-Lhe unicamente que te conceda a força de Lhe permaneceres sempre fiel e convence-te que Deus permite que nos sobrevenha essa desolação espiritual unicamente para nosso bem e para provar o nosso amor.

Nosso Senhor revelou a Santa Gertrudes que Ele ama extremamente as almas que O servem à própria custa, isto é, em secura espiritual e sem consolação sensível.

Mostramos menos amor seguindo alguém que nos acaricia, do que seguindo a um outro que se retrai de nós. Ouçamos as consoladoras palavras de São Bernardo:

“Não receies, alma amante de Deus, se teu divino Esposo te esconde sua face por algum tempo; isso é unicamente para teu bem. Ele se retrai para assegurar melhor tua felicidade, para que a abundância de suas graças não te leve a desprezar teu próximo e a te julgar melhor do que os outros. Ele o faz também para que O desejes com maior ânsia e O busques com maior fervor” (Scal. claust., c. 8)

Deverias, pois, perseverar em todos os teus serviços de piedade, ainda que tivesses com isso de sofrer uma agonia mortal; muito mais atroz foi a agonia que teve de sofrer teu divino Salvador no jardim de Getsêmani, quando se preparava para sua dolorosa paixão e suplicava por ti.

“E, posto em agonia, orava com mais insistência”

Não cesses jamais de procurar a teu Jesus; Ele não tardará a vir a ti para te consolar. Se, porém, não te der nenhum sinal de seu amor, contenta-te com a coragem e força que te der, para O amares sem o atrativo de suas consolações. Deus prefere o amor forte ao carinhoso.

VI. Alguns avisos a respeito do Exercício da Paciência

Concluímos com alguns avisos práticos, que devem mostrar como se pode praticar e conservar a paciência em todas as provações possíveis.

Santo Tomás diz que, para se submeter generosamente às tribulações, é muito útil representá-las antes que se sucedam e preparar-se para elas. Daí a exortação de Jesus Cristo a seus discípulos:

“Vós haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 10, 38)

A razão disso é clara: se prevemos um sofrimento e propomo-nos suportá-lo pacientemente, não nos parece mais um mal, mas um bem, em relação com a vida eterna, e isso nos tira o receio e o medo que os sofrimentos costumam incutir. Assim praticaram os santos: abraçavam antecipadamente a cruz e estavam assim preparados para suportá-los pacientemente, quando lhes sobrevinham inesperadamente.

Por isso deves te acostumar, alma cristã, a abraçar na oração todas as tribulações que provavelmente te sobrevirão. Deves te oferecer sem restrição a Jesus Cristo e estar sempre pronta a suportar contradições, doenças, escrúpulos e desamparo espiritual; com o cinzel da tribulação e, em particular, dos sofrimentos internos, que são os mais dolorosos, esculpe Deus as imagens que deverão um dia ornar o seu paraíso.

Quando a adversidade que tens a suportar parece exceder às tuas forças, pede ao Senhor que te auxilie e confia firmemente que Ele te assistirá; dize muitas vezes com o Apóstolo:

“Tudo posso naquele, que me conforta” (Fl 4, 13)

Fazendo assim, a oração certamente te procurará a força que te falta. Onde hauriram os mártires a coragem para suportar pacientemente tantos tormentos e uma morte tão ultrajante? Onde mais, senão na oração? Nosso Senhor mesmo nos diz:

“Invoca-me no dia da tribulação e eu te salvarei e tu me louvarás” (SI 49, 15)

Se uma alma se recomenda a Deus, Ele a livrará do mal que sofre ou lhe concederá a graça de suportá-lo com paciência, dando assim grande glória ao Senhor. Santo Inácio dizia que a maior tribulação que lhe poderia suceder neste mundo seria a dissolução de sua Companhia; apesar disso, esperava que um quarto de hora de oração, em tal caso, lhe bastaria para se tranquilizar inteiramente.

Além disso, deves receber mais vezes a santa comunhão no tempo da tribulação. Pela frequente recepção da santa comunhão se preparavam os primeiros cristãos, no tempo das perseguições, para o martírio.

Não deixes igualmente de consultar repetidas vezes teu confessor ou outra pessoa experimentada na vida espiritual; uma palavra de animação te poderá auxiliar poderosamente a carregar com paciência a tua cruz. Não descubras, porém, teus sofrimentos a uma pessoa imperfeita; uma tal poderia te inquietar ainda mais e perturbar-te, principalmente se se tratar de uma injúria ou de uma perseguição de que és atualmente o objeto.

Quanto ao objeto de tua oração mental, medita, no tempo da adversidade, particularmente sobre a paixão de Cristo: a vista do divino Salvador padecendo por amor de nós exerce um grande império sobre nossos corações. Se na meditação da dolorosa paixão receberes de teu Senhor algum sinal de amor, deves te mostrar grato por isso; mas se não sentires nenhuma devoção, deves ficar convencido que receberás por isso abundantes graças. Seguindo o exemplo de Santa Teresa, transporta-te com predileção ao jardim do Getsêmani, onde encontrarás a Jesus abandonado por todos; considera-O sob a pressão daquela tristeza extrema, que Lhe ocasionou uma agonia mortal e suor de sangue e O levou a confessar que sua tristeza bastava para fazê-lO morrer; certamente carregarás mais facilmente tua cruz ponderando que Jesus padece tudo isso por teu amor. E se considerares como Ele se dispõe a suportar a morte por ti, prepara-te também a morrer por amor dEle. Quando tua desolação e aflição atingir o último grau, dize então, com o Apóstolo São Tomé:

“Vamos nós também para morrer com ele” (Jo 11, 16)

Transporta-te também, em espírito, ao Calvário, onde verás teu Salvador, consumido de dores, entregar seu espírito; a essa vista cobrarás ânimo necessariamente para suportar de boa mente todos os sofrimentos de um Deus que morre por amor de ti.

Se temes que Deus te abandone, em vista de tua ingratidão, imita o exemplo dos dois discípulos aos quais Jesus apareceu no caminho de Emaús sob a forma de um forasteiro. Ao chegarem perto da aldeia, fingiu Jesus que seguia para diante, mas eles O obrigaram e disseram-Lhe:

“Fica conosco, porque já começa a escurecer o dia a inclinar-se” (Lc 24, 28)

Ele entrou em sua casa. Do mesmo modo deves também tu obrigar a Jesus a ficar contigo, quando te parecer que Ele te vai abandonar, dizendo-Lhe:

Ó meu Jesus, ficai comigo, não Vos afasteis de mim; se me deixardes, a quem irei para achar consolação e auxílio? “Senhor, para quem iremos?” (Jo 6, 69)

Continua a importunar dessa maneira ao Senhor com amor e confiança e não percas a coragem: Ele não te abandonará de forma alguma.

Finalmente, repito mais uma vez: recorre à oração, volta-te para o divino Salvador no Santíssimo Sacramento do altar e suplica-Lhe a graça de te conformares em tudo com sua santíssima vontade. Ele prometeu consolar todos os aflitos que recorrerem a Ele. Não deixes igualmente de refugiar-te junto a Maria, quando perturbações internas e desamparo espiritual te visitarem; pois ela foi designada por Deus para ser a consoladora dos aflitos.

VII. A Abnegação e o Amor da Cruz no Redentor

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

Para se compreender o que foram no Salvador a abnegação e o amor da cruz, seria necessário poder medir a ardente caridade que abrasava o seu coração por seu Pai e pelas almas.

Toda a sua vida foi um ato ininterrupto do amor mais puro, mais perfeito, mais intenso; foi, pois, a abnegação completa sem nenhum retorno a si próprio. Não seguia os seus gostos em coisa alguma: Christus non sibi placuit (Rm 15, 3). Nele não havia vontade própria; a única regra da sua vida era a vontade do Pai. Em tudo e sempre se inspirava unicamente na vontade e beneplácito do Pai. Ego quae placita sunt ei facio semper (Jo 8, 29). Era o seu alimento, a sua vida. A glória de seu Pai e a salvação das almas: eis o seu único fim, sua única preocupação, o tudo da sua vida.

E essa abnegação completa, esse devotamento absoluto de Si próprio, Jesus os levará ao mais ardente amor da cruz. Será o homem das dores. Desde a sua entrada no mundo até ao seu derradeiro suspiro, do presépio à cruz, em Belém, no Egito, em Nazaré, em Jerusalém, em toda a sua vida é uma imolação dolorosa. Triturado em seu corpo pelos mais atrozes suplícios; contundido em seu coração pelos desprezos e pelas blasfêmias dum povo ingrato, pela fraqueza e abandono dos seus apóstolos, beberá até às fezes o cálice do sofrimento e tragar-lhe-á toda a amargura. Sofre a vida inteira pela apreensão de todas as torturas da sua Paixão: Dolor meus in conspectu meo semper (SI 37, 18).

E com que ardoroso amor suspira pelo momento em que poderá dar o seu sangue até à última gota pela glória de seu Pai e pela salvação do mundo! Devo ser batizado, disse ele, pelo batismo do meu sangue e desejo ardentemente vê-lo realizado (Lc 12, 50).

Com que indignação repele a Pedro, que ousa propor-Lhe se subtraia ao sofrimento que O aguarda.

“Retira-te, Satanás, és-me um escândalo, porque não sabes as coisas de Deus; só tens pensamentos humanos”

Através da malícia dos homens que Lhe preparam essas torturas, contempla a vontade de seu Pai, em cuja execução está toda a alegria do seu amor.

“Poderia eu não beber o cálice que meu Pai me apresenta?”

É com efeito, o bom Pastor das almas, o qual sabe amar as suas ovelhas até ao sacrifício de sua vida.

A passo de gigante caminha na via dolorosa: Exsultavit ut gigas ad currendam viam. Entrando nela, exulta ao pensamento da glória que vai proporcionar a seu Pai:

“Não quisestes os vãos sacrifícios dos homens e rejeitastes as suas oferendas desagradáveis a vossos olhos. Mas, para terdes uma vítima digna de todos os altares, preparastes-me um corpo: eis-me pronto a vo-lo imolar e a oferecer-vos o único sacrifício que possa honrar o vosso nome” (Hb 10, 5)

Procurai a Jesus, diz São Bernardo, só o achareis na cruz. Eis como Ele ama a seu Pai e eis como Ele nos ama.

VIII. A Prática da Paciência

Oração. Na oração, contemplando os últimos fins do homem, seja que considere o rigor dos juízos de Deus e a grandeza dos tormentos infligidos pela divina justiça aos réprobos, seja que medite os esplendores do céu e as delícias que inebriam os eleitos, a alma se recordará da palavra de Jesus Cristo:

“Quem ama a sua vida, perdê-la-á; e quem odeia a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12, 25)

E ela se animará a esquecer-se, para se ocupar somente de Deus.

Comprazer-se-á, sobretudo em contemplar a abnegação e o amor da cruz no Salvador. Conservar-se-á recolhida e atenta ao pé do presépio, em que Deus feito menino repousa sobre um pouco de palha, num estábulo aberto a todos os ventos; ao pé da cruz onde saturado de amarguras, Ele agoniza num oceano de torturas; ao pé do tabernáculo, onde, mais aniquilado ainda do que em Belém e no Gólgota, Ele vive de amor e de humilhações. À vista dessa pessoa divina a levar até esse ponto o esquecimento de Si próprio e a saciar-Se de sofrimentos para a glória de seu Pai e para a nossa salvação; ouvindo-o repetir a palavra do Evangelho: Si quis vult venire post me abneget semetipsum et tollat crucem suam et sequatur me; ou ainda a palavra do apóstolo: Pro omnibus mortuus est Christus ut et ii qui vivunt jam non sibi vivant sed ei qui pro ipsis mortuus est… exclamará com São Paulo:

“A caridade de Cristo me constrange… é preciso que ele reine… É preciso que lhe pague amor com amor e que por minha vez me sacrifique para lhe ganhar corações. E já que é pela cruz que as almas devem ser conquistadas para Deus e santificadas, a exemplo de Jesus quero generosamente carregar a cruz”

Compreenderá a indignidade do egoísmo num apóstolo cumulado de favores por Jesus Cristo e pedirá perdão da sua ingratidão e negligência. Mas, reconhecendo a sua fraqueza e incapacidade em seguir a Jesus nessa via sublime, protestará não querer senão o apoio divino, no qual deposita toda a sua confiança. Contando com a graça divina que solicitará com fervor, fará um ato generoso do coração; dirá com sinceridade a palavra divina:

Eu em nada — Vós em tudo, ó meu Deus

Ato interior. Ó Jesus, renunciando-Vos sempre e imolando-Vos sobre a cruz para a glória de Vosso Pai e para a nossa salvação, para a minha em particular, mereceis todo o amor do meu coração e mo pedis: eu vo-lo dou e, abnegando-me, não quero mais viver senão para Vós que tanto me tendes amado. Mandais que conVosco e como Vós me dedique à obra da Redenção e me apresentais a Vossa cruz, único meio de salvação e santificação. ConVosco a abraço, ó Jesus, e quero carregá-la generosamente; conVosco e como Vós quero sacrificar-me e alegrar-me nas humilhações e nos desprezos, nas privações e nos opróbrios valentemente aceitos e oferecidos a Vós e a Vosso Pai celeste para as almas. Quero morrer a mim mesmo e só viver para Vós. Renuncio particularmente a tal ou tal satisfação procurada por meu amor próprio, e abraço de boa vontade tal sofrimento ou contrariedade que Lhe causa horror, e que a Vossa Providência Lhe apresenta ou que Lhe quero impor por mim mesmo. Sede o objeto de todos os meus pensamentos e de todos os meus afetos. Mas sou tão fraco; a cada instante o meu egoísmo quer levantar-se para afastar o sofrimento e saciar as suas satisfações; tende piedade de mim, Jesus; dai-me a força de ser-Vos fiel e de me chegar sempre mais à Vossa cruz.

Ó Maria, ore por mim; ajudai-me a abnegar-me e a sacrificar-me constantemente por Jesus e pelas almas.

Durante o dia.

Recolhimento. — Esforçando-se por se conservar unida a Deus por um recolhimento contínuo, a alma multiplicará as orações jaculatórias impregnadas do espírito de abnegação e de amor da cruz:

Vós só, ó meu Deus!…

Tudo por Vós, ó Jesus, e pelas almas…

E as súplicas ardentes para obter esse espírito:

Fazei, ó Jesus, que me abnegue e saiba sofrer e morrer por Vós…

De tempo em tempo renovará o ato interior mais completa e explicitamente, aplicando-o a tal ou tal caso particular.

Exercícios de piedade. — O religioso fiel os fará com fervor, cultivando com cuidado particular os louvores e as ações de graças; pedindo todas as graças que lhe são necessárias, especialmente a abnegação e o amor da cruz, suplicará com mais ardor ainda a difusão do reino de Deus e a glória do seu nome.

Atividade. — Esforçar-se-á por elevar-se a Deus antes de cada uma das suas ações principais pela pureza perfeita de intenção, consagrando à obra da Redenção os seus pensamentos, os seus afetos, o seu trabalho, os seus sofrimentos, numa palavra, toda a sua vida.

Exercícios de virtude. — Aceitar generosamente as contrariedades e os sofrimentos enviados pela Providência; prevê-los, se possível, e submeter-se a eles de antemão; pedir o auxílio divino para o momento oportuno.

Indagar as satisfações reclamadas pelo eu e nas quais se compraz: renunciar-lhes e impor-se alguns sacrifícios voluntários contrários a essas satisfações.

Examinar quais as cruzes que o amor-próprio mais teme e às quais se quisera subtrair, e entregar-se a elas com predileção.

Penitência. — No exercício da penitência e depois de cada falta arrepender-se perfeitamente sob a inspiração do amor; nos desfalecimentos deplorar antes e, sobretudo o mal de Deus. Saber dizer:

Aceito, meu Deus, a humilhação que vem das minhas faltas e deploro mais a pena que Vos causei do que o mal que me fiz a mim mesmo.

Praticar os exercícios ordinários de penitência, cilício, disciplina, etc., com mais fervor que nunca e para obra da Redenção.

IX. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Eis, por fim, algumas orações de Santo Afonso para crescermos na Oração.

Oração para obter a paciência

Sei, Senhor, e persuadido estou, que sem sofrer, e sofrer com paciência, não posso obter a corôa que me destinais no paraíso. Mas digo com Davi: De vós é que espero a paciência de que preciso. Facilmente tomo a resolução de receber em paz todas as tribulações; mas apenas chegam, entristeço-me e desanimo; e se as sofro, é sem amor e nenhum merecimento, porque não as sofro com tenção de Vos agradar. Ah! Meu Jesus, pelos merecimentos da Vossa paciência em sofrer tantas penas por mim, concedei-me a graça de sofrer todas as cruzes por Vós. Amo-Vos de todo o coração, ó meu terno Redentor; amo-Vos, meu soberano bem, amo-Vos, meu amor, digno de infinito amor. Do íntimo da alma me arrependo de Vos haver desagradado. Prometo-Vos receber com paciência todas as penas que me enviardes; mas de Vós espero conseguir o socorro necessário para pôr em obra esta resolução, sobretudo para suportar com calma e resignação todas as dores da minha agonia e morte.

Ato de Resignação

Aqui estou, ó meu Deus, aqui estou preparado para tomar aos ombros todas as cruzes que me derdes a levar. Não, não quero fruir doçuras nem prazeres nesta vida: não é digno de favores quem Vos tanto ofendeu e mereceu o inferno. Pronto estou para sofrer todas as doenças e contrariedades que me enviardes; pronto para abraçar todos os desprezos dos homens, consinto, se este é o Vosso beneplácito, em ficar privado de toda a consolação corporal e espiritual, contanto que Vos possa sempre amar.

Oração a Maria

Doce soberana, inocente criatura, vós sofrestes com tanta paciência; e eu, que mereci o inferno, recusarei sofrer? Não, minha Mãe, a graça que vos peço hoje é não ser isento de cruzes, mas levá-las com paciência. Pelo amor de Jesus, obtende-me de Deus esta graça, que vos suplico: de vós é que a espero.

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(OMER C.SS.R., Padre Saint. Escola da Perfeição Cristã para Seculares e Religiosos: Obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja. Editora Vozes, 1955, p. 290-307)

(AZEVEDO C.SS.R., Padre Oscar das Chagas. As Doze Virtudes para cada Mês do Ano. Editora Vozes, p. 244-259)

(OMER C.SS.R., Padre Saint. As Mais Belas Orações de Santo Afonso: Edição atualizada e acrescida de novos exercícios e orações. Editora Vozes, 1961, p. 313-315)