Desta última palavra e da morte de Cristo, que depois dela se seguiu, vamos, segundo o nosso costume, colher alguns frutos. Em primeiro lugar vejo, que de uma coisa que parece não poder indicar senão muita fraqueza e muita estultícia, se demonstra o poder, a sabedoria e a caridade de Deus no grau o mais subido, pois no grande brado, com que expirou, bem se deixa ver o Seu poder, e daqui se colige que Ele podia deixar de morrer, e que morreu, porque assim o quis. Os que morrem naturalmente vão pouco a pouco perdendo as forças e a voz, não podendo gritar na última respiração; foi por isto que o centurião, vendo que Jesus depois de ter derramado tanto sangue, expirara, bradando fortemente, disse não sem motivo:
“Na verdade este homem era filho de Deus” (Mc 15)
Grande Senhor é Cristo, que, mesmo estando para expirar, mostra o Seu poder não só com o grande brado que deu no último suspiro, mas até abalando a Terra, fendendo os rochedos, abrindo os sepulcros, e rasgando o véu do templo, o que tudo o Evangelista diz, que sucedem na Sua morte (Mt 26). Acresce, que tudo isto não deixa de ser misterioso, no que também se mostra a sabedoria de Cristo, pois o abalo da Terra, e o fendimento dos rochedos significavam que pela Sua Paixão e Morte os homens se deviam demover à penitência, e que se deviam mesmo rasgar os corações dos obstinados, o que São Lucas diz que acontecera naquela mesma ocasião, contando que muitos, que assistiram a este espetáculo, se retiravam, batendo nos peitos (Lc 23). O abrimento dos sepulcros designava a ressurreição dos mortos, gloriosa por virtude da morte de Cristo. O rasgamento do véu do templo, que pôs a descoberto o Sancta Sanctorum, foi sinal de que por merecimento daquela morte se havia de abrir o Santuário do Céu, onde em seguida haviam de serem admitidos todos os Santos, a verem a face de Deus. Não foi só na significação destes mistérios, que Cristo mostrou a Sua sabedoria, mas também a mostrou em produzir da morte a vida, para figura do que Moisés fez brotar água de uma penha (Nm 20), e pelo mesmo motivo o mesmo Cristo Se comparou com o grão de trigo, que morrendo, produz muito fruto (Jo 12), pois assim como aquele grão, corrompendo-se, germina uma viçosa espiga,
também Cristo, morrendo na Cruz, deu à multidão das nações a vida da graça, e tão claramente, que mais não pode ser, São Pedro diz de Cristo:
“Engolindo a morte, para nos fazer herdeiros da vida eterna” (1Pd 2)
Como querendo dizer:
«O primeiro homem, engolindo o doce pomo vedado, fez escrava da morte toda a sua posteridade; o segundo homem, engolindo o amargosíssimo pomo da morte, conduziu à vida eterna todos os que dEle renascem»
Mostrou finalmente Deus a Sua sabedoria, morrendo, porque fez que o patíbulo da Cruz, o mais infamante e horrível daquele tempo, se convertesse em honrosíssimo e glorioso, de modo que os mesmos Reis se ufanam da honra de o trazerem na cabeça, e não se tornou só honroso, mas até aprazível e amável para os que tem amor a Cristo, pelo que a Igreja canta:
«Amável madeiro, amáveis cravos, amável peso sustentou»
E isto mesmo provou com o seu exemplo Santo André, que olhando para a Cruz, em que ia ser crucificado, disse:
«Salve, Cruz preciosa, que foste honrada pelos membros de Cristo, desejada há muito, procurada com diligência, amada sem interrupção, e já preparada para o desejo da minha alma, confiado e contente, a ti me dirijo, e tu, exultando, me recebas como discípulo de Cristo, meu mestre, que em ti pendeu»
E que diremos da caridade? Do Senhor é esta sentença:
“Ninguém pode dar maior prova de amizade do que sacrificando a vida pelos sem amigos” (Jo 15)
Foi o que Cristo fez na Cruz, porque, se Ele não quisesse morrer, ninguém podia obrigá-lO a isso. A minha vida ninguém me tira, sou eu mesmo que a sacrifico, diz Ele próprio (Jo 8), e por isso mesmo ninguém pode dar maior prova de amizade, do que dando a vida pelos seus amigos, porque nada há nem mais desejável, nem de maior preço, que a vida, por ser ela a base de todos os bens. De que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma (isto é a sua vida), diz o mesmo Senhor (Mt 16). Daqui vem que tudo resiste quanto pode, e mais do que pode, pretende resistir a quem lhe quer tirar a vida, e por isto lemos no livro de Jó :
“Pele por pele dará o homem, e tudo quanto tem, para salvar a sua (vida)” (Jó 2)
Porém isto são generalidades, passemos a especialidades. Cristo, morrendo na Cruz, mostrou inefavelmente por muitos modos a Sua caridade com o gênero humano, e com cada um de nós. Em primeiro lugar a Sua vida era a mais preciosa das vidas, porque era a vida do Homem Deus, a vida do Rei, o mais poderoso dos Reis, a vida do mais Sábio dos Sábios, a vida do mais Virtuoso dos Virtuosos. Além disso, sacrificou a Sua vida pelos Seus inimigos, pelos malvados e pelos ingratos, de mais a sacrificou para, à custa do Seu precioso sangue, livrar do fogo do inferno, a que já estavam condenados aqueles Seus inimigos, malvados e ingratos. Sacrificou finalmente a Sua vida, para fazê-los Seus irmãos, e torná-los coerdeiros do Reino dos Céus com o gozo da maior felicidade e sem limite nenhum de duração. E haverá ainda alguém tão duro, tão bravio, que não ame Jesus Cristo de todo o seu coração, e que em seu serviço não suporte qualquer adversidade? Coração tão de pedra e tão de ferro Deus o desvie não só dos nossos irmãos, mas de todos os homens, mesmo dos infiéis e dos ateus.
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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 258-264)