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Do primeiro fruto da quarta palavra

Capítulo 14: Do primeiro fruto da quarta palavra
Explicamos brevemente o que, quanto à Historia, diz respeito à quarta palavra. Agora a primeira consideração, que se nos oferece, para da árvore da cruz colhermos alguns frutos, é a de ter Cristo querido esgotar o cálice da Paixão completamente todo até a última gota. Tinha de estar na Cruz três horas, da 6ª até à 9ª, nela esteve três horas inteiras completas e mais que completas; pois foi crucificado antes da 6ª e expirou depois da 9ª, como se prova com o seguinte argumento: O eclipse começou à hora 6ª, como dizem três Evangelistas, São Mateus, São Marcos, e São Lucas; e expressamente São Marcos:

“E chegada a hora de Sexta, se cobriu toda a Terra de trevas até a hora de Nona” (Mc 15)

E três das sete palavras do Senhor, proferidas na cruz, foram-no antes de começarem as trevas, e antes da hora sexta; e as quatro últimas, depois das trevas e por isso mesmo depois da hora 9ª. São Marcos, porém, ainda com mais clareza explica tudo, dizendo:

“Era a hora de Terça, quando o crucificaram”

E depois acrescenta:

“E chegada a hora de Sexta converteu-se o dia em trevas”

Quando diz que o Senhor foi crucificado na hora de terça, quer dizer, que esta hora ainda não estava completa, e por isso, que ainda não tinha começado a de sexta; pois São Marcos exprime-se pelas horas principais, e cada uma delas contém três horas ordinárias, e é segundo este modo de contar o tempo (Mt 20), que o Pai de família convidou trabalhadores para a vinha na hora 1ª, 3ª, 6ª, 9ª e 11ª; é, que nós designamos as horas Canônicas por Prima, Terça, Nona e Vésperas, que é a undécima. Por isto em São Marcos se lê, que o Senhor foi crucificado na hora de Terça, porque ainda não tinha começado a de Sexta.

Quis o Senhor beber o cálice da Paixão, completamente cheio, a transbordar, para nós aprendermos a gostar do cálice amargo da penitência e dos trabalhos; e a não nos deleitarmos com o cálice dos prazeres e delícias do mundo. Nós, segundo os apetites da carne, e do século, desejamos pequenas penitências e grandes indulgências, pouco trabalho e muito regalo, pequena reza e muita palestra, mas na verdade não sabemos o que havemos de pedir; pois segundo a exortação do Apóstolo aos Coríntios:

“Cada um receberá a sua recompensa segundo o seu trabalho, e não será coroado senão o que combater conforme a Lei” (1Cor 3)

A felicidade sempiterna mereceria sem dúvida um trabalho sempiterno para ela se conseguir; porém, porque, se fosse necessário um trabalho assim nunca chegaria a consegui-la; satisfez-se o Senhor de piedade com que somente nesta vida que foge como sombra, cada um de nós segundo as suas forças, se empenhe na prática de boas obras e em seu serviço, por isso não tem coração, não pensam, não raciocinam, não são moços, mas crianças, os que passam esta curta vida no ócio, e o que muito pior, é ainda, pecando gravemente e provocando a ira de Deus. Pois, se convém que Cristo padecesse e assim entrasse na Sua glória (Lc 24, 26), como havemos nós, passando a vida em divertimentos e estragando o tempo nos deleites da carne, ser participantes da glória que não é nossa? Se o Evangelho fosse muito escuro e não pudesse interpretar-se ou entender-se sem grande dificuldade, talvez tivéssemos alguma desculpa, mas ele está tão explicado pelo seu Autor com o exemplo da Sua própria vida, que até para os cegos é claro; e não só o temos explicado por Cristo, mas são tantos os comentários que explanam o seu sentido, quantos são os Apóstolos, Mártires, Confessores, Virgens, e finalmente os Santos, cujos louvores e triunfos todos os dias celebramos. Todos eles, clamando, nos estão dizendo que as portas do Céu não se abrem com a chave de muitos deleites, mas como a de muitas tribulações (At 14).


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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 140-144)