Capítulo XLIV
Nos ergo diligamus Deum, quoniam Deus prior dilexit nos – “Amemos pois a Deus, porque Deus nos amou primeiro” (1Jo 4, 19)
Deus ama-nos: não o podemos duvidar depois de tudo o que ele fez por nós. Ama-nos com a mais viva ternura e como se fôramos necessários à sua felicidade: ama-nos, apesar das nossas ingratidões, apesar das nossas misérias; ama-nos e quer de nós ser amado.
“Meu filho, diz ele a cada homem em particular, meu filho, tu a quem eu criei, a quem eu remi, a quem eu acumulei de benefícios, dá-me o teu coração; uma só coisa te peço: que me ames”
Mas não contente com nos incitar a ama-lo pela multidão de seus benefícios, não contente com atrair-nos ao seu amor pelas mais doces expressões, Ele nos ordena expressamente:
“Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”
Ó meu Deus! o que sou eu para vós, e em que sou digno para que me man¬deis amar-vos? E não obstante vós mandais-mo: se não cumpro, vossa cólera inflama-se contra mim, e ameaçais-me com terríveis misérias, como se, ai! não fora uma já bem grande o não amar-vos!
Feliz, mil vezes feliz a alma que pode com verdade dizer: Amo ao meu Deus, ele é meu e eu sou dele! Feliz, mil vezes feliz a alma que possui o tesouro do amor de Deus! Oh! Precioso tesouro, em comparação do qual são nada todos os tesouros de mil milhões de mundos! Quem o não possui faça todos os esforços por conquista-lo: e quem o possui ponha todos os seus cuidados em o conservar e aumentai. Eis aqui os meios mais úteis e mais próprios para chegar a estes dois fins tão desejáveis.
I. Consiste o primeiro meio em nos desprendermos das afeições terrestres, porque em coração cheio da terra não pode encontrar lugar o amor de Deus. Se pois desejamos ter o coração cheio do amor divino, devemo-nos esforçai1 por desapega-lo de todos os objetos terrenos, porque quanto mais amamos as criaturas, tanto menos amamos o Criador. Imitemos o belo exemplo do apóstolo São Paulo que “por ganhar o amor de Jesus Cristo, desprezava como esterco todos os bens deste mundo”. Peçamos ao Espírito Santo nos inflame do seu puro amor, porque então também nós desprezaremos como vaidade, esterco e lodo, as riquezas, as honras e as dignidades deste mundo, pelas quais a maior parte dos homens se perdem miseravelmente.
Depois que um cristão recebeu em seu coração o precioso deposito do amor de Deus, nenhum caso faz mais do que o mundo estima. Para ele, o amor de Deus é tudo; e, segundo a linguagem da Escritura, “quando mesmo ele desse todas as riquezas de sua casa para adquiri-lo, despreza-las-ia como se nada houvera dado”; o preço do amor de Deus lhe parece infinitamente acima de todo o objeto criado! Ó Jesus, meu Salvador! ponde, eu vos suplico, em meu pobre coração um amor por vós tão puro, tão vivo, tão terno, que nada no mundo me possa agradar senão vós só. Fazei-me compreender que só estou na terra para amar-vos, e que nenhuma criatura deve possuir a mínima parte deste coração que só para vós criastes. Fazei-me compreender quanto sois amável, ó doce Jesus! que então amar-vos-ei de toda a minha alma; mais do que a mim mesmo, mais que a todo o mundo; amar-vos-ei a vós só e sem partilha; amar-vos-ei e trabalharei com ardor em vos fazer amar; amar-vos-ei desde agora e para todo o sempre.
Um cristão que verdadeiramente ama a Deus faz todos os esforços para amar só a ele. Sabe que, segundo a expressão da Escritura, ele é um Deus cioso; que não pode sofrer, no coração que o ama, rival algum; que quer possuir esse coração todo; e aplica-se a arrancar de sua alma até as mínimas raízes de uma afeição que não seja de Deus e por Deus. — Mas, objetará talvez alguém, não pede Deus demasiado exigindo que uma alma nada mais ame que a ele, e só a ele? Não, responde São Boaventura; porque uma bondade, uma amabilidade in¬finitas, um Deus digno de amor infinito, pode com toda a justiça exigir que ele seja só e o único objeto de amor de um coração que somente foi criado para o amar; pode exigir ser ele unicamente amado deste coração, pois para obter este amor fez tudo por ele, e que, segundo a expressão de São Bernardo, sacrificou-se inteiramente por ele.
Não, Deus meu, não, vós não exigis nada de mais pedindo-me o coração. Eu vo-lo dou sem reserva e para sempre; dignai-vos aceitar esta homenagem.
Ai! Que eu não possa oferecer-vos senão um coração tão duro, tão insensível, tão carecido de tudo e tão miserável! Tornai-o digno de vós, pois que ele agora vos pertence; derramai nele algumas de vossas graças especiais, ou antes, vinde vós mesmo estabelecer nele vossa morada. Sim, meu doce Jesus! vinde, vinde: este pobre coração por vós espera; arde do desejo de vos ansiar e de vos amar só a vós; suspira por vossa doce presença: só quer o vosso amor, porque o amor das criaturas nunca o pode satisfazer. Ah! Por quem sois, vinde, vinde!
Feliz a alma que chegou a tal grau de amor de Deus, que nenhum repouso pode achar em tudo o que não é Deus! Se ai queremos chegar, é preciso abstermo-nos de pôr nossa afeição nas criaturas, com receio de que elas não vão tirar a Deus parte do amor que ele quer todo para si. Ora bem que estas afeições sejam honestas, como o são as que temos a nossos parentes e amigos, é preciso pôr atenção no que diz São Filipe Neri:
“Quanto amor concedemos à criatura, tanto tiramos a Deus”
Quando pois alguma criatura quer entrar em nosso coração para dele tomar posse, devemos recusar-lhe absolutamente a entrada; para o que voltemo-nos para Jesus Cristo e digamos-lhe:
“Meu Jesus, vós só me bastais; quero amar só a vós, ó meu Deus! Só vós sereis o único Senhor do meu coração, o meu único amor”
Oh! Que felicidade, quando chegarmos a desprender-nos de toda a criatura! Peçamos ao Senhor que nos faça o dom do seu puro amor, porque, segundo a expressão de São Francisco de Sales, o puro amor de Deus consome em nós tudo o que não é Deus, e muda todas as coisas nele. Peçamos-lhe que purifique o nosso coração de todo o afeto desregrado ás criaturas, afim que possamos voar ao seu seio e ali repousar. Oh! Quantas almas ricas em virtudes e graças, que por não terem força e coragem para renunciar a tal ou tal afeiçãozinha desregrada, não podem chegar à união divina; quando bastar-lhe-ia um generoso rasgo, para romper o fio que as retém e prende à terra! Adquiririam por este modo tesouros infinitos de graça preciosas, porque então Deus se comunicaria interiormente a elas. Ai! Eu mesmo talvez serei do numero dessas almas infelizes. Ó meu Deus! “Quem me dará asas como à pomba”. Quem me dará um coração puro e inteira¬mente desimpedido de toda a afeição terrena, “e eu voarei ao vosso sejo, e nele tomarei doce e pacifico repouso?”. Meu Jesus, ajudai-me a me desembaraçar de tudo; eu o quero, eu o desejo. Ah! Vinde em meu socorro. Sim, eu prefiro-vos a tudo, à saúde, ás riquezas, ás dignidades, ás honras, aos louvores, ás ciências, ás consolações e até ás graças e benefícios que de vós possa receber, prefiro-vos a tudo o que não sois vós, ó meu Deus! Tudo o que me possais dar não me basta, se vos não dais a vós mesmo, ó Deus do meu coração! a vós só quero, e a nada mais. Esclarecei-me, para que eu saiba o que quereis que eu arranque do coração, e dai-me a força de executar o vosso desejo, porque quero obedecer-vos em tudo. Vinde, ó Jesus meu! vinde à minha pobre alma; vinde tomar dela inteira posse para o tempo e para a eternidade.
II. O segundo meio para chegar ao perfeito amor de Deus, é o conformar-se em tudo com a sua divina vontade. O perfeito amor de Deus não pode querer senão o que Deus quer. Muitos dizem de boca que estão totalmente resignados com a vontade do Senhor; mas, quando lhe sobrevém alguma contrariedade, alguma enfermidade penosa, não podem conservar-se em paz. Assim não obram as almas verdadeiramente submissas; estas dizem: “Isto apraz, ou isto aprouve ao objeto do meu amor”, e logo ficam em paz. É que estas almas bem sabem que tudo quanto no mundo sucede, tudo é mandado ou permitido por Deus. Assim, qualquer coisa que aconteça, abaixam humildemente a cabeça e vivem contentes com tudo o que apraz ao Senhor enviar-lhes.
“Se Deus me colocasse no fundo do inferno, dizia Santa Catarina de Gênova, eu não deixaria de dizer: Aqui estou bem; basta achar-me aqui por vontade de Deus, o qual me ama mais que todos os homens, e sabe tudo o que é melhor para mim”
Mui em seguro está, quem repousa nos braços da sua divina bondade. Santa Catarina ensina-nos que
“Tudo o que deve fazer quem se exercita na oração, é conformar-se com a vontade de Deus, na qual consiste toda a perfeição. Para isso devemos repetir sempre a prece de David: Pois que quereis que eu me salve, Senhor, ensinai-me a fazer sempre a vossa santa vontade”
O mais perfeito ato de amor que possa fazer uma alma, é o que São Paulo fez no momento da sua conversão, quando disse:
“Senhor, que quereis de mim? Eu estou pronto a fazê-lo”
Este ato tem mais valor do que mil jejuns e mil austeridades. Fazer a vontade de Deus, este deve ser o alvo de todas as nossas obras, de todos os nossos desejos, de todas as as nossas orações. Supliquemos pois à nossa divina Mãe, aos nossos santos patronos, aos nossos santos anjos da guarda, que nos obtenham a graça de cumprirmos sempre a vontade de Deus, e quando nos acontecerem coisas contrarias ás nossas inclinações e ao nosso amor próprio, aproveitemos ocasião tão bela de amontoar tesouros de méritos por um ato de resignação, e tomemos o santo habito de repetir estas palavras que Jesus mesmo nos ensinou com o seu exemplo:
“Senhor, pois que esta é a vossa vontade, esta será também a minha”
Digamos também com o santo homem Jó:
“Deus o quis; seja bendito o seu santo nome”
Assegura o venerável mestre Ávila que um só — Deus seja bendito — na adversidade, vale mais que mil ações de graças na prosperidade. É aqui lugar de repetir o que acima disse, que bem seguro está quem repousa nas mãos da bondade de Deus, porque então se verifica esta palavra do Espírito Santo:
“Nada pode perturbar ou conquistar o homem justo; qualquer coisa que lhe sobrevenha, acha-o sempre em paz”
III. O terceiro meio para obter o amor de Deus é a oração mental (1). As verdades eternas não se percebem com os olhos da carne, como as coisas visíveis deste mundo; só pelo pensamento e reflexão se alcançam: de modo que se nos não demo¬ramos por algum tempo em considera-las todas e especialmente as que dizem respeito à obrigação que temos de amar a Deus, pois ele o merece por todos os benefícios de que nos acumulou e pelo amor que nos há tido, bem difícil é que nossa alma se desligue de toda a afeição ás criaturas, e ponha o seu amor só em Deus. Na oração, o Senhor faz conhecer a vaidade das coisas deste mundo e o preço dos bens celestes; na oração, inflama os corações que não resistem ás suas inspirações, e lhes comunica abundantes e preciosas graças. Muitas almas queixam-se de que quando fazem oração não acham nela a Deus; é que elas a fazem com um coração cheio de coisas da terra.
“Desprendei o coração das criaturas, diz Santa Thereza, procurai a Deus e encontrá-lo-eis”
Sim, encontrá-lo-eis:
“Porque Deus é cheio de bondade para os que o buscam”
Para achar a Deus na oração é preciso pois que a alma se despoje da afeição ás coisas terrenas, e então Deus falar-lhe-á ao coração.
“Eu a conduzirei à solidão, diz o Senhor, e ali falarei ao seu coração”
Não é da solidão exterior que aqui se trata; utilíssima é, mas não basta: é preciso ainda a solidão do coração, que consiste no desprendimento das criaturas e na calma das paixões. O Senhor disse um dia a Santa Thereza:
“Eu falaria de boa vontade a muitas almas; mas tal ruído faz o mundo em seu coração, que minha voz não se pode lá fazer ouvir”
Ah! Quando uma alma desimpedida se põe em oração, como Deus lhe falia claramente e lhe faz conhecer o amor que tem por ela! E então a alma, diz um autor, a alma, ardendo de um santo amor, já não falia; mas seu silencio é tão expressivo! O silêncio do amor diz mais a Deus que toda a eloquência humana: os suspiros fazem conhecer tudo o que se passa no interior desta alma; então ela não se satisfaz de repetir:
“O meu amado é meu, e eu sou dele”
Verdade é que muitas vezes almas ainda as mais santas e desimpedidas só experimentam tédio na oração, mas é Deus que as quer provar; a estas almas pois digo eu: Não desalenteis por causa das se¬curas que na oração sentis, e não imagineis que por ser cheia de distrações foi inútil. Quando sobrevém estas distrações repeli-as com toda a paz; ponde- vos depois docemente e sem turbação na presença de Deus e dizei-lhe incessantemente:
“Meu Deus, tende piedade de mim! meu Deus, tende piedade de mim! Senhor, não mereço vossas consolações. Ai! Eu mereci tantas vezes o inferno e vossa maldição eterna!… Meu Jesus, dai-me o vosso amor”!…
O sagrado dom da oração, diz São Francisco de Sales nas suas cartas, está sempre disposto na mão direita do Salvador; apenas tu estejas vazio de ti mesmo, isto é, do amor do teu corpo e da tua própria vontade, quando fores bem humilde, ele derramá-lo-á em teu coração. Tem a paciência de ir devagarinho, até que tenhas pernas para correr, ou antes asas para voar. Deus encherá teu vazo de seu balsamo, quando o vir vazio dos perfumes do mundo. Não fazes nada na oração, me dizes tu. Mas que mais querias tu fazer que o que fazes, que é apresentar e representar a Deus tua miséria? O mais belo discurso que os mendicantes nos possam fazer é expor a nossos olhos suas ulceras, e necessidades. Mas ás vezes nem isso mesmo fazes, como tu me dizes; mas estás para ali como um fantasma, uma estátua. Pois muito bem! Isso já não é pouco. Nos palácios dos príncipes e reis põem-se lá estátuas que somente servem de recrear a vista do principie. Contenta-te com servir também de estátua na presença de Deus; ele animá-lo-á quando lhe aprouver. Às vezes está-se realmente na oração como uma verdadeira estátua; parece que não se pode nem pensar, nem falar, nem refletir, nem orar.
Que fazer pois? Abandonar este piedoso exercício? Certamente que não. Crer que, nossa oração não é agradável a Deus? Ainda menos. É preciso permanecermos simplesmente onde Deus nos pôs; quer que sejamos estátuas diante dele, acha nisto a sua gloria, porque havemos de querer o contrário? Se uma estátua que se tivesse colocado em um nicho, no meio de uma sala, tive-se fala, e se lhe perguntasse:
— Por que estás tu ai?
— Porque, diria ela, o estatuário, meu Senhor, me pôs aqui.
— Por que te não moves?
— Porque ele quer que eu permaneça imóvel.
– De que serves tu ai? Que proveito tiras de estares assim?
— Não é por meu serviço que eu aqui estou; é para servir ao meu senhor e obedecer à sua vontade.
— Mas tu não o vês?
— Não, dizia ela, mas vê-me ele, a mim, e gosta que eu esteja onde me pôs.
— Mas não querias ter movimento para ir mais para perto dele?
— Não, só se ele me mandasse.
— Não desejas então nada?
— Não, porque estou onde me colocou o meu senhor, e o seu gosto é o único contentamento do meu coração. Meu Deus, que boa oração e que boa maneira de nos conservarmos na vossa presença, o termo-nos unido à vossa vontade e bel prazer! Tenho para mim que Santa Maria Madalena era uma estátua em seu nicho, quando, sem dizer palavra, sem se mover, sem talvez para ele olhar, escutava o que nosso Senhor lhe dizia, assentada a seus pés; quando ele cessava de falar, cessava ela de escutar; mas sempre estava lá. Um menino que está sobre o seio de sua mãe adormecido está verdadeiramente em seu bom e apetecido lugar, bem que ela não lhe diga palavra, nem ele a ela.
Nunca abandoneis pois o santo exercício da oração mental e vocal. Ai! Nós estamos desprovidos de tudo: mas, se oramos, tornamo-nos ricos, porque Deus prometeu ouvir a quem lhe pede. Ele disse-nos:
“Pedi e recebereis”
Que maior prova de amizade pode dar um amigo ao outro que dizer-lhe:
“Pede o que quiseres e eu dar-te-ei?”
Pois bem, esta é a linguagem que o Senhor usa para com cada um de nós. Deus é o Senhor de tudo quanto existe, e promete dar quanto se lhe pede. Se pois estamos pobres, a culpa é nossa; é que nós não lhe pedimos as graças de que precisamos. Assim é verdade dizer-se que a oração mental é moralmente necessária a todos, porque sem a oração, embaraçados como estamos com os cuidados do mundo, pouco pensamos em nossa alma; ao passo que quando nos pomos em oração, apercebemos nossas necessidades, pedimos graças e as alcançamos.
A vida dos santos foi uma vida de oração; todas as graças que contribuíram para fazê-los santos, alcançaram pela oração. Se pois queremos salvar-nos, e fazer-nos santos, devemos conservar-nos sempre ás portas da divina misericórdia, para pedir e implorar tudo quanto necessitamos. Temos falta de humildade, peçamos-lh’a e seremos humildes; ternos falta de paciência nas tribulações, peçamo-la, e seremos pacientes; desejamos o amor de Deus, peçamo-lo, e obtê-lo-emos. Petite, et dabitur vobis: pedi e dar-se-vos-á: é promessa do nosso Salvador, e ele será fiel. Este bom Mestre para dar-nos maior confiança na oração assegura-nos que, quaisquer graças que peçamos em seu nome, seja por seu amor, seja por seus merecimentos, seu Pai no-las concederá todas. Diz ainda noutro lugar:
“Tudo o que me pedirdes a mim mesmo, em meu nome e por meus merecimentos, fá-lo-ei
Que mais queremos que uma tal promessa? Acostumemo-nos pois a orar incessante¬mente, acostumemo-nos, mesmo no meio das nossas ocupações, a elevar a todo instante nossos corações para Deus, por ardentes orações jaculatórias;, peçamos-lhe muitas vezes o perdão dos nossos pecados, a graça da perseverança final, e acima de tudo o seu santo amor. Digamos-lhe pois a cada hora do dia e da noite:
Deus meus et omnia! Meu Deus! Só a vós quero e a nada mais. Senhor, a vós me dou todo; e, se me não sei dar a vós como devo, tomai-me vós mesmo. Oh! A quem amarei eu, pois, se não vos amo, a vós, que morrestes por mim?
Thahe me post te. Meu Salvador! Tirai-me do lodaçal dos meus pecados e atrair-me a vós. Prendei-me, Senhor, estreitíssimamente com as cadeias do vosso amor, para que nunca vos abandone.
Quero ser todo vosso, Senhor; ouvistes? quero ser todo vosso, concedei-me esta graça, eu vô-lo conjuro. Que outra coisa quero eu senão a vós? Pois que me chamastes ao vosso amor, dai-me a força de vos ser agradável como desejais.
E a quem quero eu amar senão a vós, ó meu Deus! que sois a bondade infinita, digno de amor in¬finito! Vós me inspirastes o desejo de ser vosso, completai vossa obra. Que outra coisa posso eu desejar neste mundo senão a vós mesmo que sois o meu soberano bem.
IV. O quarto meio para adquirir o amor divino, é meditar na paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. É certo que se Jesus Cristo é tão pouco amado no mundo, é isto efeito da negligência e ingratidão dos homens, que não querem, ao menos de tempos a tempos, refletir sobre tudo o que ele por nós sofreu, e no amor com que sofreu. Parece-me uma loucura, exclama São Gregório, que um Deus tenha querido morrer para nos salvar a nós, a nós pobres escravos; e no entanto é de fé que Deus o fez, e que quis derramar todo o seu sangue para nos purificar dos nossos pecados.
Ó meu Deus! Exclama São Boaventura, e vós amais-me tanto, que parece terdes-vos odiado a vós mesmo! Não só quisestes morrer na cruz, no meio das mais atrocíssimas dores, mas levastes vosso amor até serdes vós mesmo minha nutrição na santa comunhão; não contente com esta prova de amor, quereis ainda ficar conosco sob as espécies eucarísticas até à consumação dos séculos, para serdes nosso refúgio e consolação nas misérias destas vida. Ó Jesus! Sim, repito, vós amais-nos tanto que parece terdes-vos aborrecido a vós mesmo. Digo ainda mais com Santo Tomás, “vós abaixastes-vos conosco, como se fôreis nosso escravo e cada um de nós fora vosso Deus”. Ó Jesus! Que grande que é vosso amor!
Meditemos; meditemos o mistério da paixão do nosso bom Mestre, e para logo sentiremos a nossa alma inflamar-se de amor por ele. Ó céu! O que não fazem os homens por amor de uma miserável criatura quando a tomem em sua afeição? E a um Deus de bondade e beleza infinitas, a um Deus que por nossa felicidade fez tudo, não o amaremos? Lancemos os olhos sobre o nosso crucifixo, contemplemos o nosso Jesus que nos estende os braços, e ousemos recusar-lhe ainda a nosso amor! Ó meu Jesus crucificado! Tende piedade de mim! tende piedade de mim! abrandai a dureza do meu coração, e convertei meus olhos em duas fontes de lágrimas, afim que chore incessantemente vossas excessivas dores e os meus pecados que foram sua causa. Jesus! Jesus! Tende piedade de mim e inebriai-me do vosso puro amor.
Diz São Boaventura que nada há mais próprio para santificar uma alma que a meditação da paixão de Jesus Cristo; e assim dá-nos ele o conselho de a meditarmos todos os dias, se queremos fazer progresso no amor de Deus. Santo Agostinho assegura-nos também que uma só lágrima que se derrame pela lembrança da paixão é mais agradável a Deus e mais meritória para uma alma, que jejuns e macerações continuas. Por esta razão é que os santos se ocuparam sempre da meditação nos sofrimentos de Jesus Cristo. Pela meditação contínua da paixão é que São Francisco de Assis se converteu em serafim. Um dia em que ele derramava lágrimas em abundância, perguntou-lhe alguém porque chorava daquele modo!
“Ai! Meu irmão, respondeu, choro os sofrimentos e ignomínias do meu Salvador, e o que mais que tudo me aflige, é o ver que os homens por quem ‘ele tanto padeceu, nem sequer nisto pensam”
Ao pronunciar estas palavras, suas lágrimas aumentavam de sorte que o que havia interrogado não se pôde conter que não chorasse também. O balido de um cordeirinho ou qualquer outro objeto que lhe lembrasse a paixão bastava a este santo para lhe fazer derramar lágrimas. Um dia que estava doente, um dos que lhe assistiam lhe aconselhou que fizesse ler algum livro de piedade.
“O meu livro, respondeu ele, é Jesus crucificado”
Que este seja também o nosso, e em breve teremos aprendido nele a amar a Deus de todas as nossas forças. O1 alma minha! ama ao teu Deus amarrado, encadeado como vil escravo, ao teu Deus escarnecido, esbofeteado, flagelado e crucificado para tua salvação. Sim, meu doce Salvador! Amo-vos, quero amar-vos para todo o sempre. Recordai-me a todo o instante o que sofrestes por mim, afim que jamais me esqueça de amar-vos. Laços sagrados que encadeastes o meu Divino Mestre, espinhos que coroastes sua adorável cabeça, feri-me de amor por Jesus; cravos venerandos que trespassastes os pés e mãos do meu Salvador, cravai-me afim que eu viva e morra unido a Jesus; sangue precioso, inebriai-me do amor de Jesus; Jesus morto por meu amor, fazei que eu morra a todas as afeições terrenas afim de não mais viver senão para vós. Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Portar-se em tudo com o nosso Deus como um menino se dá com o melhor dos pais, com toda a Simplicidade e Confiança
Meu caro Teótimo, dá-te a consciência o consolador testemunho de que amas a Deus de toda a tua alma e mais que a todo o mundo?
Ah! Meu Padre, ama-lo tanto como Ele merece, sinto que não o amo; mas parece-me que o meu ardente desejo é ama-lo sempre mais e mais. Quanto mais o amo, mais ama-lo quero; quanto mais aprendo a conhece-lo, mais vejo quanto ele merece todo o meu amor.
— És feliz, meu caro Teótimo, e tua sorte é verdadeiramente digna de inveja; pois agrada a Deus aquele a quem Deus agrada, e é sinal de o amarmos e desejarmos ama-lo.
— Meu padre, não podeis imaginar quanto fiquei consolado com a vossa resposta; se é tão doce o pensar que somos agradáveis a Deus! Mas peço me queirais dizer o que devo fazer para testemunhar a este bom Pai todo o amor de que o meu coração está abrasado para com ele. Por sua misericórdia, sou já fiel a todos os seus mandamentos e aos de sua Igreja; aproximo-me frequentemente dos sacramentos da Penitencia e da Eucaristia; sou exato no cumprimento de todos os deveres do meu estado; por nada do mundo quereria cometer, com pleno consentimento, um só pecado venial, e trabalho por desprender o coração de todas as coisas criadas. Que pensais, meu Padre, deva eu fazer para lhe agradar mais?
— Só uma coisa, meu caro Teótimo: teres confiança filial e sem limites em sua bondade e misericórdia, abandonares-te sem reserva á sua divina vontade. Jesus, nosso Mestre, quer que nos hajamos com ele como o nosso melhor amigo, nas doenças, nas desolações interiores, nas consolações e sucessos, nos escrúpulos; quer que lhe recomendemos tudo o que nos diz respeito e tudo o tocante ás pessoas que amamos; quer que lhe façamos parte dos nossos temores e esperanças, e tudo isto com a mais perfeita simplicidade.
Sê pois fiel daqui em diante em abandonar-te com confiança ao amor e misericórdia do nosso bom mestre.
1. Nas Doenças
Quando estás doente, quando sofres alguma enfermidade, aproxima-te de Jesus e dize-lhe:
“Terno amigo do meu coração, vede quanto eu sofro, e apressai-vos a me socorrer. Submeto-me à vossa boa vontade; quereis que esta doença me dure muito tempo, também eu quero; quereis que me passe, quero também o mesmo. Fazei a vossa vontade, ó meu Deus; pronto estou para tudo. Ofereço-vos os meus sofrimentos, e peço-vos paciência e resignação”
Imagina que nosso Senhor em pessoa vem visitar-te, que se assenta junto ao teu leito, e que assim te falia:
“Meu filho, eis-me aqui para te fazer companhia e trazer-te graças: tu sofres muito, pois não sofres?
— Oh! sim, muito, meu Deus.
— Serás contente de te veres livre deste mal?
— Sim, por certo, Senhor; mas eu só quero o que vós quiserdes.
— Por esta doença que te enviei, honras- me e me dás gloria; expias tais e tais pecados da vida passada; adquires tais e tais méritos; todavia, se desejas ser curado, é só falares, e eu te curarei.
— Não, não, meu doce Jesus! Cumpra-se a vossa vontade e não a minha. A vós me abandono: sabeis muito melhor do que eu o que me convém”
2. Nas Desolações Interiores
Certos dias há em que as almas, ainda as mais santas, caem num estado tal de secura, desgostos; trevas, desolações, que quase são tentadas a crer que Deus as abandonou; muitas vezes mesmo este estado dura por muito tempo, segundo Deus julga útil à alma que quer purificar. Então sente-se uma alma atormentada por mil tentações de orgulho, cólera, impureza, desesperação; parece-lhe que está sem amor de Deus, sem esperança, sem fé; tudo parece perdido. Que hás de tu fazer, meu caro Teótimo, quando te achares exposto a semelhante desolação? Apressa-te a recorrer a Jesus:
“Meu Deus, meu Deus, dirás, então onde estais? porque me abandonastes? Porque vos ocultastes a mim? Vós bem sabeis que vos amo, que todo o meu desejo é amar-vos mais e mais; Ah! Por piedade, tende misericórdia de mim. Em vossos braços me lancei com confiança, não me abandoneis, vos suplico, ó meu Deus”
Depois de assim teres derramado o coração no Coração de Jesus, conserva-te em paz, e dize sempre, apesar de teus desgostos e securas:
“Meu bom Mestre e meu melhor amigo, seja feita a vossa vontade”
Quanto ao mais, deves esperar com paciência o momento em que Deus haja por bem dar-te a unção da sua graça. Se este momento tarda muito a vir, não te perturbes com isso, espera sempre, “Deus não abandona o justo a eternas desolações”. Se alguma vez se oculta, é para nosso bem. Passeava uma boa mãe com seu filhinho de terna idade ainda; levava-o pela mão com medo que ele caísse, e tomava-o nos braços quando encontrava passagem difícil. Senão quando o menino lá divisou uma flor, deixa logo a mão que regia seus passos, corre à flor, apanha-a e volta para junto da mãe. Mas ai! Ele não vê ninguém; bem olha de todas as partes, ninguém aparece; chama a grandes brados, ninguém responde. Pobre menino! Pôs-se a chorar e a soluçar. Nisto aparece-lhe a mãe; ela havia-se ocultado para ver o que faria seu filhinho quando se visse só. Toma-o entre seus braços, aperta-o contra o coração, cobre-o de ternos beijos e consola-o dizendo:
“Agora, meu filho, vejo quanto me amas”
Assim é que Deus obra, meu caro Teótimo, com as almas que mais ama. Oculta-se-lhes por algum tempo, afim de provar seu amor e ter ocasião de as acumular de graças preciosas. Não te inquietes com estes abandonos interiores, é grande sinal que Deus te ama, pois deste modo é que ele tratou Jesus Cristo e todos os seus eleitos. Para tomarem animo põe amiúde diante dos olhos a conduta de Santa Catarina de Gênova no meio de suas penas interiores. Tão grandes eram estas ás vezes, que lhe parecia nada mais ter que esperar, e que estava inteiramente abandonado de Deus.
Pois bem, apesar de tudo isto, era fiel como nunca a todos os exercidos de piedade; por mais enfado que neles experimentava, não omitia nenhum, e não encurtava a mínima parte. No mais forte de suas desolações, exclamava:
“Quanto eu sou feliz em estar num estado tão deplorável! que meu coração esteja no meio de angustias, estou contente, uma vez que Jesus seja glorificado! Ó Jesus, meu amor! Se os meus sofrimentos interiores podem ganhar-vos o mínimo grau de gloria, dignai-vos deixar-mos por toda a eternidade”
E falando assim, tinha tão vivo sentimento de suas penas, que se punha a chorar amargamente. Sofrendo com esta resignação e amor é que ela chegou a um eminentíssimo grau de santidade e perfeição. Uma coisa mais, meu caro Teótimo, não deves omitir, quando estás na desolação interior, é repetir muitas vezes estas palavras que são um perfeito ato de amor:
“Meu doce Jesus! Por mais desgostos que eu agora experimente em vosso serviço, por mais penas que sinta, nem por isso vos amo menos de todo o meu coração; regozijo-me de saber que vós lá no céu gozais de pura e inalterável felicidade: a vós toda a alegria, a mim a dor”
3. Nas Consolações e Sucessos
Quando teus negócios te correm bem, e disso te sentes contente; quando recebes consolações espirituais, e toda a tua alma está inundada de gozo, não deixes de partilhar tua alegria com Jesus. Pois se tu lhe pedes que tome parte em tuas aflições, quando as tens, se tu
o conjuras a que te venha consolar, não é bem justo que também o convides a tomar parte em tudo 0 que te dá alegria? Dize-lhe pois:
“Ó Jesus, a vós é que eu devo esta boa nova, 0 bom êxito deste negocio; bendita seja para sempre a vossa misericórdia. A vossos pés venho depositar a alegria que sinto, para dela vos fazer homenagem. Aceitai a minha oferta e abençoai-me. Sou vosso filho, e amo-vos de toda a minha alma”
4. Nos Escrúpulos
Se te acontece ter escrúpulos sobre tuas confissões, sobre tuas comunhões; se estás em perplexidade por saberes se sim ou não consentistes em tal ou tal tentação; se temes ter perdido a graça de Deus por alguma falta secreta que hajas cometido sem disso te aperceberes, ou por alguma omissão grave dos deveres do teu estado, não te abandones ao desespero. Nosso Senhor pede-te em testemunho do teu amor por ele, que exponhas com toda a simplicidade as tuas duvidas, te¬mores, escrúpulos ao diretor da tua consciência, e lhe obedeças em tudo como a ele mesmo; porque não confiar no diretor, é não confiar em Deus, e recusar obedecer-lhe, é recusar obedecer a Deus.
— Mas, meu padre, vais-me talvez tu dizer, temo não me haver explicado bem com ele e não ter sido compreendido.
— Meu caro Teótimo, tem confiança em Jesus e obedece ao teu confessor.
“Nunca, diz São Francisco de Sales, homem verdadeiramente obediente se perdeu”
Medita com atenção estas palavras de São Filipe Neri:
“Se queres fazer progressos na virtude e no amor de Jesus, abandona-te à conduta de um confessor piedoso e esclarecido, e obedece-lhe como ao próprio Deus. Obrando deste modo, podes estar seguro que não hás de dar contas a Deus de tuas ações”
— Mas, se meu confessor se enganasse?
— Não te enganavas tu obedecendo-lhe, responde o Padre Olivares; e São Filipe Neri ajunta:
“Tem confiança em teu confessor, porque o Senhor não permitirá que ele se engane”
Uma pessoa atormentada de escrúpulos foi ter um dia com São Bernardo, e confessou-lhe que não ousava aproximar-se da santa mesa.
— “Vai, filho, vai comungar, lhe diz o santo, eu respondo por tudo”
Foi ingenuamente e sem replicar nada; e sua obediência foi bem recompensada, porquanto os escrúpulos desapareceram.
— Ó meu padre! Me dizes tu, se eu tivesse São Bernardo por diretor, parece-me que também obedeceria facilmente; porque ele ao menos era o homem mais hábil e mais santo do seu século.
— “Enganas-te tu que assim falias, responde o piedoso Gerson; tu estás em erro; pois não destes a confiança ao confessor por ser ele um sábio, mas sim por fazer as vezes de Deus. Por consequência, obedece-lhe não como a um homem, mas como ao mesmo Deus”
— Então devo obedecer-lhe sempre?
— Sim, sempre que te não mande uma coisa evidentemente má: é doutrina de São Bernardo, Santo Inácio, São Boaventura e dos doutores.
— Mas, meu padre, tenho meus receios sobre as confissões e comunhões passadas; tenho-os manifestado muitas vezes ao confessor, e ele nem quer que eu lhe fale nisso.
— Obedece-lhe simplesmente, e abandona-te à misericórdia de Jesus.
— Ainda por estes dois pontos consinto; mas ele nem sequer deixa que me confesse de todos os pensamentos que me passam pela mente, a menos que eu lhe não possa jurar logo e com certeza que consenti; devo também obedecer-lhe?
— Sim, com toda a certeza; e diz São João da Cruz, no “Tratado dos espinhos”, que haveria muito orgulho em o hão fazer.
— Pois que assim é, obedecerei, por mais repugnâncias interiores que sinta. Mas acreditais, meu padre, que Jesus não será ofendido?
— Ofendido! Será mas é honrado por tua simplicidade e obediência, e ficará muito contente contigo por esse sinal de amor para com ele e de confiança no seu ministro.
— Permiti-me ainda, meu padre, que vos abra inteiramente o coração. Muitas vezes me acontece estar em transes mortais, por me parecer que consenti em algum pecado grave, posto que eu não saiba dizer bem quando e como. Então torno-me triste, porque me parece que mereci ser abandonado de Deus, e me tornei objeto da sua ira.
— Que estás tu a dizer, meu caro Teótimo? Tu, objeto da ira de Deus! Ora responde-me: consentirias tu em fazer neste momento um pecado mortal e a perder assim a graça de Deus?
— Oh! Nunca, meu padre! Morrer antes! Nem mesmo me quereria tornar culpável de um pecado venial voluntária e refletido.
— Amas então muito ao nosso divino Salvador?
— Sim, muito, a minha maior felicidade neste ‘mundo é trabalhar para lhe provar o meu amor.
— Muito bem, Teótimo, tranquiliza-te, porque o mesmo Deus disse:
“Eu amo os que me amam”
Quanto ao temor qua algumas vezes sentes de ter consentido em algum pecado grave, atende ao que vou dizer-te: O pecado mortal é mostro tão horrível, que lhe não é possível entrar e estabelecer-se numa alma, sem que esta alma o perceba. Por isso é que todos os Teólogos ensinam que, quando uma alma temente a Deus está na duvida de ter perdido a graça divina, é certo que a não perdeu, porque ninguém perde a graça sem ter disso pleno conhecimento. – (Vide Teologia Moral de Santo Afonso de Ligório). Assim, meu caro Teótimo, enquanto tu não te puderes dar um testemunho certo de que cometeste pecado mortal, enquanto não fizeres mais que estar num termo vago e sem fundamento de ter perdido a Deus, podes estar seguro que o possuis ainda, e que a sua graça está em teu coração.
— Porque é pois que nestes momentos de escrúpulos e temor, estou sem confiança em Deus e sem amor? Porque se acha o coração seco e frio?
— A confiança e o amor não consistem no sentimento, mas sim residem na vontade. Desde que tu queres ter confiança em Deus e ama-lo, é certo que o amas e que tens nele confiança. Repete pois incessantemente:
“Meu Deus, eu vos amo! Meu Deus, quero ter sempre confiança em vossa misericórdia. Ó Jesus, eu espero em vós, mesmo contra toda a esperança. Quando mesmo eu me visse metade no inferno, esperava ainda em vós, ó Jesus! Meu bom Mestre, dai-me uma perfeita resignação com a vossa santa vontade, e uma confiança sem limites em vossa misericórdia”
5. Jesus quer que lhe falemos com amoroso abandono de tudo o que nos concerne, bem como de tudo o que diz respeito aos que amamos
Tens sem duvida, meu caro Teótimo, um amigo que tu amas em Deus e por Deus, um amigo verdadeiramente digno deste nome; por mais raros que tais amigos sejam, tu tens um, não é assim? Pois muito bem, vê qual é a conduta que tens para com ele, e saberás como deverás haver-te com Jesus, que, afinal de tudo, sempre te ama mais que ninguém.
— Mas, meu padre, parece-me que eu faltada ao; respeito soberano que lhe é devido, se em minhas relações com ele pusesse a mesma simplicidade e o mesmo abandono que uso para com o meu amigo. Para este, eu nada tenho oculto, falo-lhe com o coração nas mãos; entro com ele nas miudezas ás vezes as mais minuciosas das minhas alegrias, dos meu temores, das minhas esperanças. Há mil nadazitos de que com os mais eu não ousaria falar, e com ele comunico-lhe tudo alegremente; pois parece-me não lhe poder provar melhor minha amizade que falando- lhe com esta confiança. Muitas vezes mesmo, não tendo nada que dizer-lhe, gosto de estar ao pé dele, porque sinto que sua presença me faz bem, me consola, e que sempre tiro algum proveito para meu adiantamento na virtude. Acreditais, pois, meu padre, que eu devo proceder assim com o meu divino Mestre?
— Sim, seguramente, meu caro Teótimo. Não temas nada; fala-lhe de tudo o que te diz respeito quantas vezes precisares, que nunca 0 fatigarás. Ali! se tu amas, terás sempre alguma coisa que dizer- lhe; Ele é tão bom, que se compraz em que nós tratemos com ele como de igual para igual, e fica contente quando vê que lhe comunicamos os negócios ainda os mais minuciosos e comuns. Persuade-te bem, meu caro Teótimo, Jesus ama-te, e tem de ti tanto cuidado como se verdadeiramente não tivesse que pensar senão em ti. Tão atento está aos teus interesses, que dir-se-ia que a sua providencia só se ocupa em socorrer-te, sua onipotência em proteger-te; sua misericórdia e bondade em ter com¬paixão de ti, em te fazer bem, e em ganhar, por to¬dos os meios, tua confiança e teu amor. Descobre-lhe pois com liberdade todo o teu interior, e pede-lhe te sirva de guia para executares perfeitamente sua santa vontade. Recomenda-lhe o cuidado da tua salvação e dize-lhe:
“Meu Jesus, tende piedade de mim: a vós me abandono pelo tempo e pela eternidade”
Pede-lhe pela perseverança dos justos.
“Senhor Jesus, não abandoneis vossos servos no meio dos perigos que eles correm: derramai sobre eles as mais abundantes graças, e concedei-lhes a vida eterna”
Pede-lhe pela conversão dos pecadores. — Meu Deus! Quantos desgraçados que todos os dias se condenam! Quantos que resistem às inspirações da graça, às lágrimas, aos conselhos, às suplicas dos confessores, e que vivem no estado do pecado! Quantos que, neste momento, jazendo no leito da morte, não tendo mais que uma hora talvez para comparecerem perante o soberano Juiz, não a querem aproveitar! Pede, pede por eles, Teótimo, e tu obterás a sua conversão, pede por eles: porque uma prece humilde, confiada, perseverante, faz muitas vezes mais para a conversão de uma alma, que um grande numero de instruções. Pede pois.
Pede-lhe pela Igreja. Conjura-o que lhe conceda sempre padres santos, padres segundo o seu coração, padres cheios de zelo pela sua gloria. Meu caro Teótimo, tem a caridade de orar algumas vezes por mim: eu não serei ingrato.
Pede-lhe pela conversão dos infiéis e dos hereges. Que objeto de dor e amargas lágrimas para uma alma que ama a Jesus, a vista de tantos milhões de homens que não o conhecem, ou o conhecem mal! Meu Deus! nunca mais tereis piedade de vossas pobres criaturas! Ó meu caro Teótimo! Supliquemos a Jesus, nosso Salvador, que lance um olhar de misericórdia sobre tantas almas que comprou tão caro. Peçamos por esses padres zelosos que expõem a própria vida, afim de levarem ás extremidades da terra as luzes da fé; peçamos, e seus trabalhos, vivificados por nossas orações, produzirão frutos abundantes de salvação; peçamos e arrancaremos ao inferno uma multidão de almas que estão em perigo de nele se precipitarem. Peçamos em particular por aqueles de nossos irmãos que tiveram a desgraça de se separarem da Igreja católica, ah! Peçamos por eles muitas vezes e com fervor, e nossas preces lhes obterão a graça de não mais resistirem à voz de Deus, que lhes clama que voltem ao seio da verdadeira Igreja; peçamos por eles, e nossas preces apressarão o dia de sua perfeita volta à unidade; peçamos por eles, e consolaremos o coração do bom Jesus, que quer que todos os homens se salvem. Pede a Jesus por todas as almas que te são caras; melhor prova da tua afeição não lhes podes dar. Pede-lhe enfim pelas almas do Purgatório. São suas esposas queridas; ele verá com grande satisfação que tu trabalhas para alivia-las em suas penas. Peçamos sempre, e tomemos por divisa: Oração, confiança e amor.
Observações:
(1) Veja a Prática da oração mental numa pequena obra intitulada: “Piedosos sentimentos de uma alma que quer ser toda de Jesus Cristo”, pelo Padre D. Pinard, in-8.° p. 37, segunda edição.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 303-328)