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Da sede de Jesus sobre a Cruz

"Tenho sede" - Paixão de Cristo

Capítulo XXXIV

Sitio – “Tenho sede” (Jo 19, 29)

Avizinhava-se o nosso divino Salvador do seu ultimo momento; breve estava a cumprir a obra da nossa redenção, morrendo por nós na cruz, quando sentindo-se interiormente abrasado dos ardores de uma sede violenta causados pelas dores extremas que sofria há vinte horas, exclamou:

“Tenho sede”

Pois como! Senhor, então a sede causa-vos mais dores que a cruz? Uma arranca-vos suspiros, da outra nem sequer falais. Que sede pois é essa que tanto vos atormenta! Ah! Bem vos entendo; é o ardente desejo que tendes da minha salvação, do meu adiantamento espiritual. Dizeis-me com todo o afeto:

“Meu filho, tenho sede do teu amor; vem, vem aliviar-me”

Ó Jesus meu! E que resposta tenho eu dado até agora a este terno convite, a esta doce solicitação? Ai! Imito os judeus que para vos apagar a sede tiveram a crueldade de vos apresentar fel e vinagre. Em vez de amar-vos de todo o meu coração, sacio-vos talvez indignos prazeres. Pelo menos, ó meu Deus! divido entre vós e a criatura um coração que vós quereis possuir todo, todo; recuso-vos os leves sacrifícios que me pedis, passo uma vida cômoda e imortificada. Ó meu Deus! Perdão vos peço do passado e vos conjuro a que me ajudeis para o futuro. Assim como o veado suspira pelas fontes das aguas, assim a minha alma suspira por vós, ó meu Deus! A minha alma está ardendo de sede de Deus, de Deus vivo: ah! quando irá ela aparecer diante dele! Ó meu Jesus! Ó fonte de vida! Quando virá o momento em que ela possa extinguir a sede que a devora, e refrescar-se nas deliciosas aguas da vossa sabedoria? Ó Deus, ó meu Deus, em vós estou vigilante desde o raiar da aurora; de vós tem sede a minha alma, de quantas maneiras a minha carne se consome de vós, nesta terra inculta, árida e deserta: ah! Quando lá no céu verei eu o vosso poder e a vossa gloria! Vossa misericórdia é mais doce que a mesma vida; e assim meus lábios não cessarão de fazer ouvir os vossos louvores. Em toda a minha vida vos bendirei: e invocando o vosso nome, elevarei as minhas mãos.

Como de banha e gordura seja de vossas bênçãos a minha alma repleta, e romperão meus lábios em cânticos de jubilo. Ó meu Deus! De vós me lembrarei em meu leito, e em vossas maravilhas meditarei à meia noite. Ah! É que a minha alma vai unida após de vós, e sem vós não pode viver. Senhor Jesus, tenho sede; vós sois a fonte da vida, dignai-vos apagar-m’a. Tenho sede, tenho sede do vosso amor; tenho uma paixão violenta de ver-vos e possuir-vos; quando me fareis a graça de saciar os meus desejos? Ah! Quando virá esse belo dia em que vós me direis com uma voz cheia de ternura e bondade: “Meu filho, entra na alegria do teu Senhor”, e toma posse do seu reino eterno; goza agora duma felicidade incorruptível. Aqui não mais tristeza, não mais penas, não mais trabalhos; aqui são enxugadas as lágrimas e satisfeitos plenamente os desejos…

Ai! De vós, meu doce Jesus, quereis que eu ainda fique nesta terra de exílio, quereis que eu mereça o eterno repouso por mortificações, cruzes, trabalhos contínuos. De muito boa vontade; mas dignai-vos, ó Deus meu! Atender à minha súplica. Minha alma por vós suspira, de vós será sequiosa, de vós enlanguesce: tende piedade dela. Só vós a podeis saciar; sim, meu Deus! Só vós, só vós. Riquezas, honras, prazeres, mundanas satisfações, nada de tudo isto é capaz de extinguir esta sede que a devora, só vós. Ah! Dai-me o vosso amor, que eu então ficarei plenamente satisfeito. Ame-vos eu de todo o meu coração, de todas as minhas forças, mais que a mim mesmo, que nada mais terei que desejar. Dai- me o vosso amor, ó meu Jesus! Eu vo-lo suplico; mas dai-me um amor tão puro, tão vivo, tão ardente, que a minha maior felicidade, a minha mais doce consolação neste mundo seja por vós trabalhar, por vós todo me consumir. Sim, Deus meu, este é o mais sincero desejo do meu coração: “Por vós viver, por vós sofrer, por vós morrer”. Assim seja.

RESOLUÇÕES PRÁTICAS

Exame de Consciência

Tu bem acabas de vê-lo, meu caro Teótimo, Jesus por tua salvação, por teu adiantamento espiritual teve um ardentíssimo desejo. Bem justo é, me parece, que te esforces por em ti excitares um desejo semelhante, e faças tudo para o conseguir. Ora, diz um sábio religioso, o Padre Rodrigues da companhia de Jesus, um dos principais e mais eficazes meios que temos para o nosso adiantamento espiritual, é o exame de consciência.

“Passei, diz o Sábio, pelo campo do preguiçoso e pela vinha do homem insensato: tudo ali estava cheio de urtigas, tudo coberto de espinhos, e o muro de pedra estava caído”

Tal é a consciência dos que não examinam; é uma vinha deixada ao abandono e por falta de cultura está toda coberta de silvas e espinhos. Ai! A nossa natureza corrompida é uma terra má; de si mesma só dá erva; é preciso andar sempre de foice na mão para cortar ou arrancar, e isto mesmo é o que fazemos pelo exame. O exame é que corta o vicio pelo pé, é que arranca as más inclinações, apenas elas começam a rebentar, é que impede os maus hábitos de lançarem raiz. Duas sortes há de exames: exame geral e exame particular. De ambos passo a dar-te a prática.

1. Exame Particular

Consiste em nos examinarmos todos os dias sobre uma virtude que nos propusemos adquirir; ou antes sobre um vicio de que nos queremos emendar, afim de saber se sim ou não havemos progredido. Suponho, por exemplo, que assentei com o confessor trabalhar por adquirir a humildade: eis o regime que devo seguir. De manhã farei o firme propósito de nada dizer, nada fazer, que possa, ainda muito de longe, nutrir o meu orgulho, e pedirei ao Senhor que abençoe esta minha resolução. Ao meio dia examinarei a consciência para saber quantas vezes faltei à minha resolução, escreverei então o numero de minhas faltas, humilhar-me-ei, tomarei novas resoluções de obrar melhor o resto do dia, e recomendar-me-ei a nosso Senhor. À noite farei o mesmo exame, e escreverei o numero das faltas desde o ultimo exame. Escrevendo assim o numero das quedas de cada dia, poderei ao cabo de certo tempo comparar dia por dia, semana por semana, mês por mês, e saber de modo positivo se sim ou não avanço na aquisição da humildade. No exame desta virtude me deterei enquanto sentir que me é ainda difícil sofrer uma humilhação, uma repreensão, um desprezo, ou qualquer outra coisa semelhante, e não arriarei bandeira, embora devesse trabalhar muitos anos enquanto não tiver alcançado o meu fim. Vais talvez objetar que enquanto empregastes todos os esforços na aquisição da humildade, desprezas a das outras virtudes. Não, meu caro Teótimo. não será assim; pois entre as virtudes há tão estreito laço, que o aplicar-se resolutamente e de uma maneira especial ao conseguimento de uma só, é trabalhar por adquiri-las todas. Não desprezes pois a prática deste exame particular que em breve reconhecerás suas preciosas vantagens.

2. Exame Geral

Consiste em nos examinarmos todas as noites das faltas que pelo dia adiante hajamos cometido, e excitarmo-nos ante tudo à contrição e bom propósito. Nunca deixes este exame geral não menos que o particular; o que eu muito te recomendo é que não vás cair na falta daqueles que creem haver feito tudo, quando investigaram com toda a miudeza os seus pecados, sem se darem ao trabalho de pedir deles perdão a Deus, e trabalhar por não mais recaírem. E no entanto esta é que é a parte essencial do exame, aquela a que mais te deves aplicar. Permite-me, meu caro Teótimo, que te dê um modelo de exame de consciência. Advertirás sem custo que não pretendi entrar nele em todas as particularidades de faltas por pensamentos, palavras, ações, omissões, a que todos os dias estamos expostos; meu fim é indicar-te simplesmente o caminho que tens a seguir; o resto tu o farás.

MODELO DE EXAME DE CONSCIÊNCIA

Pai Nosso… Ave Maria…

— Qual foi hoje o meu primeiro pensamento?…
Ai! Não foi para Deus; ocupei-me do prazer que teria em fazer aquela coisa, em ver aquela pessoa… Daí, oração cheia de distrações e fastio; dai, oração remissa e muito mal feita… dissipação todo o dia e muitas outras faltas de todo o gênero… Ó meu Deus! Assim é como eu vos sirvo! Sempre ponho o mundo, as criaturas, a mim mesmo antes de vós. Perdão, perdão, Senhor! Amanhã, eu vo-lo prometo, não há de ser assim; com o socorro da vossa graça, apenas eu desperte, hei de velar mais sobre mim, e meu primeiro pensamento há de ser para vós…

— Fiz hoje a minha oração?…
Sim… Meu Deus, agradeço- vos esta graça.. . Não… Ah! é como eu sou! sempre a prometer-vos, e nunca cumpro a minha palavra: meu Deus, tende piedade da minha fraqueza, e esquecei as minhas infidelidades continuas. Arre¬pendo-me sinceramente desta em particular, e para a reparar prometo-vos amanhã antes de sair do quarto fazer a minha meditação…

— Que resoluções tomei esta manhã?…
Pensei eu nelas durante o dia? Fui-lhes fiel?… Sim… (atos de agradecimento)… Não… (humildade, contrição e bons propósitos)… (Do mesmo modo te examina sobre a assistência à santa missa, sobre a santa comunhão, sobre as confissões)

— Nos comeres não procurei eu contentar a sensualidade? Pratiquei da mortificação? etc… Meu Deus, meu Deus, quanto eu me envergonho por vos ofender, então mesmo quando vós me estais a acumular de benefícios!… Quantos pobres que vos servem com muito mais fervor do que eu, a quem vós não dais mais que um negro pedaço de pão para matar a sua fome devorante? E não obstante eles vos bendizem, e comem com reconhecimento este pão… A minha mesa todos os dias se cobre de numerosos e saborosos manjares; talvez nada falte ao meu apetite, e eu só muito contra vontade me resolvo a dar-vos graças por tantos dons!.. . e faço-o com tanta frieza!.. . Ó meu Deus! Ó meu Pai! Ainda esta vez tende piedade da miséria de vosso filho… Amanhã privar-me-ei por vosso amor e para me punir, se sem os¬tentação o poder fazer, de tal ou tal comida, de que eu gosto muito…

— Em minhas conversas nada tenho a exprobrar-me?
Aqui uma leve mentira, uma pequena maledicência, uma chufa, uma critica, um pouco talvez por ciúme… Ali uma palavra de vaidade, uma palavra cheia de azedume, de impaciência, de amor próprio… Falei de mim mesmo em tal circunstância sem necessidade… Em tal obra abri demasiado a minha alma, Deus me o exprobrou… Falei um pouco áspero àquele criado; e que ganhei eu com isso?… Se eu me tivera calado em tal circunstância, ou se tivesse falado com calma e doçura, Deus não teria sido ofendido… etc., etc.

(Atos de contrição e bom propósito)

Quantas impaciências, pequenos agastamentos com meus criados, meus filhos e pessoas da minha convivência! Ó meu Deus! Ó meu Deus!… E a comungar tantas vezes! Ah! Com a vossa graça hei de emendar-me deveras!… E os deveres do meu estado?… E a fidelidade ao meu regulamento?… E os meus exercícios de piedade?… (Passa uma rápida vista a tudo isto, julga-te com a mais rigorosa severidade, toma a resolução de melhor fazer tal ou tal ação em particular)… etc., etc.

Termina por fazer um ato geral de contrição, e adormece na paz do Senhor.
— Este exame não deve durar mais de cinco ou de seis minutos.

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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 247-253)