Capítulo XXIX
O vos omnes qui transitis per viam, attendite et videte si est dolor sicut dolor mens – “Ó vós todos que passais pelo caminho, atendei, e vede se há dor como a minha” (Lm 1, 12)
São estas as palavras que nos dirige Jesus a nós, pobres exilados nesta terra de pecado. Ó vós todos, exclama ele do alto da cruz, ó vós todos, que passais pelo caminho da vida, dignai-vos parar por alguns instantes; lançai sobre esta cruz, onde estou cravado, a vossa vista, e vede se há uma dor que à minha se possa comparar; a minha cabeça está coroada de espinhos que me não deixam repouso algum, os meus pés e as minhas mãos estão varados de enormes cravos, o meu corpo não é mais que uma chaga, e o meu sangue corre de todas as minhas chagas. “De todas as partes me cercam as agonias da morte”, e a minha alma está abismada na mais excessiva desolação.
Infelizes filhos de Adão, que arrastastes a punição do pecado de vosso primeiro pai, que gemeis sob o peso dos sofrimentos que vossos crimes mereceram, vede as minhas dores, e comparai-as com as vossas. Vós lastimai-vos de sofrer! Mas esquecestes já que sois culpados, e que merecestes o inferno? Esquecestes-vos de que eu, vosso Deus, primeiro sofri por vosso amor, e para vos ensinar a resignação?
Vós murmurais de serdes obrigados a suportar os incômodos da fome, sede, pobreza, fadiga, frio e calor; mas em antes de vós e mais que vós os senti eu. Não nasci eu num curral, no coração do inverno? Não vivi sempre na indigência? Não ganhei eu o meu pão com o suor do meu rosto?
Vós sois tentados a abandonar o meu serviço, porque neles encontrais alguns espinhos, por nele experimentardes alguns desgostos, por serdes atormentados de algumas penas interiores, por ser preciso fazer alguns sacrifícios custosos à natureza. Mas acaso vivi eu no seio dos prazeres? A vossa salvação, não a minha, acaso não me custou nada a assegurar? Experimentais desgostos! Mas são compráveis aos que por vosso amor recebi no jardim das Oliveiras? Estivestes já, como eu, tristes até à morte? E vossas penas interiores já vos fizeram suar uma grande abundância de sangue? Quando estivestes numa agonia mortal?
Vós ficais atônito de serdes traídos por vossos amigos, contristais-vos quando vos pagam com a ingratidão os benefícios! Mas não fui eu abandonado dos meus pobres discipulos no momento mesmo em que acabava de lhes dar a maior prova de amor, nutrindo-os do meu próprio corpo? não fui eu indignamente tratado por esses judeus a quem eu havia curado os enfermos, ressuscitado os mortos, e acumulado os benefícios?
Vós irritais-vos por terem para convosco pouca atenção, por vos humilharem, vos desprezarem, desconhecerem o vosso pretendido mérito, e vos preferirem aos que tem menos talentos, menos virtudes do que vós! Mas não fui desprezado eu, Deus como sou? Não fui apupado nas ruas de Jerusalém pela mais vil populaça? Não me tratou Herodes como um insensato? Não fui posto em paralelo com um homicida? Não me puseram abaixo de Barrabás?
Vós abandonais-vos à cólera apenas alguém vos mancha a reputação, vos insulta e maltrata! Mas de mim não disseram que eu era um possesso do demônio, um feiticeiro, um blasfemo, um sedicioso? não me escarraram no rosto? não me carregaram de golpes e bofetadas? Não me abandonaram toda uma noite aos insultos e brutalidades dos soldados desenfreados?
Vós murmurais à mais pequena doença que vos sobrevém; se se agrava, se se prolonga, já perdeis a paciência! E eu não fui cruelmente flagelado? E não me vedes agora pregado nesta cruz? Em vossos sofrimentos, nas doenças recebeis algum conforto da presença dos amigos, dos remédios que vos dão e dos cuidados que para convosco se tem. E para comigo, que sou vosso Deus, acontece o mesmo? onde estão os que me consolam? onde os amigos que me aliviem e participem dos meus sofrimentos? Onde os remédios para adoçar meus males?
Estou só e desamparado; por palavras de consolação ouço blasfêmias; oprimem-me de insultos e ultrajes, botam-me à derrisão, apresentam-me fel e vinagre… Tendes razão de vos queixar e murmurar por terdes de beber algumas gotas do cálice de amargura que eu esgotei todo? não era mais justo antes levardes por meu amor uma leve porção da cruz que por vosso amor não recusei levar eu só? Respondei… Ó cristãos, se soubéreis quantas dores, quantos sofrimentos, quantas penas interiores me custou o arrancar-vos ao inferno, compreenderíeis o ardente desejo que me devora de possuir o vosso coração; compreenderíeis quão horrendo não é cair no inferno, por toda a eternidade; compreenderíeis. enfim, que só a causa que sobre a terra vos cumpria fazer, é servir-me e amar-me! Ah! Meus filhos, pela vossa própria felicidade, dai-me o vosso coração e amai-me.
Amo-vos, ó meu Jesus! Sim, amo-vos e quero amar-vos sempre cada vez mais. Ó meu divino Mestre! Dai-me para convosco toda a ternura que anelo, e se meus desejos não tem ainda toda a força e ex¬tensão que deviam ter, dai a esta pobre criatura, que acumulastes de vossos favores, que com tanto excesso amastes, que por tantos tormentos salvastes, dai-lhe todo o amor com que vós quereis que vos ame.
Ó amor, que sempre estás em chamas e ardes sempre! Fogo divino que nunca te extingues! Ó meu doce Jesus! Ó caridade! Ó meu Deus! Abrasai todas as potencias da minha alma no fogo sagrado do vosso amor. Fazei que ela sinta todas as suas chamas, toda a sua doçura, todos os seus êxtases, e todas as suas ternuras; fazei que vos ame, que vos ame de toda a força e com todo o ardor da vontade; que vos abrace com todas as luzes da sua inteligência, que vos ame de um amor acompanhado de uma viva dor das suas infidelidades passadas, que vos ame, e a nada mais ame senão a vós, nada senão em vós, nada senão por vó; Ó meu Deus! Possa eu amar-vos até o meu ultimo suspiro, e por toda a eternidade! é o que espero da vossa misericórdia. Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Da Precipitação
Falei-te no capitulo passado da paz do coração; vou hoje falar-te de uma falta muito comum, até entre as pessoas que fazem profissão de piedade; sim muito comum, e só por si capaz de pôr um obstáculo insuperável ao reino dessa paz interior: é a precipitação. Se portanto queres alcançar e conservar a paz interior evita a precipitação.
1. Em tuas ocupações. Não procures fazer empreender tudo ao mesmo tempo; dá a cada coisa o tempo que ela pede, e não desejes ver termina¬da, quando ainda mal está começada; porque nada lança tanta perturbação e distração numa alma como esses desejos veementes e impetuosos. Não te sobrecarregues de ocupações muito multiplicadas e ás quais não possas bastar.
2. Em tuas boas obras. Faz o bem, mas com peso e medida; assim mais sólido será. Quando resolveres empreender uma coisa que julgas útil à gloria de Deus e à salvação do próximo, não ponhas logo em movimento céu e terra, deixa-me as¬sim dizer, para chegar subitamente ao fim a que te propões, mas obra com tranquilidade. Nisto toma o exemplo do mesmo Jesus Cristo, que trinta anos esperou antes de anunciar ao mundo o seu Evangelho, e trabalhar diretamente na salvação das almas. Quando a alguém dás sábios conselhos e vês que não aproveita, não percas por isso a paz: mas continua com caridade rendendo-lhe o mesmo serviço; o resto Deus o fará. O zelo por nosso adiantamento na piedade, pela conversão do próximo, é uma virtude, enquanto sereno, e resignado à vontade de Deus, mas se é um zelo desatinado, sem comedimentos, sem paciência, um zelo que pretende num dia fazer de um pecador um santo consumado, um zelo que não quer esperar os momentos marcados pela sabedoria do Altíssimo, ai! É um zelo falso, deves-te desfazer dele, porque semeia a perturbação em tua alma. Não ponhas também demasiada solicitude nos exercícios de piedade cedendo ao desejo de os multiplicar muito: nisto, como em tudo o mais, segue os conselhos do teu diretor, e grava bem na memória estas palavras de São Francisco de Sales:
“Não é de modo algum pela multiplicidade das coisas que fazemos, que nos adiantamos na perfeição, mas pelo fervor e pureza da intenção com que as fazemos”
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 212-217)