Capítulo III
Neque per sanguinem hircorum aut vitulorum, sed per proprium sanguinem introivit semel in sancta, aeterna redemptione inventa – “Nem por sangue de bodes, ou de bezerros, mas pelo seu próprio sangue entrou Jesus Cristo uma só vez no Santuário, havendo achado uma redenção eterna” (Hb 9, 12)
Ai! De que valia para nos obter a graça divina o sangue de todas as vitimas? Da mínima importância eram todos esses sacrifícios; eram na expressão do Apóstolo, cerimônias defeituosas e destituídas de toda a virtude; jamais lograriam elas destruir o muro de separação que entre Deus e o homem o pecado levantara. Quem é pois que teria assaz poder para nos restituir a graça com o céu? O homem?
Ai! Esse é um filho da cólera; nasce na inimizade de Deus, e de suas próprias forças obra alguma pode fazer grata a esse Deus Santo, que não se compraz com serviços de quem é seu inimigo! Então será um anjo? Mas um anjo não passa de uma simples criatura; seus méritos são conseguintemente finitos e limitados, e a injuria a Deus feita pelo pecado do homem e um mal infinito.
Como não se dignou de por si mesmo nos criar, também não achou indigno ele mesmo vir resgatar-nos. O excessivo amor que nos consagrava não o deixou confiar de outrem a satisfação e glória de salvar-nos. “Eu sou o Senhor“, nos diz pela boca de Isaías, “e não darei a minha glória a outrem“; e realmente houvera sacrificado esta glória se a um anjo confiasse o cuidado de remir-nos. Porque se tão somente se contentara com tirar-nos do nada e nos dar a vida que neste mundo vivemos, vida infinitamente melhor, a um anjo seriamos devedores do que é mais excelente e a Deus do que o é menos. Ora, repito, Deus era nimiamente cioso da sua glória e do nosso amor para entregar a uma criatura a obra da nossa redenção. Não só quis dar-nos a primeira vida, criando-nos, mas ainda a segunda resgatando-nos, a fim de que só a ele o nosso amor pertencesse e nem à mínima parte alguém se julgasse credor. É isto o que perfeitamente exprimiu Santo Agostinho nestas palavras:
“Assim como Deus era já nosso Criador, assim quis ao mesmo tempo ser nosso Redentor para que nosso amor não ficasse repartido entre criador e redentor”
“Reconhece, ó homem, exclama São Bernardo, a dignidade e a nobreza de tua alma. Essa alma que tu arrastas pela lama, essa alma que sacrificas ao teu corpo, sabes em quanto foi estimado por Deus? Sabes que mais vale que o mundo todo? Se o ignoras, sabe que o teu Deus por amor dela sacrificou a sua e não a sacrificaria pelo universo, nem ainda por mil universos”
Compreende agora o quão culpável és quando com o pecado a manchas.
Como acabamos há pouco de ver, ainda quando um anjo nos poderá resgatar e satisfazer à justiça divina, não o permitiria Deus; queria ele mesmo encarregar-se, como de fato fez, do cuidado de nos merecer o céu e arrancar ao inferno, para melhor nos provar a grandeza do seu amor. Oh! Quem poderá dizer quanto nos ama Deus, a nós pobres e mesquinhas criaturas! Por amor de nós, lá desceu do alto do seu trono esse Deus do céu e da terra, e revestiu-se da nossa humildade, por nosso amor quis nascer num presépio onde para repousar seus delicados membros só palha tinha; por nosso amor quis passar trinta anos na oficina de um pobre carpinteiro, ganhar com o trabalho de suas mãos um pedaço de pão negro, comê-lo com o suor do seu rosto; por nosso amor finalmente quis derramar até à última gota do seu sangue e expirar cravado numa cruz repleto de atrocíssimas dores. Ah! Que bem razão temos nós de como Jó exclamar:
“O que é o homem, Senhor, para que o honreis com vossa vista e façais dele o objeto do vosso amor?”
Pois que! Esse poderoso Monarca do céu e da terra, esse Deus a quem nada falta, que só de si é suficientíssimo a si mesmo, andar em procura do teu amor, e esforçar-se até dar a vida para t’o merecer! Como poderemos nós jamais reconhecer ternura tão excessiva? Amemo-lo; amemo-lo; amor só com amor é pago, demos-lhe o nosso coração de que ele tão cioso é, com fidelidade lhe consagremos todos os seus movimentos, todos os seus afetos, não façamos a mínima reserva. Não percamos de vista que se pelo benefício da criação já de tudo lhe somos devedores, pelo da redenção muito mais ainda lhe devemos. O nos criar uma só palavra nos custou:
“Ele disse e tudo foi feito”
Mas para remir-nos o que não sofreu?
Ó meu Jesus! Aqui estou aos vossos pés! Dignai-vos aceitar a homenagem que deste pobre coração vos faço. Ah! Para amar-vos um coração só é nada: tivesse eu os de todos os homens para vo-los consagrar, era ainda muito pouco. E que ingratidão seria pois a minha se fosse ainda dividir o meu entre vós e as criaturas? Não, amor meu; não, não há de assim ser. Quereis todo o meu coração e verdadeiramente todo o mereceis possuir; todo, pois, sem reserva vo-lo quero dar. Dar-vo-lo todo, como devo, não sou capaz, Senhor; tomai-o, pois, por vós mesmo; fazei que em verdade eu posso dizer-vos: “Sois o Deus do meu coração”. Ah! Meu Redentor, pelos merecimentos da vida abjeta e cheia de tribulações, que neste mundo tivestes, dai-me a verdadeira humildade, que eu não viva senão no desprezo e na vida oculta. Fazei que com amor eu abrace enfermidades, dores, afrontas, perseguições, penas interiores e todas as cruzes que de vossa mão me venham; ame-vos eu e depois disponde de mim como mais vos agradar. Ó coração de Jesus! Por mim de amor abrasado, abrasai o meu coração de ardente amor por vós, e dai-me a graça de ser todo vosso antes de morrer. Amo-vos, ó meu Jesus, que tanto mereceis ser amado e tão vivamente o desejais: amo-vos de todo o meu coração, amo-vos de toda a minha alma. Aumentai mais e mais ainda o meu amor por vós; fazei que, para agradar-vos, eu mortifique incessantemente as minhas viciosas inclinações, os meus gostos, os meus caprichos, que renuncie de uma vez aos meus cômodos, aos meus prazeres, e mais que tudo à minha vontade. Ó meu Jesus! Com as lágrimas nos olhos vos conjuro, dai-me tudo, que tudo me falta. Pobre sou, mas serei rico, só com lançardes sobre mim um olhar de misericórdia. Ah! Meu Jesus! Dulcíssimo meu Jesus! Havei piedade de mim! Maria, minha terna Mãe, protegei-me! Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Pureza de Intenção
Como acabas de ver, Jesus por teu amor não podia fazer mais, e tu em reconhecimento à sua ternura não hás de fazer nada? Não é nada custoso nem extraordinário o que te pede; ele não quer senão que todos os dias faças com a mais possível perfeição todas as tuas ações. Compõe-se o dia do cristão de uma série de atos, uns santos, indiferentes outros. O levantar, o deitar, a oração, a Santa Comunhão, a Santa Missa, as visitas, o trabalho, os passeios, a comida, o sono, aqui tens tu no que pouco mais ou menos se passa a vida do homem. Pois muito bem; queres ser santo e agradar infalivelmente ao Coração de Jesus? Não tens mais do que fazer tudo isto com a maior pureza de intenção e só com vistas de agradar a Deus. Põe em prática aquele conselho de São Paulo:
“Ou vós comais ou bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus”
Se à perfeição tão somente se chegasse, diz Affonso Rodrigues, por ocupações sublimes, grandes elevações do espírito, profundas meditações, alguma escusa podíeis ter, podíeis desculpar-vos de incapacidade, e dizer que voar tão alto não era para vós. Se de vós se exigisse que todos os dias tomásseis disciplinas até verter sangue, que jejuásseis a pão e água, que sempre andásseis descalços, que nunca largásseis os cilicios, podíeis responder que para tanto não vos víeis com forças. Mas nada disto exige de vós Jesus; quer simplesmente que façais bem as cosias que fazeis de ordinário. Talvez hajas até aqui desprezado oferecer a Deus todas as tuas ações, particularmente o despertar, a comida, as recreações; pois começa de hoje a lhe os oferecer; se até agora oravas com pouco fervor, atenção e respeito, toma hoje a resolução de orar melhor de ora avante. Um comerciante a tratar dos seus negócios, uma mãe de família a vela pelo governo da casa, um estudante no meio dos seus estudos, podem assim a pouco custo chegar à perfeição. Bem culpado serias tu, pois, se de um tão fácil meio não lançasses mão para agradar ao teu Deus mais e mais, quando por teu amor, e para fazer-te feliz, ele não poupa nem a sua glória, nem o seu repouso, nem a sua própria vida.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 27-32)