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Cruzes

Cruzes, Tesouros de Cornélio à Lápide

Necessidade das cruzes

Todos os que querem viver virtuosamente segundo Jesus Cristo hão de padecer perseguições, diz São Paulo: Omnes qui pie volunt viver in Christo Jesu persecutionem patientur (2 m 3, 12).

Perguntareis talvez o que significam estas palavras, pois, muitas almas piedosas e cristãs desfrutam, tranquilamente e sem perseguição, uma vida santa.

São João Crisóstomo responde que por perseguição devemos entender todas as dificuldades, os trabalhos, dores que experimentam aqueles que se aplicam à piedade, por causa dos esforços que se veem obrigados a fazer para pôr um freio às suas paixões, praticar a continência, a humildade, a temperança, e aplicar-se ao serviço e ao amor de Deus (Homil. de Cruce).

Jamais, diz São Leão, faltam cruzes nem perseguições, se somos fieis observadores da virtude: Numquam deest tribulatio persecutionis, si numquam desit observantia pietatis (De quadrag. IX, c. I). E como haveremos de viver em todos o tempo piedosamente, acrescenta este santo Doutor, também, em todo o tempo, temos de levar a Cruz: Sicut ergo totius est temporis pie vivere, ita totius temporis crucem ferre (Ut supra).

Santo Agostinho diz que as almas fervorosas sofrem pela má vida dos ímpios (De Morib.). Assim acontecia com o Rei Profeta, que dizia: Via-os prevaricar e me consumia de dor: Vidi praevaricantes, et tabescebam (Psalm. CXVIII, 158).

Por outra parte, as almas piedosas sofrem, muitas vezes, as zombarias que lhes dirigem os ímpios.

Porém, por perseguição, é preciso entender, sobretudo, as tentações do demônio. Por isso, diz o Eclesiástico: Filho meu, quando te dispões a entrar ao serviço de Deus, persevera firme na justiça e no temor, e prepara tua alma para a tentação: Fili, accendens ad servitutem Dei, sta in justitia et timore, et prepara animam tuam ad tentationem (Ecl 2, 1).

É impossível, diz São João Crisóstomo, que quem faça guerra aos maus espíritos esteja imune às humilhações: Impossibile est qui malis bellum indixerit, praesuris careat (Homil. de Cruce).

Não é lícito ao atleta de Deus buscar as delícias; não é lícito aos combatentes entreter-se em festins. E a vida presente é um combate, uma luta, uma guerra, uma arena ardente. Outra época será a do repouso; o tempo atual é o das cruzes.

É preciso, diz São Paulo, passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus: Per multas tribualationes oportet nos intrare in regnum Dei (At 16, 21).

Oportet, é preciso, é necessário, assim deve ser… Porque:

1.° Deus assim o decretou; decretou que nos dirijamos ao Céu pelo caminho do sofrimento. Queiramos ou não, está definido. Levemos, pois, voluntariamente, as cruzes que nos venham, posto que é indispensável que o façamos. Rejeitando-as, aumentaríamos seu peso e seu número, perderíamos o mérito de as havermos levado, bem como a recompensa.

2.° Oportet, é preciso; porque é justo que o Reino de Deus, que é tão grande e belo, compre-se com obras heroicas e sofrimentos. A Cruz é a porta do Céu.

3.° Oportet, é preciso; porque Jesus Cristo, nosso Chefe, abriu o Céu com sua Paixão, seu Sangue e sua Morte;

4.° Oportet, é preciso; porque todos os Santos empreenderam este caminho para chegar à felicidade suprema. Não há outro;

5.° Oportet, é preciso; porque os pecados devem ser expiados com as cruzes, e os movimentos da concupiscência reprimem-se com a dor;

6.° Oportet, é preciso; porque esta vida está plena de misérias, de tentações, de perseguições etc., às quais ninguém pode subtrair-se;

7.° Oportet, é preciso; porque estamos rodeados de inimigos numerosos e implacáveis que juraram nossa ruína; estes inimigos são os demônio, o mundo, a carne;

8.° Oportet, é preciso; porque aquele que não umedeceu seus lábios no cálice das amarguras, não merece desfrutar das delícias;

9.° Oportet, é preciso; porque somos culpáveis; e unicamente com a penitência e as cruzes podemos obter misericórdia.

10.° Oportet, é preciso; a fim de que nos desprendamos do mundo, desprezemo-lo, e demos preferência à graça e ao Céu.

Para chegardes a ser iguais a São Lourenço, é preciso que passeis pela prova do fogo. Para ser semelhantes a São Vicente, é necessário que sofrais com alegria o suplício da grelha incandescente.

A alma, diz Santo Agostinho, tem dois verdugos, que não a atormentam ao mesmo tempo, senão alternadamente: o temor e a dor: quando desfrutais de um bem estar, temeis perdê-lo; e quando o haveis perdido, sofreis tal dor: Sunt duo tortores animae, non simul torquentes, sed sunt cruciatus alternantes, timor et dolor. Quando tibi bene est, times, quando male, doles (In Psalm.).

As cruzes vem de Deus

Os sofrimentos, as cruzes e as provas não se devem atribuir ao demônio, nem à carne, nem a um inimigo qualquer, mas a Deus; pois, desde toda a eternidade, Deus as previu, preparando para cada um de nós as próprias. A uns, Ele prepara umas; a outros, outras; a fim de que, por meio delas, todos nos assimilemos a Jesus Cristo, que sofreu, morreu e ressuscitou.

A Deus atribui o Real Profeta todas as cruzes: Vós nos provastes, experimentastes, Senhor; Vós nos acrisolastes ao fogo, como se acrisola a prata: Probasti nos, Deus; igne nos examinasti, sicut examinatur argentum (Sl 65, 10). Temos passado pelo fogo e pela água; mas nos conduzistes a um lugar de refrigério: Transivimus per ignem et aquam, et eduxisti nos in refrigerium (Sl 65, 12). Vós nos cingistes com o cíngulo da dor (Sl 65, 11). Até quando Vós nos dareis a beber lágrimas com abundância? Cibabis nos panis lacrimarum, et potum dabis nobis in lacrimis. mensura (Sl 79, 6).

Deus deu-me bens, disse Jó, e Ele os tirou; aconteceu o que o Senhor dispôs: bendito seja o Nome do Senhor: Dominus dedit, Dominus abstulit, sicut Domino placuit, ita factum est: sit nomen Domini benedictum (Sl 1, 21). Não disse Jó: Deus deu-me bens, e o demônio os tirou, senão: Deus deu-me bens, Deus os tirou.

Manifestarei a Paulo, disse o Senhor, o quanto há de sofrer por meu Nome: Ego ostendam illi quanta oportet eum pro nomine meo pati (At 9, 16). Aquele que operava contra o nome de Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, devia sofrer por este sagrado Nome: Ó severidade plena de misericórdia! Qui paciebat contra nomen, patiaturpro nomine: ó saevitia misericors! (De Laudib. Paul.).

As cruzes que Deus envia-nos no tempo, vem sempre de sua misericórdia: Se Deus não entregasse a humanidade aos sofrimentos na terra, começaria sua justiça eterna e terrível.

Que padeçam os maus, dirá alguns, é justo, porém, os bons?! Fato é que os bons nascem culpáveis; com as cruzes purificam-se mais e mais, e aumentam o número de suas coroas; sem as cruzes tornar-se-iam maus, e não acharíamos mais conformidade entre eles e Jesus Cristo.

Os bons sofrem para:

1.° Obter a conversão dos maus; e

2.° Para expiar seus pecados.

Por outra parte, costuma-se ter uma má ideia das cruzes; as cruzes são um tesouro. Nada é mal senão o pecado. O trabalho a quem o patrão paga sua jornada, pode reclamar de que lhe tenham feito trabalhar? O soldado poderia achar injusto que lhe exercitem e enviem-lhe ao combate?

Deus ama aqueles a quem envia cruzes

Repreendo e castigo a todos os que amo, diz o Senhor no Apocalipse: Ego, quos amo, arguo et castigo (Ap 3, 19).

Jesus Cristo envia cruzes aos fiéis:

1.° Para aumentar seus méritos;

2.° Para mantê-los na humildade;

3.° Para fazer-lhes expiar seus pecados;

4.° Para manifestar com maior brilho sua bondade, seu poder e sua sabedoria, como sucedeu quando da ressurreição de Lázaro, e como o experimentaram o cego, o paralítico, os mártires etc.

As cruzes inspiram valor

Em todas as cidades por onde passo, diz o grande Apóstolo, o Espírito Santo me diz que me aguardam cadeias e tribulações. Porém nada disto temo, nem aprecio mais minha vida que a mim mesmo ou a minha alma; contente estou, conquanto que, desta forma, conclua felizmente minha carreira e cumpra com o ministério recebido do Senhor Jesus: Spiritus Sanctus per omnes civitates mihi protestatur, dicens: Quoniam vincula et tribulationes me manent. Sed nihil horum vereor, nec facio animam pretiosiorem quam me, dummodo consummem cursum meum, et ministerium verbi quod accepi a Domino Iesu (At 20, 23-24).

Estou pronto não somente para ser preso, senão também a morrer pelo Nome do Senhor Jesus: Ego enim non solum alligari sed et mori paratus sum propter nomen Domini Jesu (At 21, 13).

O valor heroico de São Paulo foi imitado por milhares de mártires e pelos Santos de todos os séculos. Se as cruzes fossem tão pesadas, como o dizem os cegos partidários do mundo, não teriam tantos Santos subido aos Céus com passo tão firme, tão rápido e alegre. Os maiores Santos sempre foram aqueles que mais cruzes receberam; e, como o grande Apóstolo, transbordaram de alegria em meio a todas as suas provas; nenhum trabalho podia lhes deter.

De Deus advém a força necessária para sofrer as cruzes

Tenho padecido perseguições e humilhações, diz São Paulo a Timóteo, e quão imensas foram! Porém, o Senhor me salvou de todas elas (2 m 3, 11).

Estou com ele na tribulação, diz o Senhor; Eu o porei a salvo e o cumularei de glória: Cum ipso sum in tribulatione; eripiam eum, et glorificabo eum (Sl 90, 15). Nada temas, diz o Senhor pela boca de Isaías, pois Eu sou teu sustento: Ne timeas, ego adjuvi te (Is 41, 13).

Quem foi aquele que esperou por Deus na adversidade, e foi ignorado? Vede a José, a Jeremias, a Daniel, aos três jovens da fornalha, a Jó, a Tobias, à viúva de Naim, aos centurião, ao bom ladrão, aos apóstolos, aos mártires etc.

Quão grande é o número das cruzes

Em sua segunda Carta aos Coríntios, São Paulo faz-nos uma abreviada enumeração das cruzes, compreendendo tão somente nela as cruzes que vem dos perigos: Encontrei-me muitas vezes em perigo nas viagens, perigos de rios, perigos entre os ladrões, perigos da parte de meus parentes, perigos nas cidades, perigos nos desertos, perigos no mar, perigos entre os falsos irmãos: In intineribus saepe, perivulis fluminum, periculis latronum, periculis ex genere, periculis in civitate, periculis in solitude, periculis in mari, periculis in falsis fratribus (2 Cor 11, 26).

O Apóstolo passa logo a outras cruzes: Tenho vivido, diz, em meio a trabalhos e penas, sofrendo vigílias, com fome e sede, com frio e nudez (2 Cor 11, 27). Temos sofrido toda sorte de tribulações: combates por fora; e, por dentro, temores: Omnes tribulationem passi sumus: foris pugnae, intus timores (2 Cor 7, 5). Cruzes por causa de contratempos, fúrias, tristezas, aflições, perdas, decepções, zelos, maledicências, calúnias, etc. Cruzes por causa de enfermidades que nos afligem ou afligem a nossos parentes e amigos etc. Cruzes por causa da morte de um pai, uma mãe, um esposo, uma esposa, de um filho etc.

Havendo o pecado entrado no mundo, trouxe toda classe de misérias, de tribulações, de calamidades etc.

Vantagens que as cruzes proporcionam

As cruzes dão-nos uma semelhança perfeita com o Filho de Deus, Jesus Cristo crucificado; o que é uma vantagem e uma dignidade imensa. Parecendo-nos a Jesus Cristo e levando sua cruz, tomaremos parte em sua glória eterna. As cruzes não somente dão-nos uma perfeita semelhança a Jesus Cristo, senão que, por meio delas, convertemo-nos em irmão seus, filhos de Deus e seus herdeiros.

As cruzes, diz São Gregório, aumentam nosso zelo pelas boas obras: Studium bonae operationis ipsa adversitas auget (Pastor). Sucede com o homem o mesmo que com o fogo, que cobra forças à medida que lhe agitam os ventos, acrescenta o mesmo Santo: Sic ignis flatupremitur eu crescat (Ut supra).

Os sofrimentos são úteis e necessários para voltar a levantar-se e curar a natureza decaída; são nosso supremo bem.

Se fosse a pedra inteligente, não deveria alegrar-se com os golpes do cinzel, que, cortando-a, converte-a em elegante estátua? Se a madeira fosse inteligente, não sofreria com paciência que o formão a desbastasse, polindo-a e transformando-a em trono? O justo deve, pois, alegrar-se das aflições, e sofrê-las com alegria; pois as aflições são para o fiel o que é o fogo para o ouro, a lima para o ferro, o cinzel para a pedra, o formão para a a madeira, o moinho para o trigo etc.

As cruzes são muito vantajosas aos pecadores para fazer-lhes voltar a si mesmos e fazê-los encontrar a conversão.

Cercarei com uma cerca de espinhos o caminho que seguis, diz o Senhor por boca de Oseias: Sepiam viam tuam spinis (Os 2, 6). Então dirá a criatura extraviada: Voltarei ao meu primeiro esposo: Et dicet: Revertar ad virum meum priorem (Os 2, 7). Deus cerca com espinhos os caminhos dos pecadores, quando os detém e os impede de cair no pecado, enviando-lhes enfermidades, arrependimentos, e expondo-os aos ódios e decepções: estas são outros tantos espinhos de que Deus se serve para fechar a porta do pecado aos prevaricadores. Ele retira dos pecadores as ocasiões próximas de queda, o que é uma grande misericórdia de Deus, ainda quando o pecador, devorado pela concupiscência, possa achar rude e cruel a conduta da Divina Providência.

Voltando a si mesma, sobrecarregada pelos sofrimentos, a alma culpável e adúltera, diz: Voltarei a meu primeiro esposo: Revertar ad virum meum priorem; isto é, voltarei a Deus, a Quem eu abandonei. Ela fala assim, diz São Gregório, porque, abatida sob o peso da adversidade, deseja e busca a Deus como verdadeiro bem e como único capaz de aliviá-la; e vê, por fim, que não encontrou mais que decepções, amarguras e agudos espinhos nos pretendidos prazeres e vantagens que desejava e buscava fora de Deus.

E a razão disso está em que, quando a alma começa a ser rasgada pelos espinhos e ferida cruelmente pelo mundo que amava, compreende perfeitissimamente que era muito mais feliz com seu primeiro Esposo, que é Deus. Assim, caiu o pródigo em si mesmo, quando de todas as partes chovem penas sobre ele, e aniquilam-lhe. Ordinariamente, a adversidade emenda e corrige aqueles a quem uma vontade depravada corrompeu (Lib. Moral.).

Assim como o homem, ao pecar, apaga o que é de Deus, diz Santo Anselmo, assim Deus, ao castigá-lo, apaga o que é do homem: Sicut homo, pecando, rapit quodDei est, ita Deus, puniendo, aufert quod hominis est (Lib. de Similit.).

Ouvi a Santo Agostinho: Se sois ouro, porque temeis o fogo? Somente quando os golpes do moinho vos tiverem separado da palha, aparecereis como éreis na espiga. Se sois fruto da oliveira, porque temeis a prensa? Vossa qualidade poderá se conhecer somente quando o peso triturador do lagar vos tiver separado das borras[1].

Ouvi o mesmo Doutor: A uva pende da videira, a oliva da oliveira; geralmente, estes dois frutos estão destinados ao lagar. Enquanto estão unidos à árvore, estes frutos gozam do ar livre; porém, nem a uva transforma-se em vinho, nem a oliveira em azeite, senão pela ação do lagar. Assim são os homens que Deus predestinou antes de todos os tempos para serem perfeitamente semelhantes a seu Filho único, o Qual, sobretudo, em sua Paixão viu-se sujeito à pressão do lagar.

Antes de chegar a ser escravos de Deus, os homens gozam no mundo de uma espécie de deliciosa liberdade, são como as uvas e as olivas na árvore. Porém, já que está escrito: Filho meu, quanto te consagrares ao serviço do Senhor sabe que te apresentas ao lagar, ali será quebrantado, esmagado, prensado, não para que pereça na terra, senão para que se converta em vinho requintado e azeite dulcíssimo, destinado à adega de Deus. Será despojado dos desejos carnais, como o suco da uva é separado da casca e das folhas. Por isso, diz o Apóstolo, Despojai-vos do homem velho, e revesti-vos do novo. Tal transformação pode-se verificar somente no lagar[2].

Santo Antíoco diz: Assim como é difícil que a cera receba a marca de um selo, a não ser que se amoleça e derreta ao fogo, assim tampouco pode o homem receber a marca divina se não se sujeitar às cruzes, aos trabalhos e às provas[3].

Deus, pela boca de Isaías, ensina-nos a utilidade das tribulações: Puxar-vos- ei o freio para que não vos despenques: Infrenabo te (tribulatione) ne intereas (Is 48, 9). O sofrimento é um freio poderoso.

Jeremias diz: o Senhor enviou do Céu o fogo das tribulações em meus ossos, e me cumulou de ciência; estendeu uma rede diante de meus pés para impedir-me de cair no mal (Lm 1, 13). O sofrimento é a rede com que Deus pesca aos homens, tira-os da água envenenada do vício, e os atrai a seu coração. Deus não concede nenhuma graça aos homens sem fazê-la preceder de alguma adversidade.

As aflições dão lugar a mui meritórios exercícios das virtudes audaciosas e heróicas:

1.° As provas que caíram sobre Jó, fizeram-lhe perfeito;

2.° A cegueira formou e santificou Tobias;

3.° A calúnia imortalizou a José;

4.° A perseguição purificou a Davi;

5.° Os leões deram a conhecer a virtude de Daniel;

6.° As fornalhas ardentes santificaram aos jovens…

Perguntaram-se alguns Doutores por que Jó, atormentado por graves e numerosas tentações, saiu vitorioso da prova, e porque Adão cedeu a uma ligeira súplica de Eva, perdendo-se a si e a toda a sua raça. Santo Agostinho no-lo explica, dizendo: Jó, diz Agostinho, foi vencedor sobre o lixo; Adão foi vencido no paraíso: Vincit homo (Job) in stercore; victus est (Adam) in paradiso (Homil.). Assim, pois, os sofrimentos fazem-nos vitoriosos, enquanto que as delícias abatem-nos. As dores e adversidades de Jó firmam-lhe na virtude: as delícias de que Adão desfrutava preparam sua queda e fazem-lhe escravo do demônio.

Os homens maus são úteis aos bons porque lhes cumula de cruzes

Como servem os maus aos bons? – pergunta-se Santo Agostinho. Não é vos adulando, nem vos acariciando, senão perseguindo-vos. Os perseguidores foram para os mártires o que a lima e o martelo são para o ferro e o ouro, e os moinhos para o trigo. Os maus consomem-se para purificar os bons; são para estes o que a palha é para o ouro posto sob o fogo; a palha consome-se e vira cinza, porém, o ouro fica provado[4].

Felicidade e alegria que as cruzes garantem

Estou inundado de consolo, transbordo de alegria em meio a todas as minhas tribulações, diz São Paulo: Repletus sum consolatione, superabundo gaudio in omni tribulalatione nostra (2 Cor 8, 4).

Sobrecarregado pelos padecimentos, diz São João Crisóstomo, Jesus Cristo alegrava-se: sofrimentos corporais, alegrias espirituais. E não são as cruzes que geram a alegria; a alegria procede do fato de que padecemos por Jesus Cristo (Homil. de Cruce).

Os Apóstolos, depois de terem sido açoitados, retiraram-se muito contentes por haverem sido considerados dignos de sofrer aquele ultraje pelo Nome de Jesus: Ibant gaudentes, quoniam digni habiti sunt pro nomine Jesu contumeliam pati (At 5, 41).

Notai esta expressão: Retiraram-se muito gozosos porque haviam sido considerados dignos de sofrer. As cruzes são, portanto, um grande favor, e proporcionam uma felicidade imensa.

Regozijai-vos, diz o Apóstolo São Pedro, porque tomais parte nos sofrimentos de Jesus Cristo; assim, sereis cumulados de alegria na manifestação de sua glória. Bem-aventurados sois todos vós que vos vedes ultrajados pelo Nome de Jesus Cristo, porque a honra, a glória e a virtude de Deus e de seu Espírito descansam sobre vós. Se alguém sofre como cristão, que não se envergonhe disso: antes, glorifique muito a Deus[5].

São Pedro indica dois motivos que devem nos levar a sentir alegria nas provas. Estes motivos são:

1.° Que, com as cruzes, participamos dos méritos da paixão de Jesus Cristo; e

2.° Que, tendo sofrido com Jesus Cristo, ressuscitaremos para entrar na glória eterna.

As cruzes são, pois, preciosas; devemos recebê-las com regozijo. Com efeito:

1.° As cruzes separam-nos deste mundo; impedem-nos, diz São Gregório, de confundir o caminho com a pátria: Ne viam pro patriam diligamus (Moral., c. XXIII). Se Deus no-las envia, diz Santo Agostinho, é para que, ao dirigir- se o viajante à sua pátria, não tome a pousada por sua casa, e não se apegue a ela: Ne viator tendens ad patriam, stabulum pro domo diligat (In Sentent. CLXXXVI);

2.° É preciso nos regozijar nas cruzes, porque são o sinal da eleição, da predestinação e da filiação dos filhos de Deus. O Senhor, diz São Paulo aos Hebreus, castiga aquele a quem ama; e a qualquer um que receba por filho seu açoita-o, e prova-lhe com adversidades: Quem enim diligit Dominus, castigat, flagellat autem omnem filium quem recipit (Hb 12, 6).

Isto faz Santo Agostinho dizer: Se não recebeis sofrimentos nem açoites, não deveis vos contar no número dos fieis: Si exceptus es apassione flagellorum, exceptus es a número fidelium (Lib. de Pastor.).

Santo Ambrósio qualifica a paciência nas cruzes com o nome de mãe dos fieis (Lib. I Epist. IV).

O Anjo disse a Tobias quando este havia se tomado cego: Porque eras agradável ao Senhor, foi necessário que a tentação te provasse: Quia acceptus eras Deo, necesse fuit ut tentatio probaret te (Tb 12, 13).

Sob o golpe das tribulações, o cristão, diz Santo Efraim, deve se manter firme como uma bigorna: ainda que ferida sem cessar, permanece firme e inalterável. O cristão deve tomar a Jesus Cristo por trincheira e fortaleza; refugie-se Nele, a tal ponto que, ainda que exploda a guerra, diga com o Salmista: Sede para mim um Deus protetor, um lugar de refúgio e salvai-me (De fide., t. I);

3.° É preciso regozijar-se nas cruzes, porque elas nos fazem semelhantes a Jesus crucificado, ao Filho único de Deus, e obtém-nos seu apoio; porque, como diz o grande Apóstolo, não é tal o Pontífice que temos que seja incapaz de compadecer-se de nossas penas e enfermidades: Non enin habemus Pontificem qui non possuir compati infirmitatibus nostris (Hb 4, 15);

4.° É preciso regozijar-nos nas cruzes, porque nos livram dos grandes males do homem, o pecado e a concupiscência. As cruzes são nosso maior bem; são uma expiação para os pecados cometidos, e um antídoto que nos impede de regressar à enfermidade. Elas são o sal que preserva da corrupção;

5.° É preciso regozijar-nos nas cruzes; porque, se vos afligis por elas, vós as fareis mais pesadas, diminuireis vosso mérito, e até podereis perdê-lo. Se, pelo contrário, vós as sofreis com resignação e alegria, conseguireis torná-las leves, e aumentareis vosso mérito;

6.° Quando nos regozijamos nas cruzes, estas dão nascimento às maiores virtudes, que encontram ocasião de desenvolver-se e agigantar-se. Vede o soldado no campo de batalha combatendo à vista de seu general e esperando carreira e honras; que entusiasmo lhe anima! Que prodígios de valor! Uma bala de canhão leva-lhe talvez um braço ou uma perna, e apenas sente o golpe… As cruzes fazem fáceis e doces as mais difíceis virtudes.

7.° As cruzes elevam ao homem; fazem-lhe superior às coisas da terra. Sujeito à prova, ele põe no Céu seus afetos e esperanças. Semelhante à águia que, pairando nos ares, despreza as profundezas e vê de muito alto os sucessos, ri­se das ondas e dos despojos que elas arrastam.

Gerson diz mui admiravelmente: Assim como a arca de Noé elevava-se mais e mais na medida em que cresciam as águas do dilúvio, assim também a alma magnânima, dócil e resignada eleva-se à medida que as águas das tribulações sobem, e desencadeiam-se e são mais impetuosas (Serm. de Omnibus Sanctis, Part. II).

Assim é que as almas generosas, que amam ternamente a Jesus Cristo, nada acham mais agradável, mais invejável nem mais doce que sofrer por Ele. Então, estas almas são semelhantes a Jesus Cristo, e Jesus Cristo derrama o orvalho dos divinos consolos sobre estas cruzes tão firmes; seus espinhos desaparecem, e já não tem mais que flores suaves e requintados frutos. Tal é a ideia expressa pelo Real Profeta mediante as seguintes palavras: A proporção das muitas dores que atormentam meu coração, vossos consolos, Senhor, encheram de alegria a minha alma: Secundum multitudinem dolorum meorum in corde meo, consolationes tuae laetificaverunt animam meam (Sl 93, 19).

São Paulo emprega a mesma linguagem: À medida que aumentam em nós as aflições por amor de Cristo, aumenta também nossa consolação por Cristo: Sicut abundant passiones Christi in nobis, ita et per Christum abundat consolatio nostra (2 Cor 1, 5). Transbordo de gozo em meio a todas as minhas tribulações: Superabundo gaudio in omni tribulalatione nostra (1 Cor 7, 4).

O Senhor deu a Moisés um cajado que, submerso nas águas amargas, tornava-as doces; assim também a Cruz de Jesus Cristo dulcifica todos os nossos padecimentos.

Uma grande Santa dizia: Como no Céu não há aflições, desejo permanecer na terra, para poder sofrer muito tempo por Jesus Cristo.

Dignidade e glória que se encontram nas cruzes

Bem-aventurados sereis, diz o Apóstolo São Pedro, se sois infamados pelo Nome de Jesus Cristo, porque a honra, a glória e a virtude de Deus e seu próprio Espírito repousam sobre vós: Se exprobramini in nomine Christi, beati eritis; quoniam quod est honoris, gloriae et virtutis Dei, et qui est ejus Spiritus, super vos requiescit (1 Pd 4, 14).

Assim, sobre aqueles que sofrem por Jesus Cristo repousam:

1.° A honra de Deus;

2.° Sua glória;

3.° Sua força e seu poder;

4.° O Espírito Santo.

Agora, exporemos as razões que provam que as cruzes que se levam por amor a Jesus Cristo vem a ser o princípio de uma grande dignidade e de uma grande glória:

1.° Levá-las é um ato heroico de paciência, de força e de caridade cristã;

2.° São uma veste real;

3.° Jesus Cristo deu sublimidade aos sofrimentos; glorificou-os e quase os divinizou morrendo na Cruz, assim como deificou a humanidade unindo-a a Deus, de tal maneira que fez ao homem Verbo, e este homem é real e propriamente Deus. Assim como se diz, com verdade, que Deus se encarnou, fez-se homem, dizemos igualmente que Deus sofreu, foi crucificado e morreu. Jesus Cristo, pois, consagrou em Si mesmo, em sua Humanidade as cruzes, as aflições, as provas, os sofrimentos, a paciência, a pobreza, a humildade, a obediência e o desprezo de si mesmo e do mundo.

4.° A razão que prova que é uma grande dignidade e uma grande glória sofrer com paciência por Jesus Cristo, é que Ele, o Espírito Santo e toda a Santíssima Trindade é honrada da maneira mais excelente, não com a imolação de animais, senão com os sacrifícios daqueles que sofrem; estes sacrifícios são a obra de um ser racional; são a imitação do sacrifício de Jesus Cristo na Cruz, e, de certo modo, não formam com Ele senão um só e mesmo sacrifício, de um preço infinito.

5.° Ademais, Deus promete uma riqueza infinita e uma brilhante coroa aos que levem suas cruzes; Ele mesmo até prepara-lhes os lauréis do martírio; porque uma longa paciência nas aflições tem o mérito do martírio. Aqueles que sofrem com paciência tornam-se semelhantes a Jesus Cristo glorificado, assim como semelhantes foram a Jesus Crucificado;

6.° A Cruz, santificada pelo contato do Corpo de Jesus Cristo, é digna de honra; e não somente ela, senão tudo o que pode ser sua imagem[6];

7.° As cruzes e as tribulações iluminam maravilhosamente à Igreja; pois, nenhuma seita exista que tenha tantos mártires e Santos como os que honram a nossa Religião Católica Apostólica Romana.

É preciso desejar as cruzes

Ou sofrer, ou morrer, exclamava Santa Teresa: Aut pati, aut mori (In ejus vita). Senhor, viver sempre para sofrer sempre, dizia São João da Cruz (In ejus vita). Senhor, não me livreis desta Cruz, a não ser que queirais enviar-me outras maiores, repetia São Francisco Xavier (In ejus vita).

É preciso desejar as cruzes, porque elas são o caminho da perfeição. Santo Inácio de Loyola, interrogado sobre qual era o caminho mais curto, mais seguro e mais lucrativo para ser perfeito, respondeu: Este caminho consiste em sofrer e suportar grandes e numerosas provas por amor a Jesus Cristo. Pedi, acrescentou ele, esta graça a Deus; porque aquele a quem Deus a concede, recebe muito; neste único dom encontram-se encerrados numerosos e grandes benefícios (Ita Ribaden, in ejus vita).

As maiores cruzes não são nada quando comparadas com a recompensa que lhes está destinada

Os sofrimentos da vida presente, diz São Paulo aos Romanos, não são comparáveis com aquela glória vindoura que há de se manifestar em nós: Non sunt condignae passiones hujus temporis ad futuram gloriam quae revelabitur in nobis (Rm 8, 18).

Se pensais que um débil sofrimento, de curta duração, assegura-vos uma glória eterna, se pensais em quanto sofreu Jesus Cristo por vós, facilmente levareis vossa Cruz, por mais pesada que seja.

Nem sempre temos de tragar água amarga, diz São Bernardo; durante toda a eternidade beberemos as cristalinas águas da vida. Das águas amargas caem somente gota após gota sobre nós; ao passo que beberemos, um dia, no rio, no oceano da vida, por todos os séculos dos séculos (Serm. I).


Referências:

[1]  Si aurum es, quid times ignem? Eris in fornace, sed ignia tibi sordes tollet. Si frumentum es, quid times tribulam? Non apparebis quails antea eras in spica, nisi tribula conterendo a te separaveritpaleas. Si oleum es, quid times pressuram preli? Non declarabitur species tua nisi etiam pondus lapidis a te separaverit amurcam (De Temp. Barb., c. III).

[2]  Uva pendet in vitibus, et oliva in arbori bus, His enim, pro duobus fructibus solent torcularia praeparari. Et quamdiu pendent in fructotis suis , tamquam libero aere perfruintur; et nec uva vinum est, nec olive oleum ante pressuram. Sic sunt et homines, quos praedestivait Deus ante secula, conformes fieriimaginis unigeniti Filii, qui praecipue in passione magnus botrus expressus est. Hujusmodi eergo homines, antequam accedat ad servitutem Dei. Fruuntur in hoc século tamquam deliciosa libertate, velut uvae aut olivae pendentes; sed quoniam dictum est: Fili, accendens quisque ad servitutem Dei, ad torcularia se venisse cognoscat; contribulabitur, conteretur, comprimetur, non ut in hoc seculo pereat, sed it in apothecas Dei defluat. Exuitur carnalium desideriorum integumentis quase vinaceis. Propter quae et Apostolus dicit: Exuite vos veterem hominem, et induite novum. Hoc totum no fit nisi de pressura (In Psalm. LXXXIII).

[3] Sicut cera, nisi recalescat aut permolliatur, non facile in se recipit sigilli impressionem; ita et homo, nisi laborum et multivariae infirmitatisprobetur exercitio (Homil. LXXIX).

[4]  Quomodo mali serviunt bonis? Non obsequendo, sed persequendo; quomodo persecutores martyribus; quomodo limae vel mallaei auro; mollae tritico; ut illi consummantur; quomodo in fornace aurificis palea servit auro, ubi palea consummitur, aurum probatur (Serm. LXXVIII).

[5] Communicantes Christi passionibus gaudete, ut et in revelatione gloriae ejus gaudeatis exultantes. Si exprobramini in nomine Christi, beati eritis; quoniam quod est honoris, gloriae et virtutis Dei, et qui est ejus Spiritus, super vos requiescat. Si autem ut Christianus, non erubescat; glorificet autem Deum in insto nomine (cf. IPetr. IV, 13-16).

[6] Tudo o que pode ser sua imagem, isto é, tudo quanto seja capaz de evocar a reflexão de nossa inteligência, a recordação de nossa memória e às nossas mais puras intenções e sentimentos, contribuindo para dar forma e vida às mais variadas virtudes cotidianas, quer familiares, quer sociais ou profissionais (Nota do tradutor).