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Simulação

Na linda natureza de Deus
“Ora, que tapeação!” gania a voz exaltada de Jorge, debaixo duma árvore. Pelo tom devia ser mesmo alguma desilusão séria.

Os rapazes, logo se acercaram:

Que história é essa de tapeação?” perguntaram três a uma voz.

“Refinado logro! Peguei um elatro e coloquei-o de costas, bem quietinho. Olhava-me tão sereno, que pensei que não podia mexer-se. Fazia como se não tivesse uma centelha de vida. De repente — hup! — Um salto, e desapareceu simplesmente, à francesa! Abandonou-me sem mesmo dizer adeus! Fiquei logrado!”

Desiludidos os rapazes já iam debandar, quando o professor aproveitou o ensejo para uma conversa.

“Sentem-se um pouco! É tão interessante, quanto ‘engano’ ocorre no reino animal e vegetal, e que aplicação nos sugere.

O fingimento mais comum é o da lebre, o tigre, a perdiz, o arminho, o gafanhoto, etc., porque esses animais imitam as cores do meio em que se acham, a fim de não serem notados por seus perseguidores”.

O Silva pediu a palavra:

“Comigo aconteceu, não há muito: Desde alguns dias, uma cigarra me incomodava com seu ‘cricri’ perto da barraca, numa moita. Eu queria acabar com aquilo. Aproximei-me com cuidado. Minha flautista, porém, viu-me e se calou. — Já te pego — pensei comigo e dei uma busca em todos os ramos do arbusto. Nada achei. Devo ter-me enganado; ela estará em outra moita! Voltei à barraca… Nesse momento recomeçou a música. ‘Espera malandro, que te mostro com quantos paus se faz uma canoa.’ Sacudi violentamente o arbusto, e como era de se esperar, a cigarra verde caiu, mas para saltar, num abrir e fechar de olhos, para outra moita. Também lá procurei — tudo em vão! A cigarra também ilude, sua cor é o verde das folhas!”

O professor continuou:

“Há Animais tão hábeis neste particular, que podem adaptar-se mesmo a situações do momento, o camaleão, o caranguejo, o polvo mudam de cor, segundo o meio ambiente. Mais curiosa é a borboleta branca da couve (Pieris rapae), a qual, a fim de não ser percebida pelos pássaros, tem a parte posterior do corpo, ora clara, ora escura, conforme o objeto em que pousa.

Ainda há animais que se adaptam não somente à cor, mas também à configuração do ambiente. Assim, julgamos ver uma folha seca, queremos agarrá-la, e eis que vai voando uma borboleta policroma (como, por exemplo a Kallima inachis da Malásia). Outra vez fazemos menção de pegar um raminho quebrado e um ‘louva-a-deus’ nos salta de debaixo da mão. Existem borboletas cujas asas, na face superior, brilham dos mais belos matizes, enquanto a inferior tem uma cor tal que dificilmente se poderá distinguir o inseto de uma folha, quando pousa de asas dobradas sobre um arbusto.

E agora, rapazes, vamos a ver se são capazes de responder a esta pergunta: Por que tem a maçã cor verde, quando não está madura? E por que nos sorri, mesmo de longe, com faces escarlates, quando amadurecida? Aliás, por que, em geral, a fruta é verde antes de amadurecer, e o mais das vezes tem cores vistosas, depois que amadurece?”

“Deve ser pelo seguinte”, aventurou alguém, “porque na fruta verde a semente não está ainda desenvolvida; deve ser protegida pela cor verde do fruto, o qual pode esconder-se entre a folhagem. Tendo a semente chegado à maturidade, as cores brilhantes da fruta servem para atrair os pássaros, a fim de que estes propaguem a semente.”

“Muito bem! Acertou! No entanto, há coisa mais notável. Atenção. Existe um besouro que leva o fingimento até ao heroísmo. Chama-se por isso Anobium pertinax, o que significa, mais ou menos, o morto recalcitrante. Esse besourinho, ao mais leve contato fica estarrecido e não bole mais, por mais que se mexa com ele. Se o picamos, fica impassível! Aproximamo-lo do fogo, não dá sinal de vida! Finalmente, queima mesmo, sem se dar por achado”.

“Mas então é um verdadeiro herói, um mártir,” exclamaram os rapazes.

“Tanto assim não; falta-lhe a consciência, imprescindível ao heroísmo. Esse besouro é construído de tal modo, que ao mais leve toque é atacado de paralisia total. Não pode mexer-se, embora o queira. Não é mérito seu, visto ser fenômeno da natureza. Nós, porém, que o observamos, admiramos nisso o Pai Celeste que cuida também deste bichinho, pois quase todos os inimigos dele se alimentam de animais vivos; ao tocarem no anobium, este é ferido de morte simulada e é deixado incólume pelo inimigo.

Parece incrível, mas há fenômeno ainda mais pasmoso. Os citados casos de imitação na fauna servem para proteger a vida dos animais. Ficaremos boquiabertos, todavia, ante o ardil com que certas plantas adquirem o pão de cada dia. E mais uma vez surge a pergunta: onde o aprenderam?

Em Java, por exemplo, existe uma planta gigantesca, com flores de metro e tanto de comprimento. ‘Rafflesia’ se chama. Ela exala um penetrante cheiro de carniça. Qual será a finalidade dessa anomalia — mau cheiro de carne podre numa flor! Muito simples. As moscas lançam-se como doidas sobre a promissora “carniça” onde vão desovar. Verdade é que todas as larvas perecem, porque de imitação de carniça nem mesmo as moscas podem viver. A ‘Rafflesia’, porém, conseguiu o seu fim, as moscas, em procura da carne, procederam no interior da flor a uma polinização em regra.

Do mesmo modo finge a candeinha da Europa meridional (Arum Drocunculus), cuja flor, além do penetrante cheiro de carniça, ainda imita a cor púrpura da carne. Quando o sol brilha, os besouros lançam-se em chusma sobre ela, passeiam pelo interior, e inebriados pelo cheiro, executam uma dança doida. Parece que um ou outro recobra o uso da razão. ‘Isto vai acabar mal; é melhor ir embora’. Resolutamente se arranca da multidão enlouquecida e galga a beirada da corola. Novamente livre! Diante dele a vida pura, cheia de sol! Mas não! Ele não pode resistir ao aliciamento do odor de carne! Voltemos— Voltemos à companhia ensandecida! E tomba para trás e a dança continua; um deixa uma perna, outro uma asa… À noite, quando a flor perde seu cheiro característico, eles voltam à realidade e se afastam, miseravelmente aleijados. A ardilosa planta sorri para consigo mesma: ‘Eles não obtiveram carniça e pagaram bem caro o divertimento, mas realizaram às mil maravilhas a fecundação da flor!’”

“Senhor professor”, observou Guilherme, “do bagre também se conta um logro semelhante. Dizem que ele se enterra na lama de maneira que apenas as barbas fiquem de fora. Os peixes menores tomam-nas por gordos vermes e, quando querem abocanhá-las, o bagre os apanha com sua boca enorme”.

“E a formiga-leão então, essa é mais ladina”, continuou o professor. “Escava uma cova redonda em forma de funil. A areia que, sobra, ela a joga pela borda, de maneira que não fique nenhum obstáculo saliente que barre o caminho aos insetos dos arredores. Quando a armadilha está pronta, deita-se no fundo, cobre-se de areia e espreita a presa. Pobres formigas! Elas vêm para a borda do funil e escorregam diretamente para as garras do esfaimado inimigo. Há, porém, besouros que parecem pressentir o perigo e procuram pôr-se a salvo. A formiga-leão abandona então seu esconderijo e, com sua cabeça em forma de pá lança areia sobre a vítima, até vencê-la.

Ainda mais. Na África Oriental existe um animal ainda mais astuto, chamado ‘flor do diabo’ (Idolum diabolicum). É, no entanto, apesar do nome, um gafanhoto. Traiçoeiro, ele se dependura de uma árvore; asas estendidas, como folhas. Quem o vê assim, nas vivas cores de branco e escarlate pensa que se trata de uma linda flor.

A perna mortífera, dentada como afiada serra, tem a mesma cor verde-claro da folhagem ao redor? Infeliz o descuidado besouro ou borboleta que pouse na ‘inocente flor’. No mesmo momento será triturado pelos aguçados dentes da serra.”

“E então, isso tudo não é falsidade? Não tive, pois, razão se me irritei com o elatro? Tanto fingimento na natureza! — Sou uma inocente flor, venha — e bah! — A flor devora o incauto. -— Ora, sou um pobre verme — e zás! —- O verme come o peixe. — Senhor professor, isso está direito? Mente-se de forma magistral e com refinada dobres! Então, a natureza pode enganar? A pura, virginal, incontaminada natureza?

Naturalmente era o Jorge que se mostrava tão revoltado.

“Calma, meu caro”, sossegou-o o professor. “Sua exaltação vem de que você julga o mundo animal e vegetal do ponto de vista humano. Pode-se falar de justiça, fraude, injustiça ou direito, apenas com referência a uma alma espiritual, inteligente.

Na flora e na fauna não existe pessoa, e portanto, não há como se diz, delinqüente judicial. Bom ou mal, permitido e proibido, pecado e virtude são conceitos desconhecidos ali. Você tem toda a razão julgando que se um homem se comportasse para com outro como a ‘flor do diabo’, a ‘rafflesia’ ou o bagre, ele seria sem dúvida um mentiroso, um fraudulento. Quando observamos, todavia, na fauna e flora, os astutos estratagemas que servem para a defesa da vida e para obter o sustento, desperta-se em nós, mesmo ante estas verificações, grande respeito e veneração para com o Criador, que com tanta solicitude vela por suas criaturas.

Sim, quando refletimos mais profundamente, topamos com fatos sempre mais maravilhosos, revelando-nos que alguém vigia e regula este mundo, para que determinadas espécies animais não se multipliquem demasiadamente (daí seus múltiplos inimigos), mas também que seu número não diminua em excesso (daí o ‘logro’). Divisamos a obra de mão poderosa, estendida sobre toda a criação e à qual tudo obedece.”

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(TOTH, Monsenhor Tihamer. Na linda natureza de Deus. Editora S. C. J., 1945, p. 83-88)