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“Tenho sede”

Capítulo 19: "Tenho sede"

Explica-se literalmente a quinta palavra

Segue-se a quinta palavra mencionada por São João, e para inteligência da qual é preciso acrescentar as outras, pelas quais se exprime o Evangelista, assim os antecedentes como as consequentes. Diz São João:

“Depois sabendo Jesus, que tudo estava comprido, disse, para se cumprir uma palavra, que ainda restava da Escritura — Tenho sede — Tinha-se ali posto um vaso, cheio vinagre, e eles, molhando nele uma esponja, que depois pulverizaram com hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19)

Estas palavras querem dizer o seguinte: Nosso Senhor quis cumprir tudo o que da Sua vida e morte tinham antecipadamente sabido e predito os profetas inspirados pelo Espírito Santo; e porque estando cumprido tudo o mais só restava, estando sequioso, beber o vinagre, segundo o versículo do Salmo 68: Tendo eu sede, deram-me a beber vinagre, disse claramente, Tenho sede; e os que ali estavam, chegaram-Lhe à boca uma esponja ensopada em vinagre, e posta numa cana. Nosso Senhor disse: Tenho sede, para se cumprir a Escritura. Mas porque o disse somente para cumprimento da Escritura, e não porque na realidade tivesse sede e quisesse apagá-la? Pois o Profeta não o predisse, para se realizar a predição; predisse-o, porque tinha previsto o futuro, e disse que havia de acontecer, porque se havia de realizar, ainda que não fosse previsto. Por isso a previsão ou a predição não é a causa do que futuramente há de acontecer; mas o fato, que há de suceder, é a causa dele poder ser previsto ou predito. Descobre-se nisto um grande mistério. O Senhor padeceu, sem dúvida, ardentíssima sede desde o começo da Sua crucificação e esta sede foi sempre aumentando cada vez mais, de modo que foi um dos maiores tormentos, que o Senhor passou na Cruz; pois a perda de sangue em grande quantidade seca, e origina por isso a sede.

Conheci um sujeito, que tendo perdido muito sangue por muitos ferimentos, nada mais apetecia senão água como se nada mais sofresse além da sede no maior auge. O mesmo se lê na vida do mártir São Emeramo (1) que, amarrado a um poste, e muito ferido, só de sede se queixava. Como não havia então Cristo de padecer uma sede de abrasar, tendo derramado muito sangue na flagelação depois de tão fatigado, e tendo depois de cravado na Cruz, quatro fontes abertas a vertê-lo já há tanto tempo e em tanta abundância?! E, apesar disto, tinha silenciosamente suportado três horas tão acerbo sofrimento, e poderia assim continuar até à morte, que já estava próxima. Porque razão, pois sofreu em silêncio e por tanto tempo tamanho martírio, e só quase a morrer o patenteou, dizendo: Tenho sede, senão porque era vontade de Deus, que todos nós soubéssemos que Cristo foi vítima desta nova espécie de tormento? Foi por isto que o mesmo Pai celeste quis que o profeta predissesse que Ele se havia de dar na pessoa de Cristo, e ao mesmo Jesus Cristo, Senhor Nosso, inspirou que, para exemplo de paciência para os Seus fiéis, declarasse que sofria este novo e insuportável martírio. Por isso disse:

«Tenho sede, isto é, falta já no meu corpo toda a umidade; secaram as minhas veias; secou a minha língua; secou o meu paladar; secou a minha garganta; estou todo seco por dentro, se alguém quer regalar-me dê-me de beber»

Saibamos agora a bebida que lhe deram os que estavam próximos da Cruz:

“Estava ali um vaso cheio de vinagre, e eles ensopando nele uma esponja, e tendo-a pulverizado com hissopo, chegaram-lhe à boca”

Ó consolação, ó refrigério! Estava ali um vaso cheio de vinagre, que é nocivo às feridas, e acelera a morte; e por este motivo ali o tinham para mais depressa fazerem morrer os crucificados.
São Cirilo (2) escreve a respeito desta passagem da Paixão o seguinte:

«Em lugar de uma bebida refrigerante e agradável deram-lhe uma prejudicial e azeda»

E isto torna-se mais crível em vista do que São Lucas escreveu no Evangelho

“Escarneciam-nO os soldados, chegando-se a Ele, e oferecendo-Lhe vinagre” (Lc 23)

E posto que São Lucas diga que eles assim fizeram pouco depois que Cristo foi cravado na Cruz, é de crer que eles, quando Lhe ouviram dizer Tenho sede, Lhe deram por uma esponja posta numa cana, o vinagre, que até então por zombaria Lhe tinham oferecido. Em suma, assim como no princípio, pouco antes da crucificação, Lhe ofereceram vinho, misturado com fel (Mt 27), assim também no fim da vida Lhe ofereceu vinagre (Jo 19) nocivo às feridas, para que desde o princípio até o fim, toda a Paixão de Cristo fosse pura e verdadeira paixão sem refrigério nenhum.


Referências:

(1) Vide Surium ad diem 22 septembr.
(2) Lib. 22, cap. 35, in Joan

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 166-170)