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Realeza de Jesus Cristo

Festa da Circuncisão - I. Realeza de Jesus Cristo

I. Sermão para a Festa da Circuncisão

Pregado no 1º de janeiro de 1654 ou 1656.

SUMÁRIO

Exordio. — O poder real e o poder sacerdotal estão intimamente ligados e derivam naturalmente de duas inclinações que existem no Coração humano: a inclinação para Deus ou para a religião e a inclinação para o homem ou para a sociedade.

Proposição e divisão. — Jesus Cristo é simultaneamente rei e pontífice, porque é salvador: Realeza de Jesus Cristo; em que consiste, como Ele a adquiriu e como a exerce; sacerdócio de Jesus Cristo e Sua excelência.

1.º Ponto. — Jesus Cristo veio ao mundo com um poder real: não é uma realeza temporal, como a entendiam os judeus e os próprios apóstolos, mas uma realeza inteiramente espiritual; e por isso, só durante a Paixão é que se ouve falar da Sua realeza: Tu dicis quia rex ego sum. Jesus reina em toda a parte: Christi regnum et nomen ubique porrigitur, ubique regnat ubique adoratur. Tertuliano.

2.º Ponto. — O sacerdócio de Jesus Cristo é muito mais perfeito do que o de Aarão. O nome de Jesus, que encerra todas as maravilhas da realeza e do sacerdócio, é um nome superior a todos os nomes. Amam-se os reis benfazejos, mas não se ama a Jesus, que é o mais generoso dos reis, Jesus, que deu o Seu sangue para a conquista da nossa alma.

Peroração. — Povos, até quando hesitareis entre dois partidos?

«Se Jesus é o vosso rei, prestai-lhe obediência; mas se o vosso rei é Satanás, colocai-vos ao lado de Satanás. O governo de Jesus sobre os vassalos de Satanás há de ser severo. Renovemos o nosso juramento de fidelidade que devemos a Jesus, o nosso grande rei»

Vocabis nomen ejus Jesum; ipse enim salvum faciet populum
E vós lhe chamareis Jesus, porque é Ele quem salvará o vosso povo (Mt 1, 21)

Hoje o Deus de Israel, que veio visitar o seu povo, revestido de carne humana, entra pela primeira vez no seu templo; hoje o grande sacerdote do Novo Testamento, o soberano Sacrificador, segundo a ordem de Melquisedeque, entrega-se nas mãos dos pontífices, sucessores de Aarão, que usava o emblema do seu sacerdócio; hoje o Deus de Moisés submete-se voluntariamente a toda a lei de Moisés; hoje o Inefável, cujo nome é incompreensível, digna-se receber um nome humano que lhe é dado pela boca dos homens, mas por instigação do Espírito de Deus. Que direi eu? Para onde me hei de voltar, cercado de tantos mistérios? Faltarei dá circuncisão do Salvador, ou da imposição do nome de Jesus, desse nome tão amável, que constitui as delícias do céu e da terra, e a nossa única consolação durante a peregrinação desta vida? E tanto a solenidade desta igreja, como um movimento inexprimível do meu coração, me com peitem a falar do nome de Jesus e a mostrar-vos a excelência deste nome, enquanto aprouver a Deus inspirar-m’o com a Sua graça.

Jesus quer dizer Salvador, nome que exprime o afeto e a caridade!

«Minha alma, glorificai o Senhor, e que tudo o que em mim existe louve o seu santo nome» – Benedic, anima mea, Domino (Sl 103, 1)

Falemos do nome de Jesus, desvendemos-lhe o mistério, mostremos a excelência do título de Salvador, e digamos quão glorioso é para o nosso sublime Deus e Redentor Jesus Cristo ter exercido sobre nós tão grande misericórdia e ter-nos salvo com o Seu sangue. Que em todo este templo se repercuta o nome e os louvores do Jesus Salvador.

Ah! Se tivéssemos os olhos bastantemente puros, veríamos toda esta igreja cheia de anjos por todos os lados para nela honrarem a presença do Filho de Deus; vê-los-íamos curvarem-se profundamente ao nome de Jesus, todas as vezes que o houvermos de pronunciar na continuação deste discurso. Curvemo-nos também em espírito; e adorando em nossos corações o nosso amoroso Salvador, roguemos também à Virgem Maria, Sua Mãe, que nos auxilie com às suas piedosas intercessões. Ave-Maria.

Assim como nós temos certas inclinações que são comuns aos animais e que são inteiramente vis, como vil é esta morada terrestre em que estamos cativos, assim também certamente temos outras de natureza mais elevada, pelas quais atingimos de muito perto as inteligencias celestes que estão perante o trono de Deus, cantando noite e dia os seus louvores. Os espíritos bem-aventurados têm dois movimentos maravilhosos. Eles não volvem tão depressa os olhos para si mesmos que não reconheçam logo que a sua luz se deriva doutra luz infinita, e então regressam à sua causa primeira com uma velocidade incrível, e procuram aperfeiçoar-se na sua origem. Este é o primeiro dos seus movimentos. Depois, cada um dos anjos, considerando que Deus lhe dá companheiros, que em igual vida e em igual imortalidade projetam, na mesma intenção, louvar o seu Senhor, cada um deles se sente dominado por um certo desejo de entrar em relação com eles. Todos experimentam uma inclinação reciproca e poderosa; e é esta inclinação que estabelece a ordem nas suas hierarquias e institui entre as suas legiões uma santa e eterna aliança.

Ora ainda que seja verdade que a nossa alma, pelo fato de estar afastada do seu ponto de origem, e de estar constrangida e quase oprimida pelo peso deste corpo mortal, ainda que seja verdade ela deixar apenas manifestar parcialmente esse nobre e imortal vigor que continuamente a devia agitar, descendemos nós contudo duma raça divina, assim como o apóstolo São Paulo o pregou com maravilhosa energia em pleno conselho do Areópago: Ipsius enim et genus sumus (At 17, 29). Aprouve ao nosso sublime Deus, que nos formou à Sua semelhança, deixar cair sobre as nossas almas uma centelha desse fogo celeste que brilha nos espíritos angélicos; e embora façamos uma curta reflexão a nosso respeito, notaremos facilmente essas duas belas inclinações que há pouco admirávamos na natureza dos anjos.

Com efeito, não vemos que, assim que chegamos ao uso da razão, há não sei que inspiração, cuja origem desconhecemos, que nos ensina a chamar por Deus em todas as necessidades da vida? Em todos os nossos incômodos, em todas as nossas necessidades, há um secreto instinto que nos faz erguer os olhos ao céu, como se conhecêssemos que é lá que reside o arbitro das coisas humanas. E este sentimento observa-se em todos os povos do mundo, em que ficaram uns vestígios de humanidade, porque é um sentimento que se desenvolve mais por natureza que por estudo, e nasce em nossas almas mais por instinto que por doutrina.

É um culto que os próprios pagãos impensadamente prestam ao verdadeiro Deus; é o cristianismo da natureza, ou, como lhe chama Tertuliano, «o testemunho da alma naturalmente cristã» – Testimonium animae naturaliter christianae (Apolog., n. 17). É este já o primeiro movimento que a nossa natureza tem de comum com a natureza angélica.

Além disso, parece manifestamente que o prazer do homem é o homem. Daí esse aprazimento sensível que achamos numa conversação honesta. Daí essa familiar comunicação dos espíritos por meio do comércio da palavra. Daí a correspondência das cartas; daí, para ir mais além, os Estados e as Repúblicas. Tais são as primeiras inclinações de tudo o que é capaz de ouvir e de raciocinar. Uma eleva-nos a Deus, a outra liga-nos por amizade aos nossos semelhantes. Duma nasceu a religião, e da outra a sociedade. Mas, visto que as coisas humanas caminham naturalmente em desordem, se não são refreadas pelas disciplina, foi necessário estabelecer uma forma de governo para as coisas sagradas e para as profanas; aliás, a religião, breve cairia em ruína, e a sociedade degeneraria em confusão. E foi o que introduziu no mundo as duas únicas autoridades legítimas, a dos príncipes e magistrados, e a dos sacerdotes e pontífices. Daí o poder real, daí e ordem sacerdotal.

Não cabe aqui explicar-vos qual destes dois poderes tem vantagem sobre o outro, e como eles prestam entre si um natural auxílio. Somente vos peço que considereis que, sendo derivados um e outro das duas inclinações que alcançaram no coração humano raízes mais profundas, eles adquiriram justamente uma grande veneração entre todos os povos, porque são ambos sagrados e invioláveis. Foi por isso que os imperadores romanos, os senhores da terra e dos mares, imaginaram que aumentariam muito a sua dignidade, se juntassem o título de soberano pontífice a esses nomes magníficos de Augusto, de Cesar e de Triunfador; não duvidando de que os povos se submetessem de boa vontade às suas ordens, ao considerarem os príncipes como ministros das coisas sagradas. Por isso, quando olho para esse título de religião ligado a esses nomes odiosos de Nero e de Calígula, esses monstros do gênero humano, o horror e a execração de todos os séculos, não posso deixar de fazer esta reflexão: que os deuses de pedra e de bronze, os deuses adúlteros e parricidas, a quem a cega antiguidade adorava, eram dignos certamente de serem servidos por tais pontífices.

Elevai-vos, pois, ó rei do verdadeiro povo, ó pontífice do verdadeiro Deus. A realeza desses imperadores não é mais que uma tirania, e o seu sacerdócio profano um contínuo sacrilégio. Vinde exercer a vossa realeza pela profusão das vossas graças, e o vosso sacerdócio pela expiação dos nossos crimes. Eu creio que compreendeis perfeitamente que é do Salvador que estou falando. Ele, e só Ele, cristãos, que é o verdadeiro Cristo, isto é, o ungido do Senhor, unctus, só Ele reúne em si a realeza e o sacerdócio por excelência da Sua unção, que encerra um e outro poder. E é por esta razão que o admirável Melquisedeque é simultaneamente rei e pontífice; mas «rei de justiça e de paz» – rex justitiae, rex pacis (Hb 7, 2), como o interpreta o Apóstolo na sua divina Epístola aos Hebreus, mas o «pontífice do Deus altíssimo», sacerdos Dei excelsi (Gn 14, 18), como diz o texto do Gênesis. E porque era isto, cristãos? Não era para representar Aquele que, na plenitude dos tempos, devia ser o verdadeiro rei e o grande sacrificador do Deus omnipotente, isto é, o Jesus Salvador representado em Melquisedeque?

É deste glorioso conjunto da realeza e do sacerdócio na pessoa do Filho de Deus que espero hoje falar-vos. Porque, havendo considerado atentamente a significação do nome de Jesus que se dá neste dia ao meu Mestre, acho neste nome augusto a Sua realeza e o Seu sacerdócio. Jesus quer dizer Salvador; e eu digo que o Filho de Deus é rei, porque é Salvador; digo que é pontífice, porque é Salvador. E parece-me estar já a ver que estas duas verdades excelentes me abrem um belo campo. Mas ainda há alguma coisa que demanda a minha atenção. Ele é o rei Salvador e é o pontífice Salvador. De que maneira é Ele Salvador? Pelo Seu sangue. É por isso que neste ditoso dia em que recebe o nome de Jesus e o título de Salvador, começa a derramar o Seu sangue pela Sua misteriosa circuncisão, para testemunhar que é pelo Seu sangue que Ele é Salvador das nossas almas. Ó belas e adoráveis verdades! Poderei hoje explicar-vos a este povo?

Vós, que outrora vos escandalizastes por verdes correr o sangue do meu Mestre, que imaginastes que a Sua morte violenta era indício da Sua impotência, quão mal compreendeis ps seus mistérios! A cruz do meu rei é o Seu trono; a cruz do meu pontífice é o Seu altar. Aquela carne dilacerada é a força e a virtude do meu rei; aquela mesma carne dilacerada é a vítima do meu pontífice. O sangue do meu rei é a Sua púrpura; o sangue do meu pontífice é a Sua consagração. O meu rei acha-se investido de dignidade pelo Seu sangue, e é pelo Seu sangue que é consagrado o meu pontífice; e é ainda por este meio que Ele é o verdadeiro Jesus, o único Salvador dos homens. Ó Rei e Salvador e soberano Pastor das nossas almas, entornai uma gota desse sangue precioso no meu coração, a fim de o abrasar com as vossas chamas; uma gota nos meus lábios, para que fiquem puros e sagrados, estes lábios que devem hoje pronunciar tantas vezes o Vosso nome adorável: assim seja, irmãos. Vou começar a falar da realeza do meu Mestre; falemos energicamente, escutemos com atenção. Trata-se de glorificar Jesus, que constitui propriamente toda a nossa glória; ó Deus, sede conosco!

PRIMEIRO PONTO

Antes de mais nada direi que, segundo as profecias antigas, o Messias esperado pelos judeus, reconhecido e adorado pelos cristãos, devia vir ao mundo com um poder real. É por isso que o anjo, anunciando a Sua vinda à Virgem Maria, Sua Mãe, se refere a Ele nestes termos:

«Deus há de dar-lhe o trono de Davi, seu pai, e Ele reinará eternamente na casa de Jacó»

E a mesma coisa havia predito o evangelista da lei, isto é, o profeta Isaías, quando disse de Jesus Cristo «que Ele há de sentar-se no trono de Davi, afim de o consolidar em justiça e em verdade até à consumação dos séculos» – Super solium David et super regnum ejus sedebit, ut confirmet illud et corroboret in judicio et justitia, amodo et usque in sempiternum (Is 11, 7). O que eu muito folgo em submeter à vossa consideração, para que vejais nestas duas passagens a conformidade da antiga e da nova aliança; porque seria impossível referir-vos neste lugar todos os textos das Escrituras que afirmam a realeza do Salvador.

E foi com que os judeus infelizmente se iludiram, porque, tendo a alma possuída duma cega admiração pela realeza e pelas prosperidades temporais, davam ao seu Messias belos e triunfantes exércitos, grandes e soberbos palácios, uma côrte mais livre e mais esplendorosa, uma casa mais rica e mais bem disposta do que a do seu Salomão, e enfim todo esse pomposo aparato de que se acha cercada a majestade real. Por isso, quando viram Jesus Salvador, que em tão inferior estalão tomava o título de Messias, não imaginais quão grande foi a sua surpresa. Cem vezes lhes havia Ele dito que era o Cristo, e cem vezes o havia atestado com milagres irrepreensíveis; e eles constantemente a importunarem-no: – Mas afinal, «dizei-nos quem sois; até quando nos deixareis indecisos? Se sois o Cristo, dizei-no-lo abertamente» e dai-nos prova disso: Quousque animam nostrum tollis? Si tu es Christus, dic nobis palam (Jo 10, 24). Eles desejariam ouvir outra coisa da boca dEle, e de boa vontade lhe teriam concedido toda a honra que era devida aos maiores profetas; mas também desejariam convencê-lo de que se fizesse rei, ou que desistisse – voluntariamente do título de Messias.

E nós lemos em São João que depois dessa milagrosa multiplicação dos cinco pães, alguns povos, convencidos de que um milagre tão extraordinário só podia ser operado pelo Messias, reuniram-se entre si e conclavaram fazê-lo rei (Jo 6, 15). E teriam executado o seu intento, se Ele lhes não tivesse desaparecido da vista.

Estranha ilusão dos homens, entre os quais ordinariamente todas as espécies de opiniões são recebidas, exceto a boa e a verdadeira! Uns diziam que Jesus era um sedutor; outros, não podendo negar que não houvesse na Sua pessoa qualquer coisa de sobrenatural, comunicavam entre si mil sentimentos ridículos.

«Uns afirmavam que era Elias, outros preferiam crer que era João Batista ou algum dos profetas ressuscitados» – Alii Eliam, alii Joannem Baptistam aut unum ex prophetis (Mt 16, 14)

E em vez de confessarem que era o Messias, deixavam-se dominar por estranhos caprichos. Porque eram assim obstinados, cristãos? É que eles tinham a imaginação cheia dessa magnificência real e dessa suprema majestade, que tanto idolatravam. E essa mentirosa crença tinha tal voga entre os judeus, que esse velho e infortunado político, que andava sempre com a alma perturbada por um desejo furioso de reinar, temerário, que não poupava mais os filhos do que os inimigos, esse Herodes, que é a quem me quero referir, teve zelos dessa pretensa realeza. Daí proveio essa cruel carnificina dos inocentes, cuja memória celebrávamos há dias.

Eu não sei se me engano, fieis, mas parece-me que estas observações acerca da história de Jesus Cristo não vos devem desagradar; e nesse caso não recearei acrescentar mais uma que vos mostrará claramente que enraizada estava no espírito dos povos esta opinião da realeza do Salvador. É que os próprios apóstolos, a quem o Filho de Deus honrava com a Sua mais íntima boa-fé, embora particular e publicamente só lhes prometesse tormentos e ignomínia neste mundo, ainda não tinham conseguido desprender-se desse primeiro sentimento que os tinha preocupado na infância.

«Mestre, lhe diziam eles, quando é que chegará o vosso reino? Restaurareis dentro em pouco o reino destruído de Israel? (At 1, 6)»

Jesus predizia-lhes qual devia ser a Sua morte e eles condenavam o vaticínio. Viam que a reputação dEle ia aumentando, e imaginavam que enfim Ele conseguisse realizar o desejo de todos eles e que tudo alcançasse pela Sua virtude e pelos milagres. Lisonjeavam o espírito com mil esperanças grosseiras. Começavam já a disputar entre si a honra da presença. E não era bela a proposta que a mãe dos dois irmãos insensatos, muito crédula e muito ingênua, havia feito a Jesus Cristo? Eles cuidavam já ver o Salvador num trono resplendente de pedrarias, no meio duma corte faustosa. Senhor, lhe diziam eles, quando começareis o Vosso reino, pois desejaríamos que «um de nós se sentasse à vossa direita e o outro à esquerda» (Mt 20, 21). Tal era a maneira como eles abusavam da paciência e do auxílio do seu Mestre, pascendo a alma numa vã e pueril ostentação. De maneira que Jesus Cristo, tendo dó da ignorância deles, começa a desiludi-los com estas memoráveis palavras: Ó discípulos insensatos, que imaginais partilhar da minha realeza e julgais que heis de viver num fausto e numa pompa mundana, «não sabeis o que me pedis»; porque nada do que dizeis há de ser assim – Nescitis quid petatis (Mt 20, 22).

«Podereis beber o cálice que eu hei de beber?»

Este cálice é a Sua paixão, em que Ele tantas vezes lhes falou, sem que eles o quisessem compreender. Em seguida, após alguns excelentes conselhos, concluiu assim o seu discurso:

«Sabei que o Filho do homem não veio para ser servido, senão para servir e para dar a vida pela redenção de muitos» (Ibid., 28)

Ah! Discípulos ignorantes, e vós, mãe imprudente, não era isso o que pretendíeis; vós pedíeis grandezas aparentes, e só vos falam de humilhação. Mas o meu Salvador procedeu assim, para brandamente nos insinuar, pela memória da Sua paixão, que o nosso rei era um rei pobre; que descia à terra, não para se revestir das grandezas humanas, mas para nos ensinar pelo Seu exemplo a desprezá-las (1); e que, assim como era por paixão que Ele devia subir ao trono, assim também é pelos sofrimentos que podemos aspirar às honras do Seu reino celeste. E agora, cristãos, depois de vos ter; exposto os diversos sentimentos dos homens a respeito da realeza de Jesus, era necessário que eu pedisse a Deus a língua dum serafim para vos exprimir dignamente os sentimentos do próprio Jesus.

Na verdade, é com admiração que vejo nas Escrituras divinas que o bondoso Jesus, tendo por assim dizer ostentado a Sua humildade durante todo o curso da Sua vida mortal, só fala de glória, só conversa em grandezas com os Seus discípulos, quando sente aproximar-se a hora derradeira. Era na véspera do Seu infame suplício. Ele já havia celebrado essa páscoa misteriosa que devia ser no dia seguinte completada pelo derramamento do Seu sangue. O Seu discípulo traidor acabava de sair da sua câmara para ir executar o detestável tratado que tinha feito com os pontífices.

Logo que ele se retirou da Sua companhia, o meu Mestre, que não ignorava o seu pérfido e execrável intento, como se de repente tivesse sido impressionado por um ardor divino, fala desta sorte aos apóstolos:

«Agora vai o Filho do homem ser glorificado» – Nunc glorificatus est Filius hominis (Jo 13, 31)

Que vai Ele fazer, irmãos? Que quer dizer este Agora? Pergunta muito a propósito neste lugar o admirável Stanto Agostinho (Tract. LXIII, in Joan., n. 2). Vai talvez elevar-Se numa nuvem para fulminar todos os seus inimigos? Ou fará descer legiões de anjos para se fazer adorar por todos os povos do mundo? Não, não é isto. Vai para a morte, para o suplício, para o mais cruel de todos os tormentos, para a última das infâmias; e é a isto que Ele chama a Sua glória, o Seu reino e o Seu triunfo.

Olhai, por quem sois, para o meu Salvador nesse triunfante dia em que entrou na cidade de Jerusalém, poucos dias antes de morrer. Ia montado num jumento; ah, fiéis! Não coremos por isto. Eu bem sei que os grandes da terra zombariam de tão triste e tão miserável equipagem; mas Jesus não veio para lhes agradar; e seja qual for o pensamento que tenha a louca arrogância dos homens, esta equipagem de humildade é com certeza muito digna dum rei que veio para calcar aos pés suas grandezas. Não é isto, porém, o que eu, quero levar à vossa consideração.

Volvei os olhos para esse concurso de povo de todas as condições e todas as idades, que vão à frente dEle, com palmas e ramos na mão em sinal de regozijo, e que, para mostrarem o seu zelo por este novo príncipe, numa cerimônia tão santa abalam os ares com gritos de alegria:

«Bendito seja o Filho de Davi, diziam eles; viva o rei de Israel!» – Hosanna Filio David, benedictus qui venit in nomine Domini rex Israel (Mt 21, 9)

E por entre estas beatíficas aclamações, entra em Jerusalém. Que novo procedimento é esse, tão diferente do seu vulgar procedimento? E dizei-me desde quando Ele gosta dos aplausos, visto que, sendo outrora procurado por uma grande multidão de pessoas que tinham, vindo das cidades e das aldeias vizinhas com intenção de o fazerem rei, como há pouco vos referi, se retirara sozinho para o cume duma alta montanha, a fim de evitar o Seu encontro. Hoje ouve Ele todo este povo que, em alta voz, O proclama seu rei; e os fariseus ciosos aconselham-no a que imponha silêncio a essa plebe escandecida, e o meu Salvador responde:

«Não, porque as pedras clamarão, se estes se calarem» – Si hi tacuerint, lapides clamabunt (Lc 19, 40)

Que diremos de mudança tão inopinada? Ele aprova o que rejeitava, e aceita hoje uma realeza que outrora recusara. Ah! Não procureis outra causa; porque, pela última vez que Ele entra em Jerusalém, é para lá morrer; e um Salvador que morre é um Salvador que reina. Com efeito, quando é que alguém O viu mostrar-se com mais firme valor e com mais augusto porte do que no tempo da Sua paixão? Como me apraz vê-lO perante o tribunal de Pilatos, afrontando por assim dizer a majestade dos fasces romanos com a generosidade do Seu silêncio! Pode Pilatos entrar quantas vezes quiser no pretório para interrogar o Salvador, que Ele apenas satisfará a uma única das suas perguntas. E que pergunta é essa, irmãos? Admirai os segredos da Divindade. O presidente romano pergunta-lhe se é verdade Ele ser rei: e o Filho de Deus no mesmo instante, tendo ouvido falar da sua realeza, sem que ainda se ti-vesse dignado satisfazer a qualquer das perguntas que lhe eram dirigidas por aquele juiz condescendente, e nem sequer honrá-lo com uma única palavra, responde-lhe com acento grave e majestoso: «Sim, é verdade que sou rei» – Tu dicis, quia rex sum ego (Jo 18, 37); palavra que até então ainda não tinha proferido.

Considerai o Seu intento, se vos apraz. O que Ele nunca confessou por entre os aplausos do povo, assombrados com o grande número dos Seus milagres e com a santidade da Sua vida e com a Sua doutrina celeste, começa a publicá-lo em alta voz, quando o povo pediu a Sua morte no meio de furiosas aclamações. Nunca se manifestou senão por figuras e parábolas aos apóstolos que recebiam os Seus discursos como palavras de vida eterna; e agora nuamente o confessa ao juiz corrupto, que, por uma injusta sentença, O vai pregar na cruz. Nunca disse que era rei, quando praticava ações duma potência divina; e apraz-Lhe declará-lo, quando está para sucumbir voluntariamente à última das enfermidades humanas! Não é isto operar muito intempestivamente? E contudo foi a Sabedoria eterna que dispôs todos os tempos. Mas, ó maravilhoso infortúnio! Ó segredo admirável da Providencia! Eu compreendo-Vos, ó meu rei Salvador! É que Vós fazeis consistir a glória em sofrer por amor dos Vossos povos, e não quereis que Vos falem de realeza senão, no próprio momento em que, por uma morte gloriosa, fordes libertar os Vossos miseráveis vassalos duma servidão eterna. Só então, só então confessais que Sois rei, Bondade inacreditável do nosso rei! Que o céu e a terra cantem eternamente os seus perdões. E vós, ó fiéis de Jesus Cristo, bem-aventurados vassalos do meu rei Salvador, ó povo de conquista a quem o meu príncipe vitorioso adquiriu com o preço do Seu sangue, com que amor e com que homenagens podereis dignamente reconhecer as liberdades infinitas dum rei tão clemente e tão generoso?

De certo não temerei dizê-lo que não são os tronos, nem os palácios, nem a púrpura, nem as riquezas, nem as guardas que cercam o príncipe, nem esse longo séquito de fidalgos, nem a multidão dos cortesões, que prestam grandes homenagens à Sua pessoa; não, não são essas coisas que eu mais admiro nos reis.

Mas quando considero essa infinita multidão de povos que espera da proteção dos reis a sua salvação e a sua liberdade; quando vejo que, num Estado civilizado, a terra se acha bem cultivada, os portos francos, o comércio rico e fiel, e cada um viver em sua casa tranquilamente e em segurança, reconheço que é isto um efeito dos conselhos e da vigilância do príncipe. E quando vejo que, assim como um sol, a magnificência desse príncipe conduz a virtude até às províncias mais recônditas; e que os seus vassalos lhe devem uns as honras e os cargos, outros a fortuna e a vida, e todos a segurança pública e a paz, de maneira que não há um único que não deva estimá-lo como a seu pai; isto então arrebata-me, cristãos, porque desta forma a majestade dos reis parece-me inteiramente admirável; e nisto os reconheço como vivas imagens de Deus, que se compraz de encher o céu e a terra com provas da sua bondade, não deixando neste mundo lugar algum vazio de benefícios e de liberalidades.

Oh! Dizei-me, por quem sois, em que século, em que história, em que feliz região se viu alguma vez um monarca, não digo tão poderoso e tão temível, mas tão bom e tão benfazejo como o nosso? O reino do nosso príncipe constitui a nossa felicidade e a nossa salvação.

«Se Ele se digna reinar sobre nós, é por clemência e por misericórdia; não é isso para Ele um aumento de poder, mas um testemunho da sua bondade» – Dignatio est, non promotio; miserationis indicium, non potestatis augmentum, diz o admirável Santo Agostinho (Tract. LI in Joan, n. 4)

Olhai para essa vasta extensão do universo: todos esses lumes celestes, todas as santas aspirações, todas as virtudes e graças, foi o sangue do príncipe Salvador que os atraiu à terra. Todos quantos somos cristãos, não proclamamos quotidianamente que nada possuímos que não seja derivado da Sua pessoa?

Esse povo maravilhoso que Deus na Sua bondade espalhou por entre todos os outros, povo que neste mundo habita e que neste mundo é desconhecido, que faz tráfico na terra para amontoar no céu (fiéis, sabei que é ao povo dos eleitos que me quero referir, à nação dos justos e dos homens de bem), que é que não deve ao Salvador? Todos os particulares desse povo, desde a origem do mundo até à consumação dos séculos (vede que grande extensão!) clamam dia e noite e com todas as forças pelo nosso esforçado Libertador: Fostes Vós que quebrastes os nossos ferros, fostes Vós que abristes as nossas prisões; a Vossa morte libertou-nos da opressão e da tirania; o Vosso sangue resgatou-nos das penas eternas. Por Vós vivemos, por Vós respiramos, por Vós temos esperança e por Vós reinamos; porque a munificência do nosso príncipe passa a um tal excesso de bondade, que faz monarcas dos seus vassalos, e só quer ver na sua côrte frontes coroadas.

Escutai, oh! Escutai o belo hino dos vinte e quatro velhos do Apocalipse, que representam, na minha opinião, toda a universalidade dos fiéis do Antigo e do Novo Testamento; doze para os doze primeiros patriarcas, os pais da Sinagoga; e doze para os doze apóstolos, príncipes e fundadores da Igreja. Eles são reis, são coroados, e cantam com incrível prazer os louvores do Cordeiro sem mancha, imolado por amor de nós.

«O Cordeiro imolado, diziam eles, que nos resgatastes com o vosso sangue; haveis-nos feito reis e sacrificadores pelo nosso Deus, e nós reinaremos sobre a terra!» – Et regnabimus super terram (Ap 5, 10)

Ó Deus eterno! E qual é a maravilha dessa corte, cristãos? Ousariam manifestar-se todas as grandezas humanas perante tal magnificência? Esse antigo admirador da velha Roma (2) admirava-se de ter visto naquela cidade soberana tantos reis, dizia Ele, como senadores. Irmãos, o nosso Deus omnipotente chama-nos a um espetáculo bem diverso, de que nós próprios fazemos parte. Nessa côrte verdadeiramente real, nessa nação eleita, nessa cidade triunfante que Jesus erigiu por Sua morte, isto é, na Santa Igreja, não digo que lá não vejamos tantos reis como senadores; mas digo que devemos lá ser tanto reis como cidadãos. Quem jamais ouviu falar de semelhante coisa? Foi um povo inteiro de reis que Jesus reuniu com o Seu sangue, que Jesus salva, que Jesus coroa, que faz reinar, reinando sobre eles, porque «servir o nosso Deus é reinar» – Servire Deo, regnare est (S. Leo, Epist. Ad. Demetr., cap. VI).

Ó realeza augusta do rei Salvador, que divide a Sua coroa com os povos que resgatou! Ó morte verdadeiramente gloriosa! Ó sangue utilmente derramado! Ó nobre e magnifica conquista!

Por maiores que sejam os louvores que demos aos vitoriosos, não deixa de ser verdade que as guerras e as conquistas produzem sempre muito mais lágrimas do que lauréis. Considerai, ó fiéis, os Cesares e os Alexandres e todos esses outros devastadores de províncias, a quem chamamos conquistadores: só na Sua cólera é que Deus os envia à terra. Esses valentes, esses triunfadores, com todos os seus magníficos elogios, só cá vêm para perturbar a paz do mundo com a sua ambição desmedida. Já alguma vez fizeram guerra tão justa, onde não tenham oprimido uma infinidade de inocentes? As suas vitórias são o luto e o desespero das viúvas e dos órfãos. Triunfam da ruína das nações e da ruína pública. Ah! Outro tanto se não dá no reino do meu príncipe! Ele é um capitão salvador, que salva os povos, porque os domina, e domina-os, morrendo por eles.

Não emprega ferro nem fogo para os subjugar; combate com amor; combate com benefícios, com graças omnipotentes e com encantos invencíveis.

E é o que explica divinamente uma excelente passagem do Salmo 44, que eu me esforçarei por vos expor. Renovai, se vos apraz, a vossa atenção. O Profeta, neste lugar, considera Jesus Cristo como um príncipe vitorioso, e vendo em espírito que Ele devia sujeitar às suas leis um tão grande número de povos rebeldes, convidado a pegar em armas e depois diz:

«Cingi a espada, ó meu bravo e valoroso capitão» – Accingere gladio tuo super femur tuum (Sl 44, 4)

E imediatamente, como se quisesse corrigir o seu primeiro discurso com nova reflexão (são estes os movimentos ordinários da expressão profética), continua:

«Não, não é assim, ó meu príncipe, não é com lágrimas que deveis estabelecer o vosso império»

Então como? E ele responde-lhe:

«Ide,  mais belo dos homens, com essa admirável beleza, com essa boa graça que vos é tão peculiar – specie tua et pulchritudine tua; avançai, combatei e reinai» – intende, prospere procede et regna (Sl 44, 5)

Depois continua assim o seu discurso:

«Como são penetrantes as setas do Todo-Poderoso! Todos os povos lhe hão de cair aos pés. Os seus golpes vão ferir mesmo no coração inimigos do meu rei» – Sagittae Potentis acutae (Sl 119, 4)

Em seguida, eleva os olhos para a majestade do seu trono e para a vasta extensão do seu império:

Sedes tua, Deus, in saeculum saeculi – «O vosso trono, ó Deus, está firmado para todos os séculos dos séculos» (Sl 44, 7)

E que quer dizer esse reino? Que vitoriosa beleza é essa? Que significam esses golpes, e essas setas, e esses povos feridos no coração? É o que vamos explicar com o auxílio divino, por uma doutrina inteiramente cristã, toda extraída dos Livros Sagrados e das Escrituras Apostólicas.

Mas, fiéis, aconselho-vos a que não tenhais o espírito ocupado com alguma ideia vã de beleza física, que certamente não merecia tão longa meditação da parte do profeta. Atendei, atendei antes a esse terno e afetuoso movimento do admirável Santo Agostinho:

«Quanto a mim, diz este grande personagem, seja qual for o lugar onde eu vir o meu Salvador, a Sua beleza parece-me encantadora. Ele é belo no céu, e portanto é belo na terra, belo no seio de seu Pai e belo entre os braços de Sua mãe. É belo nos milagres, e não o é menos no meio das multidões. Tem uma graça incomparável, quer quando nos aconselha a viver, quer quando Ele próprio despreza a morte. É belo até na Cruz, e até é belo no sepulcro: Pulcher in caelo, pulcher in terra…; pulcher in miraculis, pulcher in flagellis; pulcher invitans ad vitam, pulcher non curans mortem…; pulcher in ligno, pulcher in sepulchro. Pensem os outros o que quiserem a este respeito; mas para nós outros crentes, em toda a parte onde o virmos, é Ele sempre belo em perfeição – Nobis credentibus ubique sponsus pulcher occurrat (S. August., in PsaL, XLIV, n. 3)

Mas o que sobretudo devo confessar, cristãos, é que, seja qual for a crença que o mundo tenha no tocante à Sua paixão, ainda que esses membros cruelmente desconjuntados, e essa miseranda carne maltratada faça quase sublevar o coração dos que dEle se aproximam, ainda que o profeta Isaías tenha vaticinado que neste estado «não seria Ele fácil de reconhecer-se, porque já não teria a graça nem qualquer aparência humana» – Non est species ei, neque decor; vidimus eum, et non erat aspectus (Is 53, 2,); apesar de tudo isso, é nesses lineamentos apagados, é nesses olhos pisados, é nesse semblante que inspira horror, que eu distingo feições duma incomparável beleza. A Sua doçura tem não só dignidade, mas também graça e encanto.

Mas dir-me-eis talvez: Que ideia tão singular procurar a beleza de Jesus no meio dos Seus sofrimentos, que nem sequer Lhe conservam a figura humana! Porque a não considerais antes na Sua maravilhosa transfiguração ou na Sua ressurreição gloriosa? Escutai e compreendei o meu pensamento e vereis que essa beleza é incomparável para nós. Um soldado acha-se coberto de grandes ferimentos que parecem alterar-lhe o semblante. As pessoas escrupulosas talvez desviem a vista dessas chagas; mas o príncipe há de acha-las belas, porque foi para o servir que Ele as recebeu: são sublimes distintivos, são cicatrizes honrosas, que a fidelidade para com o seu rei e o amor da pátria embelezaram.

Ora eu certamente não posso evitar, ó fieis de Jesus Cristo, que os inimigos do meu Mestre achem deformidade nas Suas chagas; mas, «para nós outros, crentes», novis credentibas, como dizia há pouco Santo Agostinho, para mim, que estou certo de que por amor de mim foi que Ele assim se cobriu de ferimentos, não é aceitável a opinião dele. A verdadeira beleza do meu mestre não lhe pode ser negada; porque essas cruéis contusões, em vez de Lhe alterarem o semblante, mais o embelezaram a meus olhos. Se os ferimentos dos vassalos são tão belos aos olhos do príncipe, dizei-me que devem ser os ferimentos do príncipe aos olhos dos vassalos?

Para mim, são verdadeiras delicias, que eu beijo e rego com lágrimas. O amor que o meu rei Salvador me dedica, o amor que Lhe abriu todas as chagas, derramou nEle uma certa graça, incomparável a nenhum outro objeto, e um certo esplendor de beleza que transporta as almas fiéis. Não vedes com que doce prazer elas se prostram constantemente a adorá-IO? Afastá-las desse amável objeto, seria para elas um verdadeiro suplício. Daí provem essas setas agudas que Davi canta no nosso Salmo; daí, procedem esses raios de chama invisível «que penetram os corações tio sensivelmente» – in corda inimicorum regis, «que eles desejam outra coisa com mais ardência do que a Jesus não crucificado», à imitação do Apóstolo: Non judicavi me scire aliquid inter vos nisi Jesum Christum, et hunc crucifixum (Cor., 3, 2). É assim que o rei Jesus se compraz de reinar nos corações.

É por isso que eu não me admiro se apenas vir na Sua paixão provas da Sua realeza. Sim, a despeito da raiva dos seus carrascos esses espinhos constituem um diadema que Lhe coroa a paciência; a cana frágil converte-se em um cetro nas Suas mãos; essa púrpura ridícula, com que eles O cobrem, transformar-se-á em púrpura real, logo que for tinta com o sangue do meu Mestre. Quando eu ouço o povo clamar que o Salvador merece a morte só porque se fez rei, digo imediatamente de mim para mim: não há duvida, esses loucos dizem melhor do que pensam; porque o meu Príncipe deve reinar por meio da morte. Quando Ele leva a cruz sobre os ombros inocentes, outro que não fora cristão admirar-se-ia da Sua impotência; mas o fiel deve-se lembrar do que dEle disse Isaías, «que o seu império, o seu principado é sobre os seus ombros que se acha estabelecido» – Principatus super humerum ejus (Is 9, 6). Que quer dizer esse império e esse principado estabelecido sobre os ombros do Salvador? Ah! Não o compreendeis? É a cruz. É assim que o explica Tertuliano no livro Contra os Judeus. (Advers. Judaos, n. 10). A cruz é o Seu cetro; a cruz é o Seu bastão de ordenança; é ela que há de reduzir todos os povos à obediência de Jesus Cristo.

E nunca vos destes ao incômodo de atentar nessa bela inscrição que os inimigos do meu Mestre fixaram no alto da cruz: JESUS DE NAZARÉ, REI DOS JUDEUS, escrita em grossos caracteres e em três espécies de idiomas, para que se tornasse mais conhecida? É verdade que os judeus opõem-se a este intento, mas Pilatos escreve o letreiro, apesar da resistência deles. Que quer isto dizer, cristãos? Esse, juiz corrupto tinha desejo de salvar o meu Mestre, e apenas o condenou para ser agradável aos judeus. Os próprios judeus instam com ele para que mude a inscrição; e ele recusa, resiste e deixa de ter condescendência para com eles. Como assim! Esse homem tão condescendente, que entrega um inocente à morte, com receio de ofender os judeus, começa a tornar-se audacioso para conservar três ou quatro palavras que havia escrito sem intenção e que pareciam de tão pouca importância! Notai tudo isto, por quem sois: ele é covarde e ousado, é fraco e audacioso no mesmo assunto e para com as mesmas pessoas. Meu Deus, bem reconheço os Vossos segredos; era necessário que Jesus morresse na cruz, e eia indispensável que no alto da cruz ficasse registrada a Sua realeza. Pilatos executa primeiro por condescendência e depois por audácia.

«Ó virtude inefável da operação divina até no coração dos ignorante! – exclama neste passo o admirável Santo Agostinho – Todos eles não sabem o que dizem, e todos dizem o que ao meu Salvador apraz» (Tract. CXVII in Joan., n. 5)

Uma secreta virtude se apodera invencivelmente da alma desses ignorantes, e apesar das suas más intenções, executam mui prudentes e mui salutares conselhos.

Caifás, em pleno conselho de fariseus, falando de Jesus Cristo, diz «que é conveniente que ele morra, para que toda a nação não pereça». De maneira que a Sua morte não deixará que toda a nação pereça; e, portanto, é Ele o Salvador de toda a nação, observa muito a propósito o evangelista São João (Jo 11, 50. 52). Maravilhoso juízo de Deus! Imaginava Ele que pronunciava a sentença da Sua morte, e fazia uma profecia da Sua glória. O mesmo aconteceu a Pilatos: condena o Filho de Deus à Cruz; e querendo escrever segundo o costume, a causa do seu suplício, exige um monumento à sua realeza. Tal é a verdade do poder infalível que Deus tem para dirigir os corações dos Seus inimigos para onde Lhe apraz e obrigá-los a concorrer, a seu pesar, para a execução dos Seus desígnios! E como o reino do Salvador devia começar pela cruz, desejava o nosso sublime Deus que a Sua realeza nela ficasse atestada por um sinal público e pela autoridade do governador da província, que imprevistamente há de servir à Providência Divina.

Escrevei, pois, ó Pilatos, as palavras que Deus vos dita e cujo mistério não compreendeis. Sejam quais forem às alegações que vos possam fazer, tende cuidado de não alterardes o que já está escrito no céu permaneçam irrevogáveis as vossas ordens, visto que são cumpridas em execução dum decreto imutável do Omnipotente. Fique a realeza de Jesus, escrita em linguá hebraica (Idem 19, 20), que é a língua do povo de Deus; em língua grega, que é a língua dos doutos e dos filósofos; e em língua romana, que é a do império do mundo. E vós, ó gregos, inventores das artes; vós, ó judeus, herdeiros das promessas; vós, romanos, senhores da terra, vinde ler esse admirável letreiro, e genuflecte perante o vosso rei. Dentro em pouco vereis esse homem, abandonado pelos Seus próprios discípulos, reunir todos os povos à invocação do Seu nome. Dentro em pouco sucederá o que Ele outrora profetizou, isto é, quando se elevar da terra atrairá tudo a Si e mudará o instrumento do mais infame suplício numa máquina celeste para excitar todos os corações. Et ego, cum exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jo 12, 32).

Em breve as nações incrédulas, para as quais Ele estende os braços, virão receber, por entre os afagos paternais, esse amável beijo de paz, que, segundo as profecias antigas, as deve reconciliar com o verdadeiro Deus que elas desconhecem. Não tarda que esse crucificado seja «coroado de honra e de glória, porque, pela graça de Deus, sofreu a morte por todos», como diz a divina Epístola aos Hebreus (Hb 2, 9); verá nascer do seu sepulcro uma bela prosperidade; e será gloriosamente realizado esse famoso oráculo do profeta Isaías:

«Se Ele der a alma pelo pecado, verá uma longa série de descendentes» – Si posuerit pro peccato animam suam, videbit semen longaevum (Is 53, 10)

Essa pedra, tirada da estrutura do edifício, constituirá a pedra angular e fundamental que há de sustentar todo o novo edifício (Sl 127, 22), e esse misterioso grão de frumento, que representa o nosso Salvador, quando cair à terra (Jo 12, 24), há de multiplicar-se pela sua própria corrupção, isto é, o Filho de Deus há de cair da cruz para o sepulcro, e por um maravilhoso acidente «todos os povos lhe cairão aos pés» – Populi sub te cadent, dizia o nosso Salmo (Sl 44, 6).

Como eu sinto vivo prazer quando vejo em Tertuliano que já no seu tempo o nome de Jesus, tão próximo da morte do nosso Salvador e do começo da Igreja, já o nome de Jesus era adorado por toda a terra, e em todas as províncias do mundo que ao tempo estavam descobertas, tinha o Salvador um número infinito de vassalos!

«Nós constituímos, diz claramente aquela ilustre personagem, quase a maior parte de todas as cidades» – pars pene major civitatis cujusque (Ad Scapul., n.° 2)

Os Partos invencíveis aos Romanos, os Trácios antínomos, como lhes chamavam os antigos, isto é, homens incompatíveis com toda a espécie de leis, suportaram voluntariamente o jugo de Jesus. Os Medos, os Armênios, os Persas e os índios mais remotos; os Mouros e os Árabes, e essas vastas províncias do Oriente; o Egito e a Etiópia, e a África mais selvagem; os Citas, sempre errantes, os Sármatas, os Getulios, e a Barbaria mais desumana foi domada pela doutrina modesta de Jesus. Na Inglaterra, ah! Na pérfida Inglaterra, inacessível aos romanos pela barreira marítima, aportou a fé do Salvador: Britannorum inaccessa Romanis loca, Christo vero subdita (Tertutl., Advers. Judeos, n. 7). Que direi dos povos das Espanhas, e da belicosa nação dos gauleses, o espanto e o terror dos Romanos, e dos audaciosos alemães, que se jactavam de não ter outro receio que não fosse o de lhes cair o céu sobre as cabeças? Aproximaram-se de Jesus, mansos e simples como cordeiros, e vieram pedir-Lhe humildemente perdão, impelidos por um temor respeitoso. E até Roma, essa cidade soberba que por tanto tempo se havia embriagado com o sangue dos mártires de Jesus, até Roma, a senhora do mundo, vergou a cabeça e prestou mais honra no túmulo dum pobre pecador do que nos templos do seu Rômulo: Ostentatur mihi Romae tanto in honore templum Romuli, in quanto ibi ostendo memoriam Petri (S. Aug., in PsaL, XLIV, 23).

Não há império, por mais vasto que seja, que não tenha sido estreitado em certos limites. Jesus reina em toda a parte, diz o grave Tertuliano no livro Contra os judeus, donde extrai quase tudo o que acabo de vos dizer a respeito da vastidão do reino de Deus.

«Jesus reina em toda a parte, diz ele, e em toda a parte Jesus é adorado. Perante Ele, a condição dos reis não é melhor do que a dos menores escravos; Citas ou Romanos, gregos ou bárbaros, tudo lhe é semelhante, Ele é igual para todos, é rei de todos, e é o Senhor e o Deus de todos» – Christi regnum et nomen ubique porrigitur; ubique regnat, ubique adoratur; non regis apud illum major gratia, non barbari alicujus inferior laetitia; omnibus aequalis, omnibus rex, omnibus Deus et Dominus est (Tertul. Advers. Judaeos, n. 7)

E o que é mais para admirar é que não foram os nobres e os imperadores que lhe trouxeram os simples e os plebeus; pelo contrário, foi Ele que chamou os imperadores com autoridade dos pecadores. Permitiu que os imperadores, com todo o poder do mundo, resistissem à Sua pobre Igreja com toda espécie de crueldades, a fim de mostrar que o Seu reino não dependia do apoio nem da condescendência dos grandes. Mas quando Lhe aprouve abater aos pés a majestade do império, disse então:

«Vinde, vinde a mim, ó Cesares, que bastantemente e por largo tempo haveis perseguido à minha Igreja; entrai no meu reino, onde não sereis mais poderosos do que os menores dos vossos vassalos»

Ao mesmo tempo, Constantino, esse triunfante imperador, obedecendo à Providência, elevou o lábaro da cruz acima das águias romanas, e por toda a vastidão do império foi a paz assinada às Igrejas.

Onde estais, perseguidores? Que é feito desses leões rugidores que queriam devorar o rebanho de Jesus? Já não existem, irmãos; porque Jesus aniquilou-os, e «eles caíram-lhe aos pés»: Populi sub te cadent. O mesmo sucedeu com São Paulo:

«Jesus fez morrer o seu perseguidor, e em seu lugar colocou um discípulo» – Occisus est inimicus Christi, vivit discipulus Christi, diz Santo Agostinho (S. Aug., in Psal., XLIV, n. 16)

Por isso, esses povos ferozes, que rugiam como leões contra os inocentes cordeiros de Jesus Cristo, já não existem, morreram; «Jesus feriu-os no coração», in corda inimicoram.

«Era pelo coração que eles se insurgiam contra Ele, e foi pelo coração que Ele os humilhou» – Cadunt in corde; ibi se erigebant adversus Christum, ibi cadunt ante Christum.

«As setas do meu Mestre penetraram o coração dos seus inimigos» – Sagittae Potentis acutae in corda inimicoruum regis.

Ele feriu-os com o seu santo amor.

«Os inimigos ficaram derrotados, e o meu Salvador como amigos os tratou» – Ceciderunt: ex inimicis amici facti sunt; inimici mortui sunt, amici vivunt (S. Aug., in Psal., XLIV, n. 16)

E por que meio conseguiu Ele isto?

«Por meio da cruz» – Domui orbem, non ferro, sed ligno (In Psal., XCV, n. 2)

«O reino que não era deste mundo dominou o mundo soberbo, não com a altivez dum combate, mas com a humildade da paciência»: Regnum quod de hoc mundo non erat, superbum mundum non atrocitate pugnandi, sed patiendi humilitate vincebat (S. August., Tract. in Joan., CXVI, n. 1)

Ora no tempo em que tudo isto se passava (notai comigo este último fato), no tempo em que tudo respirava Jesus, pela paz que foi assinada à Igreja, erigiam-Lhe templos de todas as partes, e em toda a terra derrubavam os ídolos; no tempo em que todos os veneráveis bispos da cristandade, que são os príncipes do seu império, se reuniram em Niceia a fim de se ocuparem dos primeiros estados gerais de todo o reino de Jesus Cristo, nos quais todas as províncias do mundo confessaram a Sua divindade; nesse mesmo tempo a cruz preciosa em que o Salvador fora suspenso, cruz que até então havia estado oculta, talvez porque a Providência divina imaginasse que a cruz de Jesus Cristo já havia estado bem patente aos seus membros durante a perseguição dos fies; a cruz até então oculta (ponderai todas estas circunstâncias) foi descoberta nesse tempo por grandes extraordinários milagres, foi e reconhecida e foi adorada. E isto não é uma história duvidosa, porque deve ser aprovada por todos os que amam as antiguidades cristãs, nas quais a vemos muito evidentemente atestada. E julgaríeis, cristãos, que uma coisa tão memorável, tão célebre entre os Padres, tivesse acontecido nesse tempo sem qualquer profundo conselho da Sabedoria, eterna? Inteiramente inverosímil. Que diremos então? Que todo o mundo foi vencido e tudo se vergou às leis do Salvador.

Já é tempo de vos erguerdes, ó Cruz que esta obra formastes; fostes vós que despedaçastes os ídolos, fostes vós que subjugastes os povos, fostes vós que destes a vitória aos valorosos soldados de Jesus que tudo venceram pela paciência. Haveis de ser gravada na fronte dos reis, haveis de ser o principal ornamento da corôa dos imperadores, ó cruz que sois a alegria e a esperança de todos os fiéis. Concluamos, pois, de todo este discurso que a cruz é um trono magnífico, que o nome de Jesus é um nome bem digno dum rei, e que um Deus, que desce à terra para viver no meio dos homens, não podia fazer coisa mais sublime, nem mais real, nem mais divina do que salvar todo o gênero humano por meio duma morte generosa.

SEGUNDO PONTO

E prouvera a Deus, cristãos, que, para de todo vos mostrar a glória dessa morte, eu tivesse tempo bastante para vos falar um pouco do título de pontífice de que Jesus Cristo tanto se tornou digno! Assim eu, seguindo a tão celeste doutrina da incomparável Epístola aos Hebreus, pela comparação do sacerdócio da lei mosaica, procuraria fazer-vos compreender a dignidade infinita do sacerdócio de Jesus Cristo. Veríeis Aarão levar a um altar corruptível novilhos e touros; e Jesus, pontífice e vítima, oferecer, perante o trono de Deus, a sua carne formada pelo Espírito Santo, oblação sagrada e viva para expiação dos nossos crimes. Veríeis Aarão num tabernáculo mortal expurgar a lei de certas impurezas e de certas irregularidades com o sangue dos animais mortos; e Jesus à direita da majestade, fazendo com a virtude do Seu sangue a verdadeira purificação das nossas almas. Veríeis Aarão consagrado com sangue de outrem, como está escrito no Levítico (Lv 8) e «com esse mesmo sangue doutrem», in sanguine alieno, diz o Apóstolo (Hb 9, 25), entrar no santuário edificado por mão de homem; e Jesus, consagrado com o Seu próprio sangue, entrar também com o Seu próprio sangue no santuário eterno, cujas portas abre a seus servos. Veríeis (e que admirável espetáculo para almas verdadeiramente cristãs!), veríeis dum lado todos os homens revoltados abertamente contra Deus; e doutro lado a justiça divina, pronta a precipitá-los no abismo na companhia dos demônios, cujos conselhos e cujo orgulho haviam seguido e imitado, quando de repente esse santo, esse caridoso pontífice, esse pontífice fiel e condoído dos nossos males, aparece entre Deus e os homens. Aparece para suster os golpes que iam cair sobre as nossas cabeças, e depois, derramando o Seu sangue sobre os homens, ergue a Deus as suas mãos inocentes; e, pacificando assim o céu e a terra, suspende o curso da vingança divina e transmuda um furor implacável numa eterna misericórdia. Veríeis como todos os fiéis se convertem em sacerdotes e sacrificadores com o precioso sangue de Jesus, por meio do qual são consagrados. Eu representar-vos-ia esses novos sacrificadores, revestidos duma estola celeste, purificados nas águas do batismo e no sangue do Cordeiro, oficiando todos juntos, não sobre um altar de matéria terrena, mas sobre esse altar celeste que representa o Filho de Deus (Ap 8, 3); e até encherem esse altar de vítimas espirituais, isto é, de fervorosas preces, de cânticos de louvor e de piedosas ações de graças, que de todos os lugares da terra se elevam acima desse misterioso altar perante a face de Deus, semelhantes a um agradável perfume e a um oloroso sacrifício, em nome de Jesus Cristo Senhor Nosso, grão sacerdote e sacrificador eterno, segundo a ordem de Melquisedeque.

E que não dirianos desse incomparável Pontífice, desse Medianeiro do Novo Testamento, por quem são bem recebidas todas as orações, por quem são remidos os pecados, e por quem são concedidas todas as graças; esse Pontífice, que, por uma nova aliança, quebrou o pernicioso tratado que havíamos feito com o inferno e com a morte, conforme diz Isaías: Delebitur faedus vestrum cum morte, et pactum vestrum cum inferno non stabit (Is 28, 18). Muito diríamos, cristãos. E depois, juntando essa doutrina inteiramente apostólica ao que acabamos de dizer da realeza do Salvador, concluiríamos claramente, na expansão dos nossos corações, que o nome de Jesus, que encerra todas essas maravilhas, é um nome superior a todos os nomes, como ensina o Apóstolo aos Filipenses (Fl 2, 9); e, que muito convinha na opinião do mesmo Apóstolo aos Hebreus (Hb 2, 10), «que Deus consagrasse, pelos seus tormentos, o príncipe da nossa salvação». Mas, visto que aprouve ao que nos inspira, nesta tribuna da verdade, fornecer-nos bastantes pensamentos para falarmos da realeza de Jesus, detenhamo-nos aqui, fiéis, até que a Providencia divina nos conduza ao mesmo assunto, e destas verdades tiremos alguns ensinamentos para edificação das nossas almas.

Por isso, ó povos de Jesus Cristo, se o Filho de Deus é o vosso verdadeiro rei, tratai de Lhe prestar obediência. Será preciso remontar aos séculos passados para vos provar como os bons príncipes foram as delicias dos seus vassalos? O que não fizeram os povos pelos reis que salvaram os seus países, tornando-se uns verdadeiros pais da pátria? Ah! Em verdade existe em nossos corações não sei que natural propensão para os príncipes que Deus nos dá, que nem as desgraças, nem qualquer mau acolhimento podem fazer desaparecer das almas bem formadas. Como é fácil aos reis da terra conquistarem a afeição dos seus povos! Um sorriso, um olhar benévolo, um semblante sincero e risonho satisfaz às vezes os mais exigentes. In hilaritate vultus regis vita, dizia antigamente o Sábio (Pr 16, 15):

«O príncipe exprime a vida no olhar, quando o tem sereno e tranquilo»

Povos, é coisa indubitável, bem o sabeis; um governo tolerante e justo, um poder acompanhado de bondade e dum temperamento benéfico, encanta as almas mais selvagens. É um sentimento comum entre os homens virtuosos; e príncipes assim até são dignos de viver.

Só a Jesus de nada servem a brandura e as liberalidades. Por mais que Ele nos abra os braços para nos abraçar; por mais agradável que nos seja, não com vãs caricias, mas com benefícios reais, a tudo ficamos insensíveis, porque preferimos iludir-nos com as frívolas aparências do mundo do que com a amizade sólida que Ele nos promete. E com que cuidado buscou Ele o nosso amor! Ele, que é o nosso rei por origem, também o é de direito natural; e quis sê-Io por amor, e por benefícios. «É necessário libertar estes miseráveis cativos», disse Ele. Eu poderia consegui-lo doutro modo; mas quero salvá-los, morrendo por eles, a fim de fazer com que me tenham amor. Irei com risco da minha vida, irei com a perda de todo o meu sangue arrebatá-los da morte eterna. Mas não importa, fá-lo-ei de boa mente; e não lhes peço outra recompensa, a não ser o amor. Depois, hão de reinar comigo também.

Dizei-me agora, irmãos, porque é que Jesus, sendo o melhor dos príncipes, não consegue com tal bondade conquistar os nossos afetos, nem abrandar a dureza dos nossos corações? Vós, com efeito, povo de Metz, mereceis que eu vos elogie, quanto a serdes fiel aos nossos reis. Nunca ninguém vos viu entrar, por simpatia ao menos, nos diversos partidos que se formaram contra o seu ministério. A vossa obediência não é duvidosa, nem a vossa fidelidade vacilante. Quando há dias se falava desses covardes que tinham vendido aos inimigos do Estado os lugares que o rei lhes confiou, viu-se que vós tínheis frêmitos duma justa indignação. Chamáveis-lhes traidores, indignos de terem nascido, por terem assim covardemente enganado a confiança do príncipe e haverem sido infiéis ao seu rei. Ora nós, que somos fiéis aos reis da terra, porque somos traidores somente ao Rei dos reis? Porque é que para Ele  não nos incomoda sermos pérfidos, censura que, noutras circunstâncias, muito sentiríamos?

Irmãos, Jesus confiou-nos a todos um lugar que é para Ele de tal importância, que o quis comprar com o Seu sangue: esse lugar é a nossa alma, que Ele confiou à nossa fidelidade. Nós somos obrigados, a guardar-la, em virtude de um juramento inviolável que lhe prestamos no batismo. Ele proveu-a de tudo o que é necessário: interiormente com as Suas graças e com o Seu Espírito Santo, externamente com a proteção angélica. Nada lhe falta, é inexpugnável, e só por traição pode ser tomada. Traidores e pérfidos que somos, que a entregamos a Satanás, que vendemos a Satanás o prêmio do sangue de Jesus; a Satanás, Seu inimigo mortal, que quis invadir-Lhe o trono, e que, não podendo realizar no céu a sua audaciosa empresa, veio à terra disputar-Lhe o reino e em Seu lugar fazer-se adorar. Ó perfídia! Ó indignidade! Para servir a Satanás traímos o nosso príncipe que, por nossa causa foi crucificado, traímos o nosso único libertador.

Imaginai, cristãos, que hoje no meio desta assembleia aparece de repente um anjo de Deus que nos faz soar aos ouvidos o que outrora Elias dizia aos Samaritanos:

«Povos, até quando hesitareis entre dois partidos?» – Quousque claudicatis in duas partes? (1 Rs 18, 21)

Se o Deus do Israel é o verdadeiro Deus, deveis adorá-lO; e se Baal é Deus, necessariamente o deveis adorar. Amados irmãos, os pregadores são os anjos do Deus dos exércitos. Por isso, hoje vos digo a todos, e Deus queira que convenientemente o diga a mim próprio:

Quousque claudicatis? «Até quando estareis hesitantes?»

Se Jesus é o vosso rei, prestai-Lhe obediência; mas se o vosso rei é Satanás, colocai-vos ao lado de Satanás. É necessário que hoje vos decidais. Ah! Irmãos, que estremeceis a esta proposta. Por Jesus! Por Jesus! Dizeis vós; mas não podemos aqui tomar deliberação. E eu, apesar do que me dizeis, novamente reitero a mesma pergunta: Quousque claudicatis in duas partes? Estareis eternamente hesitantes, sem decidirdes como convém? «Se Eu sou o vosso mestre, diz o Senhor pela boca do seu. profeta, onde está a honra que me deveis?» (Ml 1, 6) «E porque me chamais Senhor, e não fazeis o que vos digo?», diz Jesus Cristo no seu Evangelho (Mt 8, 1). Em que quereis que haja fé, nas nossas palavras ou nas nossas ações?

O Filho de Deus ordena-nos que nos aproximemos de seu Pai com toda a pureza e temperança, E então para que havemos de ter tão aviltantes desejos? Para que há tão excessiva devassidão? Ele ordena-nos que sejamos caritativos; mas a caridade, fiéis, poderá acaso harmonizar-se com as nossas secretas paixões, com as nossas maledicências contínuas e com as nossas inimizades irreconciliáveis? O Filho de Deus ordena-nos que aliviemos os pobres tanto quanto pudermos; e nós não receamos consumir o alimento do pobre por meio de rapinas cruéis ou com usuras mais que judaicas: Quousque claudicatis? Não devemos hesitar mais, irmãos; é necessário optar por um ou por outro. Se Jesus é o nosso rei, demos-Lhe as nossas obras como Lhe damos as nossas palavras; mas se o nosso rei é Satanás, (ó coisa abominável! Que até a dureza dos nossos corações nos compele a falar desta sorte) se o nosso rei é Satanás, não lhe recusemos as nossas palavras, depois de lhe havermos dado as nossas ações. Mas Deus queira, irmãos, que nunca façamos semelhante escolha! E como poderíamos suportar o olhar desse Cordeiro sem mancha, triste por nossa causa? Nesse dia terrível, em que esse rei há de descer majestosamente a julgar os vivos e os mortos, como haveríamos de sustentar o aspecto das Suas chagas que nos exprobrariam a nossa ingratidão? Onde encontraríamos antros assaz obscuros e abismos bastante profundos para ocultar tão negra perfídia? E como havíamos de suportar as exprobrações dessa terna amizade tão indignamente desprezada, e a voz terrível do sangue do Cordeiro que, estando já na cruz, suplicou para nós perdão e misericórdia, e nesse dia de cólera há de clamar vingança contra a nossa fé mal garantida e contra os nossos juramentos infiéis?

Ó Deus eterno! Quão duro e insuportável há de ser esse império que Jesus há de começar nesses dias a exercer sobre os Seus inimigos! Porque afinal, fiéis, é necessário que Ele reine sobre nós. O império das nações está-Lhe prometido pelas profecias. Se Ele não reinar sobre as nossas almas por misericórdia, reinará nelas por justiça; se nelas não reinar por amor e com graça, há de reinar pela severidade dos juízos e pelo rigor das Suas ordens. E que dirão os maus, quando, a seu pesar, sentirem a opressão do braço omnipotente do seu rei; quando Deus, ferindo com uma das mãos e segurando com a outra, os fustigar eternamente com os seus golpes sem os consumir? E assim, sempre vivos e sempre moribundos, imortais para seu castigo, fortes demais para morrer, e demasiado fracos para suportar, hão de gemer constantemente em leitos de chamas, ultrajados com dores furiosas e irremediáveis; e, soltando por entre execráveis blasfêmias mil lamentos desesperados, hão de confessar com tardia penitência que nada havia mais racional do que deixar imperar Jesus nas suas almas. Em verdade, são dignos dos mais horríveis suplícios, por terem preferido a tirania do usurpador ao doce e legítimo domínio do príncipe natural. Ó Deus e Pai de misericórdia, desviai estes infortúnios de cima das nossas cabeças!

Irmãos, não desejais, pois, que eu hoje renove o juramento de fidelidade que todos devemos ao nosso grande rei? Ó meu Jesus, a quem tão justamente pertencemos, e que nos resgatastes com um prêmio de amor e de caridade infinita, eu reconheço-vos como meu soberano. É a vós unicamente que eu me dedico. O Vosso amor será a minha vida, a Vossa lei será a lei do meu coração. Eu cantarei os Vossos louvores, e nunca deixarei de proclamar a Vossa misericórdia. Quero ser-Vos fiel, quero pertencer-Vos inteiramente, quero consagrar-Vos todos os meus cuidados, e quero viver e morrer servindo-Vos. Amém.

Referências:

(1) Nota marg.: Eu não admiro, cristãos, do Filho de Deus se afastar para muito longe, quando os povos o procuram para o fazerem rei: Cum cognovisset, quia venturi essent ut raperent eum et facerent eum regem, fugit iterum in montem ipse solus (Jo 6, 15). A realeza que lhe querem dar não é a que lhe convém. Esse povo fascinado pelas grandezas do mundo, envergonha-se de ver na abjeção o que ele reconhece pelo seu Messias; e quer colocá-lo num trono com uma magnificência real. Não lhe cabe tal realeza; e é por isso que Tertuliano tem razão em dizer: Regem denique fieri, conscius sui regni, refugit (De Idololatr., n. 18). Um rei dado ao sofrimento, que destinou a si próprio um trono, onde só pode sentar-se no meio do desprezo de todos, não deve aceitar uma realeza, cujo brilho pertence às pompas mundanas. Dai-lhe antes um estábulo e uma cruz; dai-lhe uma cana frágil e dai-lhe um corôa de espinhos.

(2) Cinéas, embaixador de Pyrro. Veja Plutarco, Vit. Parall. in Pyrrh., e Flor., Rerum Roman., lib. 1, cap. XVIII (Ediç. de Déforis)

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 293-328)

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