Santa Catarina de Alexandria, virgem e mártir, que viveu pelo ano de 312, foi tão notável pela sua ciência que confundiu e converteu muitos filósofos pagãos. Morreu no reinado de Maximino Daia, presa a uma roda guarnecida de dentes de ferro. O seu corpo foi encontrado no Egito no século VIII e transportado pelos anjos, segundo a lenda, para o mosteiro de Santa Helena, no monte Sinai. Santa Catarina é a padroeira dos filósofos e das escolas. Em 1063 foi instituída uma ordem militar de Santa Catarina, para guardar as suas relíquias no monte Sinai e proteger os peregrinos que vinham venerá-las.
Pregado no dia 26 de novembro de 1693, no Seminário de Saint–Nicolas-du-Chardonnet.
SUMÁRIO
Exordio. – O orador, servindo-se do exemplo de Santa Catarina, propõe-se mostrar neste Panegírico o uso que devemos fazer da ciência.
Proposição e divisão. – Há três espécies de pessoas que abusam deste dom de Deus: as que só desejam a ciência pela própria ciência, as que a desejam para armar à vanglória, e finalmente as que a pretendem para acumular riquezas. Daqui procede um triplicado móbil criminoso que temos de evitar no estudo: a curiosidade, o orgulho e a avareza.
1.º Ponto. — Santa Catarina soube evitar admiravelmente este tríplice escolho. Quinhoou da ciência; mas essa ciência empregou-a ela a contemplar a luz divina e não a contentar o espírito. Tomou a Deus como princípio e fim de todos os seus conhecimentos, e assim como um edifício que assenta no alicerce deve ser sempre sólido e perdurável, assim também a sua ciência foi verdadeira e fecunda em frutos de salvação.
2.º Ponto. — Ela também difundiu o seu saber pelos filósofos e pelos grandes do mundo; mas com que prudência e sabedoria não se desobrigou ela dessa missão!… Deus, o Deus universal, o Deus eterno, é que foi constantemente o objeto para que ela dirigiu os seus esforços. E não se imagine que isto lhe tenha passado pela mente um instante sequer com o fim de estabelecer a sua glória e a sua reputação. Não, não foi este o seu intuito. Ela só quis ver por toda a parte Nosso Senhor e o Evangelho, procurando granjear-lhes o triunfo, e conseguiu-o.
3.º Ponto. — Finalmente não foram favores temporais que ela buscou na ciência. O seu único móbil, como o prova toda a sua vida, foi conquistar almas para Jesus Cristo. Não teve outro fito, não albergou outro desejo, não procurou outro resultado.
Peroração. — Ah! Aprendamos, como Santa Catarina, a fazer com que tudo convirja para Deus, aprendamos a ver Deus em todas as nossas empresas, proclamemo-lO por toda a parte, tenhamos a generosidade de Lhe pertencer desinteressadamente, e então Deus há de recompensar-nos um dia como recompensou a ela.
Dedit ili scientiam sanctorum
E Ele deu-lhe á ciência dos santos (Sb 10, 10)
Ainda que o inimigo da nossa salvação não desista nunca da louca e temerária empresa de destruir a Igreja de Deus, vemos, todavia pelas Escrituras que ele nem sempre ataca com as armas na mão. Muitas vezes manifesta-se tiranicamente, perseguindo os fiéis; mas não raro, diz Santo Agostinho, aparenta de mestre, metendo-se a ensiná-los; de maneira que não basta que Deus se oponha a essas violências o vitorioso exército dos mártires, cujo ânimo invencível exauriu a crueldade de todos os suplícios; é igualmente necessário que Ele também ilustre os doutores, para combaterem as perniciosas máximas com que o seu inimigo procura corromper a simplicidade da fé e destruir a verdade do seu Evangelho.
É um grande milagre, senhores, ver uma donzela de dezoito anos caminhar animosamente debaixo dos estandartes desse exército laborioso e empreendedor; cuja disciplina é tão rigorosa que só deve prevalecer sobre os seus inimigos, fatigando-os pela sua perseverança; mas não receio afirmar que mais admirável é ainda vê-la tomar lugar no meio dos doutores, e, pelo poder de Deus, que lhe instilou todo o ardor do seu Espírito Santo, vê-la também ilustrada para anunciar a verdade, pela qual parece sacrificar a vida. Tal prodígio, senhores, não o recebe, a Igreja inutilmente; porque dele havemos de tirar grande fruto para o nosso termo de proceder, se Deus, cedendo às súplicas da Virgem Maria, cujo auxílio imploramos, se dignar de nortear os nossos pensamentos e abençoar as nossas intenções. Ofereçamos-lhe, pois, antes de mais nada, a costumada Ave-Maria.
Eu não ignoro, cristãos, que a ciência é uma graça do céu e que traz ao mundo grandes vantagens; sei que é a luz do entendimento, o guia da vontade, o maná da virtude, a alma da verdade, a companheira da sabedoria, a mãe dos bons conselhos, em suma, a alma do espírito e a mestra da vida humana.
Mas como o homem tem de seu natural corromper as melhores coisas, essa ciência, que mereceu tão grandes elogios, corrompe-se as mais das vezes nas nossas mãos pelo uso que dela fazemos. Foi ela que se sublevou contra a ciência de Deus; foi ela que, prometendo alumiar-nos, antes nos cega pelo orgulho; é ela que nos faz adorar os nossos próprios pensamentos com o nome augusto da verdade; que, com pretexto de alimentar o espírito, reprime os bons afetos, e que, finalmente, faz suceder à indagação do verdadeiro bem uma curiosidade vaga e infinita, fonte inesgotável de erros e desvarios muito perniciosos.
Mas o meu discurso seria infindável, senhores, se eu quisesse contar os males que origina o amor das ciências, e dizer-vos todos os perigos a que conduz todos os filhos de Adão, a quem um cego desejo de saber converteu bem como á sua raça, justamente amaldiçoada, no joguete da vaidade e no teatro da miséria. Um doutor inspirado por Deus e que colheu a sua ciência na oração, reduz todos os abusos delia a três pontos capitães. Estabelece São Bernardo três espécies de homens que procuram a ciência desordenadamente:
«Há uns, diz ele, que querem saber com o fim único de ficarem sabendo, o que é uma péssima curiosidade» – Quidam scire volunt ut sciant, turpis curiositas est (In Cant, Serm, XXXVI, n. 3)
«Há outros que querem saber, mas que se propõem, para alvo dos seus grandes e vastos conhecimentos, tornarem-se conhecidos e celebrizarem-se, o que é uma vaidade perigosa» – Quidam scire volunt ut sciantur ipsi, et turpis, vanitas est
«E finalmente há outros que querem saber, mas que só desejam armazenar ciência para com ela negociar e acumular tesouros, o que é uma ignóbil avareza» – Quidam scire, volunt ut scientiam suam vendant, et turpis quaestus est
Há uns portanto, como vedes, a quem a ciência apenas serve de espetáculo inútil; outros a quem ela serve de ostentação e de pompa; e outros a quem apenas serve de mercantilismo, se assim me posso exprimir. Todas estas três espécies de homens corrompem a ciência, e todos são corrompidos por ela. A ciência, considerada nestas três modalidades, que outra coisa é, irmãos, «senão um péssimo ministério a que se dão os filhos dos homens», como diz o Eclesiastes? Pessimarn hanc occupationem dedit Deus filiis hominum, ut occuparentur in ea (Ecl 1, 13).
Curiosos, que viveis duma especulação estéril e ociosa; sabeis que essa viva luz que vos encanta na ciência, não lhe foi dada apenas para vos recrear a vista, senão para vos guiar os passos e vos regular a vontade. Espíritos presumidos, que tão pomposamente fazeis gala da vossa Doutrina para provocardes louvores, sabei que esse glorioso talento não vos foi confiado para vos exaltardes, senão para fazerdes triunfar a verdade. Almas covardes e interesseiras, que só empregais a ciência para alcançardes os bens terrenos; ponderai seriamente que um tesouro tão divino não foi feito para esse tráfico indigno; e que se porventura é comerciado, é duma maneira mais elevada e para um fim mais sublime, isto é, para negociar a salvação das almas. Foi assim que a gloriosa Santa Catarina, a quem veneramos, usou desse dom celestial. Contemplou intimamente a luz da ciência, não para contentar o espírito, senão para dirigir os afetos, e depois exteriorizou-a, difundindo-a pelos filósofos e pelos grandes do mundo, não para estabelecer a sua reputação, mas para fazer triunfar o Evangelho. Finalmente, fê-la utilitária e lançou-a no comércio, não para adquirir bens temporais, mas com o fim de conquistar almas para Jesus Cristo. Tal é o assunto de todo o meu discurso, em que eu me proponho fazer-vos compreender que Santa Catarina possui a ciência dos santos.
PRIMEIRO PONTO
O fato das ciências profanas serem consideradas como uma recreação para o espírito não me surpreende, porque elas têm tão pouca solidez que podemos, sem grande ofensa, chanceá-las de ridículas; mas que se considere Jesus Cristo como um objeto para curiosas indagações, e que tantos homens se convençam de ser sapientes nos mistérios do seu reino, quando no Evangelho achavam coisa com que exercitassem o espírito em questões delicadas, ou com que o recreassem em agradáveis meditações, é que se não pode tolerar a cristãos. Pelo fato de Jesus ser uma luz, imaginam eles talvez que basta contemplá-la e recrearem-se com vê-la, quando, pelo contrário, deveriam pensar que essa luz só alumia os que a seguem, e não simplesmente os que a fitam.
«Quem me seguir; nos diz Ele, e não quem me vir, não andará em trevas» – Quí sequitur me, non ambulat in tenebris (Jo 8, 12)
Por aqui nos dá a entender que quem o vir sem O seguir, nem por isso deixará de andar na noite e envolvido nas sombras da morte.
Portanto, «o que se gabar de o conhecer e não respeitar os seus mandamentos, é um mentiroso, diz São João, e nele não existe ã verdade» – Qui dicit se nosse Deum, et mandata ejus non custodit, mendax est et in hoc veritas non est (1Jo 2, 4). Porque não o conhece tal como Ele é, isto é, conhece-O como sendo a verdade, mas não O conhece como sendo o caminho; e Cristo, como sabeis, é uma e outra coisa.
«Eu sou o caminho e a verdade, diz Ele» – Ego sum via et vertas (Jo 14, 6)
Verdade que deve ser meditada por uma séria contemplação, mas caminho em que é necessário entrar com práticas piedosas.
É, portanto, máxima infalível que a ciência do cristianismo tende a prática e a ação, e que só ilumina para excitar o conhecimento e os afetos. Mas nós compreenderemos muito melhor, se reduzirmos as coisas ao primeiro princípio e a fonte dessa ciência. Essa fonte, esse primeiro princípio da ciência dos santos, é a fé, cuja natureza nos importa hoje compreender verdadeiramente, a fim de também conhecermos o seu uso e o de todos os conhecimentos que dela dependem.
Para isso, devemos notar que, sendo-nos apresentada nas Escrituras toda a vida cristã como um edifício espiritual, essas mesmas Escrituras nos dizem também que a fé é o seu fundamento. Se é como fundamento da fé que São Pedro aparece no Evangelho, é porque, tendo reconhecido Cristo, lançou a primeira pedra, estabelecendo então o fundamento da fé. O Apóstolo ensina aos Colossenses que «nós estamos, fundados na fé, e que é a firmeza deste fundamento que nos torna imóveis e inabaláveis na esperança do Evangelho» – In fide fundati, et stabiles, et immobiles a spe Evangelii (Cl 1, 23). E em seguida o mesmo São Paulo, definindo a fé, diz que ela é «o firme fundamento das coisas em que é necessário ter esperanças» (Hb 11). É por isso que o sagrado concílio de Trento, seguindo as indicações dessa doutrina, nos descreve também a fé nestes termos:
Humanae salutis initium, fundamentam et radix totius justificacionis – «O começo da salvação do homem, a raiz e o fundamento de toda a justiça cristã» (Sess., VI, cap. VIII)
Esta qualidade de fundamento, atribuída a fé pelo Espírito Santo, parece-me pôr em grande destaque a verdade que anuncio; e agora é muito fácil de compreender que a fé não é destinada para atrair olhares curiosos, mas para estabelecer um procedimento constante e regulado. Porque é de saber, cristãos, que no fundamento oculto na terra não se procura a curiosidade, senão a solidez e a consistência. Por isso, a fé cristã não é um espetáculo para a vista, mas um sustentáculo para os costumes. Esse fundamento acha-se oculto, mas está positivamente estabelecido. Tal é a natureza da fé, que, como vedes, não podendo ter a evidência que satisfaz a curiosidade, mas simplesmente a firmeza e a certeza capaz de manter a vida e costumes, mostra claramente toda a sua virtude com o fim de nos aplicarmos a ação, e não nos limitarmos ao conhecimento.
Santa Catarina, senhores, excedendo pela grandeza do seu gênio a fraqueza ordinária do seu sexo, aprendera desde tenra infância todas as ciências curiosas que podem recrear, instruir, ou, em suma, iluminar um espírito bem formado. Mas o mestre que intimamente ilustrava, saturava-lhe o espírito de conhecimentos bem mais penetrantes; e então o casto amor que ela lhes dedicava, de tal forma a impressionara que, desprezando tudo o mais, evocava de todas as partes os seus outros pensamentos para os reduzir a fé, para os apoiar nesse fundamento, e para depois os aplicar com toda a sua energia às santas e bem-aventuradas praticas da piedade cristã.
Se não me engano, muitas vezes ela ponderava este raciocínio; e isto não oferece dúvida, porque todo o que se plenifica com o Espírito de Deus, se o não faz da mesma forma que eu intentei propô-lo, não deixa por isso de estar convencido da sua eficácia. Ora o raciocínio da santa, a quem veneramos, ou para melhor dizer, o verdadeiro cristão, que cada um de nós deve fazer também é o seguinte:
Acreditei na palavra do Filho de Deus; recebi a doutrina do seu Evangelho; e por este meio lancei um bom fundamento seguro e inabalável, contra o qual as portas do inferno não prevalecerão. Esse fundamento é o da fé, capaz de manter imutavelmente o termo de proceder da vida presente e a esperança da vida futura. Mas quem diz fundamento, diz começo de qualquer edifício, diz sustentáculo de qualquer coisa. E se a fé ainda não é mais que um começo, é mister completar a obra; e devendo ser um sustentáculo, é uma necessidade construir sobre Ele. A nossa santa vê tão claramente numa luz celeste essa eloquência importante, que não descansava enquanto não tivesse construído sobre a fé e concretizado o seu conhecimento.
Mas um começo tão belo como é o da fé em Jesus Cristo, exige, para o igualar, um edifício magnifico; e um sustentáculo tão firme e tão sólido, deve de ter uma estrutura máscula e um milagre de arquitetura, permitam-me o termo. Possuída deste pensamento, ela deixa de ponderar em trivialidades para só cuidar de coisas que excedem toda a natureza, como são o martírio e a virgindade; aquele, capaz de vencer todo o furor dos demônios e de nos elevar acima da violência dos homens, e esta, dada para nos igualar a pureza dos espíritos celestes.
Oxalá, cristãos, que hoje ficássemos compreendendo, a exemplo dessa santa, que, por maior que seja a ciência apoiada nesses princípios, não passa tudo isto, afinal, dum começo da obra que se anda preparando. Talvez nos envergonhássemos de parar ao primeiro passo, e receássemos ouvir esta censura do Evangelho: Hic Homo caepit aedificare (Lc 14, 30): Olhem que irrefletido, que louco, que insensato, que, depois de ter acumulado materiais em barda e de haver lançado todos os fundamentos dum edifício soberbo e real, abandona bruscamente a obra, deixando incompletos todos os seus planos. Que leviandade ou que imprudência!
Mas vejamos agora, cristãos, que nós é que somos esse homem insensato. Começamos um grande edifício, e estabelecemos, também, a fé que lhe serve de fundamento imutável e que oferece as coisas em que devemos ter esperança: Sperandarum substantia rerum, diz o Apóstolo (Hb 9, 1). Que esforço foi necessário empregar para lançar o fundamento da fé? O terreno destinado ao edifício era mais movediço que a areia; pois não há nada menos estável que o espírito humano, sempre volúvel nos seus pensamentos, indeciso em seus desejos, vacilante nas suas resoluções. Foi preciso consolidá-lo; mas que de milagres, que de sofrimentos, que de profecias, que de ensinamentos, que de inspirações e que de graças foram necessários para servir de apoio! Dum lado havia monstruosidades que se elevavam contra Deus: a obstinação e o orgulho, que foi preciso demolir e aplanar; do outro, precipícios terríveis: o erro, a ignorância e a irresolução que ameaçavam ruína, e que foi necessário aterrar. Finalmente, que coisa é que se não empreendeu para lançar o fundamento da fé, e para, depois de tão enérgicos esforços e de tão extraordinários preparativos, se abandonar toda a empresa, ficando assentes os alicerces, sobre os quais nada se construiu? Pode-se admitir semelhante loucura? Insensatos, que não vemos que esse fundamento está à espera do edifício, que esse começo da fé requer a sua conclusão pela vida regular; e que essas muralhas meio erguidas, que se arruínam porque a nossa negligencia não acabou de as levantar, dão claro testemunho do nosso louco e temerário procedimento! Hic homo caepit aedificare, et non potuit consummare.
Mas, pelo mesmo princípio, continuemos na mesma ordem de ideias, profundando mais a questão. Que é que devemos construir sobre o fundamento da fé? Está bem de ver que devem ser coisas proporcionadas ao mesmo fundamento, obras dignas da fé que professamos. Assim, por exemplo: um arquiteto sisudo, que dirige regularmente a sua empresa, harmoniosa de tal maneira o fundamento com a obra, que logo se avalia e se revela a extensão, a ordem, a altura de todo o edifício, e se vê a profundidade, os alinhamentos e a solidez dos alicerces. Ora, para o nosso caso, não deveis duvidar, senhores, de que o mesmo suceda com o edifício de que estamos tratando, que é a vida cristã e espiritual. Que enorme extensão que tem esse edifício. Como é hábil o arquiteto que lhe lançou o fundamento! Mas, para não ficardes em duvida, escutai o apóstolo São Paulo, que diz:
«Eu lancei o fundamento como um sábio arquiteto» – Ut sapiens architetus fundamentum posui (1 Cor 3, 10)
Mas talvez ele se enganasse, o que Deus todavia não há de querer, porque não operou de modo próprio, mas sim «segundo a graça que lhe foi dada»; edificou, segundo as luzes que recebeu: Secundum gratiam quœ data est mihi. Respeitou portanto todas as dimensões; e, havendo seguido apenas o plano que lhe fora enviado do alto, não podia enganar-se: Secundam gratiam quœ data est mihi. Ora, se ele dirigiu toda a empresa segundo as instruções e as regras duma arquitetura celeste, quem duvida que tenha respeitado todas as dimensões, e que a construção e a ordem do edifício devam: corresponder ao fundamento lançado por esse sábio empreendedor?
É por isso cristãos, que não há nada mais sublime, nem mais magnífico do que esse edifício, porque também nada há mais precioso, nem mais sólido do que esse fundamento. E senão, dizei-nos, ó grande Paulo, que fundamento lançastes? Não ouvis a sua resposta, formulada nestes termos:
«Ninguém pode lançar outro fundamento, além do que já está lançado, o qual é Jesus Cristo?» – Fundamentum aliud nemo potest ponere prœter id quod positum est, quod est Chrisius Jesus (1Cor 3, 11)
Ó maravilhoso fundamento, em nós estabelecido pela fé! E como São Paulo sensatamente nos adverte que veja cada um de nós o que sobre ele edifica! Unusquisque videat quomodo super aedificet (1Cor 3, 10). Na verdade, cristãos, sobre um fundamento tão divino não se deve elevar coisa que não seja augusta; de tal modo que toda a ciência dos santos consista em conhecer esse fundamento, e toda a prática da santidade em saber erigir sobre ele coisas que lhe sejam convenientes, obras semelhantes ao seu espírito, costumes tirados dos seus exemplos, uma vida inteiramente formada nos seus preceitos, e na sua doutrina.
Ora, depois de Santa Catarina haver estabelecido esse fundamento, quanto mais ela lhe ia conhecendo a dignidade pela ciência dos santos, mais se aplicava a construir sobre ele um edifício conveniente, o que é fácil de compreender. Houve um Deus que se humilhou e se aniquilou: este é o fundamento, senhores. Que foi que a nossa santa construiu sobre ele? Um desprezo da sua condição e da sua nobreza para se cobrir inteiramente dos opróbrios de Jesus Cristo e da gloriosa infâmia, do seu Evangelho. Houve um Deus que nasceu duma Virgem; e este fato constitui o fundamento do Cristianismo. Que ergue Catarina sobre ele? O amor imortal e incorruptível da pureza virginal. Comparece um Deus, diz o santo Apóstolo (1Tm 6, 13), perante o tribunal de Pôncio Pilatos para nele prestar um fiel testemunho: temos o fundamento da fé. E Santa Catarina, para edificar sobre esse fundamento, caminha para o trono dos imperadores a fim de ali prestar um testemunho semelhante e manter invencivelmente a verdade do Evangelho. Jesus foi pregado na cruz; e Catarina submete-se ao sacrifício de ser deitada sobre uma roda. Jesus dá todo o Seu sangue; Catarina oferece-lhe o seu. E assim sucessivamente, não há nada mais uniforme do que esse fundamento e esse edifício.
É verdade, cristãos; o mesmo fundamento foi lançado em nós pela graça do santo batismo e da profissão do cristianismo, mas o edifício é que é muito diferente, o resto da estrutura é que é muito dissemelhante. Se Vós, ó divino Jesus, Sois o fundamento da nossa fé, porque existe esse amálgama indigno dos nossos desejos criminosos com esse divino fundamento? Ó fé e ciência dos cristãos! Ó vida e prática dos cristãos! Haverá coisa mais contraditória e mais incongruente do que o que vós sois? Vede a extravagância: um fundamento de ouro e de pedras preciosas, e um edifício de madeira e de palha! Eu digo com o Apóstolo (1Cor 3, 12), que por este meio nos mostra os pecados, que tudo isto é uma matéria verdadeiramente combustível e própria para excitar e manter o fogo da vingança divina. Ó fé, como sois pura! Mas como sois corrupta, ó vida! Que olhos se não impressionariam com tão grande desigualdade, se atentamente a considerassem? E será preciso outra coisa, além da santidade desse fundamento, para convencer da extravagância criminosa os que levantaram esse edifício?
Acordemos, pois, o espírito, cristãos; e oxalá que esse prodigioso amalgama de Cristo com o mundo lhes comece a perturbar a vista e nos incite a conciliar-nos com os nossos próprios conhecimentos. Poderemos porventura ser compatíveis com a nossa consciência, acreditando em tão grandes mistérios e aviltando-os ao mesmo tempo com tão ultrajante desprezo?
«É para aviltar Jesus que temos o nome de cristãos?» – Dicuntur cristiani ad contumeliam Christi (Salv., de Gub. Dei, lib. VII, n. 2)
Que receio poderá evitar-vos a construção sobre estes fundamentos? Eu sei que é arriscada empresa realizar a sublimidade deste conselho: o ódio a própria individualidade, o domínio das paixões, o constrangimento, a mortificação, o vencimento dos prazeres, e o menosprezo não só das riquezas, mas da própria vida para glorificação de Jesus Cristo; mas vede também, cristãos, quanto é inabalável este fundamento. Vós não edificais sobre ele senão com grande vacilação, como se ele fosse hesitante e mal seguro; sobre Ele andais com passo indeciso, e só vós atreveis a assentar um pé, conservando o outro pousado sobre a terra, como se ela fosse mais firme. Porque oscilais por tanto tempo entre Jesus Cristo e o mundo? De que vos serve conhecer as verdades sagradas, se não correis atrás da luz que elas ateiam aos vossos olhos?
Ó Jesus, ó divino Jesus; vamos hoje alterar pela Vossa divina graça um procedimento; tão desregrado, perfilhando apenas a ciência concreta. Queremos ser cada vez mais cientistas para nos consolidarmos na piedade; cederemos a curiosidade de saber para fortificarmos a vontade pela moderação do nosso espírito. E assim, aprendendo santamente a aproveitarmos a alma da nossa ciência, poderemos depois produzi-la no mesmo espírito em que a nossa Santa produziu a sua, para glorificar a verdade por um testemunho fiel. É este o tema da minha segunda parte.
SEGUNDO PONTO
A verdade é um bem comum; e todo aquele que a possui, deve-a a seus irmãos, conforme as ocasiões que Deus lhe proporcionar, assim como «todo o que pertence monopolizar esse bem público da natureza racional, merece perdê-lo e ser reduzido, diz Santo Agostinho, ao que verdadeiramente particulariza o espírito humano, que é a mentira e o erro» – Quisquis suum vult esse quod omnium est, a communi propellitur ad sua id est, a veritate ad mendacium (Confess, lib. XII, cap. XXV).
Por este «princípio, senhores meus, aquele a quem Deus honrou (Var.: aperfeiçoou) com o dom da ciência e obrigado a ilustrar os outros (1). Mas, como para dar a conhecer a verdade Ele próprio se tem de manifestar, e como os que se instruem por intervenção sua lhe tecem ordinariamente encômios como um justo reconhecimento de tão grande beneficio, é de temer que Ele se corrompa pelas demonstrações do favor público, e perca a sua recompensa por um ardente desejo de a receber.
Quando os cérebros mais bem organizados são muitas vezes impressionados com um incenso tão delicado e tão penetrante, não admira que o seja o duma donzela, em quem o conceito de cientista é, tanto mais aplaudido quanto é certo ser ele mais extraordinário no seu sexo. Nisto consiste o milagre da mão de Deus operado na Santa a quem veneramos; e embora seja grande prodígio ver uma sábia em Catarina, mais surpreendente é ainda ver Catarina modesta, e servir-se apenas da ciência para afirmar a realeza de Jesus Cristo.
As damas modestas e cristãs hão de certamente lisonjear-se de ver nesta passagem as verdades do seu sexo. O seu maior infortúnio, cristãos, é o desejo de agradar que geralmente tem e que constitui a sua paixão dominante; e como, por desfortuna dos homens, elas o conseguem muito facilmente, não é de admirar que a sua vaidade seja muitas vezes extrema, quando alimentada e fortificada por um aprazimento quase universal. Quem não vê a pompa com que elas estadeiam essa beleza que apenas, superficialmente, as coloreia? E quando se conhecem com uma, certa erudição, quem as não vê darem-se pressa a manifestá-la em conversação, muito triunfantes por imaginarem encantar toda a gente? É por esta razão principal que, a meu ver as excluem das ciências; porque quando elas pudessem adquiri-las, enorme dificuldade teriam em as receber; de maneira que, se lhes é vedada a aplicação espiritual, não é tanto, ao que me parece, pelo receio de lhes enredar o espírito numa empresa tão elevada, como pelo receio de lhes submeter a humildade a uma prova excessivamente perigosa.
Ora é para as curar deste mal que a Igreja lhes apresenta Santa Catarina no meio duma assembleia de filósofos, igualmente vitoriosa das suas lisonjas e das suas ocas sutilezas, e desembaraçando-se habilmente dos laços que eles lhe lançam ao espírito e das emboscadas que lhe armam à modéstia: A laqueo linguae iniquae et a labiis operantium mendacium (Ecl 51, 3). É que ela sabe, cristãos, que esse belo dom da ciência não lhe foi confiado para dele tirar proveito; porque embora Deus no-lo conceda, não nos pertence por duas razões. A primeira, que é geral, prova que, além de não nos pertencer, assim como os outros dons da graça, não provem de nós, mas sim do céu, donde nos foi enviado. A segunda, que é particular, é que não nos foi dado para dele usarmos livremente. De passagem, direi que a teologia não ignora que a ciência não é dessas graças que nos tornam mais agradáveis a Majestade divina; mas sim dessa outra espécie de graças que são comunicadas para bem dos outros, como é, por exemplo, o dom dos milagres, de todos sabido.
Ora, como nós não somos mais santos nem mais justos por sermos iluminados pela ciência, não é temeridade dizer-vos que este dom não constitui vantagem particular. É uma espécie de tesouro público, onde perfeitamente se podem instruir os que o possuem, como os outros filhos da Igreja; mas do qual não se podem vangloriar, nem tão pouco inculcarem-se possuidores, vem uma espécie de roubo sacrílego. E se nos não é licito gloriar-nos com o que nos é dado para nosso uso, menos o devemos fazer com o que o nos é dado para serviço dos outros, para toda a Igreja.
Desta sorte, a ciência cristã nunca se deve exibir para objeto de alarde. A sua função é mais digna, porque é bastante glorificadora; a sua função é dar a conhecer Jesus Cristo, e a razão disto é evidente. Quando pomos diante dum espelho um rosto formoso, que é que desejamos ver? É o rosto e não o espelho. E apesar disso, toda a honra do gentil semblante não é mais do que uma fiel representação. Ora a ciência do cristianismo, que outra coisa é além dum espelho fiel e celeste, em que se representa Jesus Cristo? Quando Cristo dá aos seus fiéis a Ciência das suas verdades, não faz mais do que incrustar-lhes no espírito um espelho celeste das suas próprias perfeições. E não imagineis, ó possuidores desta ciência, que é ela que deveis zelosamente dar a conhecer, mas sim unicamente Jesus Cristo, cujas perfeições ela expõe ao natural. Por isso o santo Apóstolo diz «que nós não nos anunciamos a nós mesmos, senão a Jesus Cristo Senhor Nosso»; não nos pomos ao espelho senão para vermos o nosso rosto, como não difundirmos a ciência senão para darmos a conhecer Jesus Cristo. É certo que aprouve a Deus entornar em nós o seu resplendor:
«Porque o mesmo Deus que ordenou que das trevas resplandecesse a luz, foi quem resplandeceu em nossos corações» – Qui dixit de tenebris lumen splendescere, ipse illuxit in cordibus nostris (2Cor 4, 6)
Mas não fez Ele isto com o fim de nos dar um falso brilho ao nosso espírito entenebrecido; fê-lo porque quis imprimir na ciência que nos deu, como num espelho polido, a imagem de seu Filho, Salvador nosso, a fim de que todo o mundo admirasse o seu rosto e ficasse enlevado com as suas imortais belezas: Ipse illuxit in cordibus nostris, ad illuminationem scientificae claritatis Dei in face Christi Jesu.
Catarina, vendo intuspectivamente reduzida à imagem da verdade da alma de Jesus, acha-a tão bela e tão perfeita, que deseja torná-la o mais notória possível, empregando a sua ciência para unicamente a dar a conhecer; mas, para que ela se mostre triunfante, coloca aos pés a filosofia sua inimiga capital. Para confundir a filosofia, havia-se ela orientado em todos os seus subterfúgios; e para assegurar o triunfo da verdade sobre esta rival, opera duas coisas admiráveis: desarma-a e despoja-a. De que maneira a desarma? Destruindo os erros que ela estabeleceu. E como a despoja? Tirando-lhe as verdades que ela usurpou É este, senhores, um belo combate, que merece a vossa atenção.
Ainda que os filósofos sejam os protetores do erro, descobrirão todavia alguns raios da verdade.
«Algumas vezes bateram eles a sua porta, diz Tertuliano» – Veritatis fores pulsant (Tertull., De testim. anim., n. 1)
Se não entraram no seu santuário, se não tiveram a felicidade de a ver e de a adorar no seu templo, algumas vezes apareceram nos seus pórticos e lhe prestaram de longe qualquer homenagem, ou porque nesse grande desbarato de conhecimentos humanos Deus tenha querido conservar uma parcela, como vestígio da nossa primeira instituição; ou porque, segundo diz Tertuliano, «essa longa e terrível tempestade de opiniões e de erros os tenha as vezes arremessado ao porto, casualmente e por um feliz extravio» – Nonnum quam et in procella, confusis vestigiis caeli et freti, aliquis portus offenditur, prospero errore (De anim., n. 2); ou ainda porque a Providência divina tenha querido refletir neles qualquer raio de luz para a convicção dos erros. O que é certo, cristãos, é que no meio de tantas trevas entreviram eles qualquer claridade e reconheceram confusamente quaisquer verdades. Mas o grande Paulo censura-lhes o fato de os terem injustamente conservado cativos (Rm 1, 18); e a razão é esta: É que eles viam o princípio, e não queriam abrir os olhos para reconhecerem as suas consequências necessárias. Por exemplo: a ordem visível do mundo mostrava-lhes claramente as invisíveis perfeições do seu Criador; e embora a consequência dessa doutrina fosse prestar-lhe a homenagem que tal Majestade exige de nós, eles recusavam prestar culto ao que reconheciam como seu Soberano. Então a verdade gemia cativa em tal constrangimento e ficava contrafeita, porque não agia com todo o seu ardor; de maneira que era preciso libertá-la do poder desses violentos usurpadores, e entregá-la, como uma virgem honesta e pudica, nas mãos do cristianismo, único que a conserva na sua pureza.
É o que hoje faz Santa Catarina. Apresenta Jesus Cristo com tal esplendor que os erros que sustentava a filosofia são dissipados com a sua presença; e as verdades que ela violentamente havia arrebatado, entregara-se a Ele, como o seu Dono, ou antes reúnem-se nEle como sendo o seu núcleo, o que obriga a filosofia a depor as armas. Mas, conquanto ela fique vencida e convencida, causa-lhe a declinar o seu primeiro orgulho e até parece assombrada de se haver Cristianizado. Finalmente, os argumentos de Catarina conduzem-na cativa aos pés da cruz, e ela então se considera nobilitada e parece comprazer-se de ceder a uma sabedoria mais sublime.
Imitemos este exemplo tão santo, testemunhando a verdade, fazendo-a triunfar do mundo, e empregando todo o nosso entendimento num tão; justo dever que ela nos impõe. Ó santa verdade, são três as espécies de testemunhos que eu vos devo: devo-vos o testemunho da minha palavra; devo-vos o testemunho da minha vida; e devo-vos o testemunho do meu sangue. Do testemunho, da minha palavra, ó verdade, sou devedor, porque estáveis ocultas no seio. Do Pai Eterno, e dignastes-vos misericordiosamente manifestar-vos a nossos olhos, e para honrar essa caridosa manifestação, devo, pelo testemunho da minha palavra, exteriorizar- vos. Extingam-se todos os meus discursos, dizia o Profeta (Sl 136, 6), e fique-me eternamente a língua paralisada, se alguma vez eu te olvidar, ó verdade, e se de ti não der testemunho.
Mas não basta, cristãos, dar-lhe o testemunho da voz, que não passa dum som inútil; e mui frouxo será o nosso zelo, se apenas consagrar palavras a verdade, que só pode ser bastante glorificada por efeitos dignos dela. A sua solidez imutável não é suficientemente reconhecida pelos nossos discursos, que não são mais do que sombras dos nossos pensamentos; é necessário que ela fique gravada nos nossos costumes por provas reais do nosso afeto. Não dar á verdade mais do que a palavra, é dar a sombra ao corpo e uma imagem imperfeita ao original. É mister honrar a verdade peia verdade, fazendo a reverberar em nós mesmos por efeitos dignos dela.
Mas além do testemunho das obras, ainda devemos à verdade o testemunho do sangue. Porque a verdade é Deus; e por isso, é necessário um sacrifício completo para lhe prestar todo o culto que lhe é devido, e para honrar dignamente a eterna solidez da sua verdade. Nós devemos dispor-nos todos os dias a morrer por ela, se alguma hora ela exigir de nós este sacrifício. Assim fez Catarina que, plenificando-se tão abundantemente com a ciência dos santos e as suas ações de graças, glorificou-a perante todo o mundo, pelo testemunho da sua palavra, que ela sustentou pelo da sua vida e que, finalmente, cimentou e confirmou pelo do seu sangue. De maneira que não nos devemos admirar duma ciência, tão bem empregada ao serviço da verdade, dar tão grande lucro a esse comercio espiritual e conquistar tantas almas para Jesus Cristo. É o que me resta explicar-vos na terceira parte.
TERCEIRO PONTO
É um espetáculo indigno ver os dons do espírito servirem aos interesses temporais. Não há coisa mais servil do que essas almas vis que lamentam todas as suas lucubrações, e que murmuram contra a ciência, acoimando-a de estéril e infrutífera, quando ela não faz a sua fortuna. Mas que as ciências humanas se esqueçam da sua dignidade até ao ponto de serem utilizadas exclusivamente no comercio, não cabe a mim, cristãos, deplorá-lo nesta tribuna. Terei eu de ver-vos, ó eleita do céu, ó fonte dos conselhos desinteressados, augusta ciência do cristianismo, terei eu de ver-vos em nossos dias tão indignamente aviltada, reduzida ao extremo de serdes escrava da avareza? Tal opróbrio, senhores, feito a Cristo e ao Evangelho pelos artistas mercenários, merece bem, a meu ver, que estabeleçamos neste caso máximas fortes para depurar as intenções; e a ciência da nossa santa, consagrada unicamente salvação das almas, dar-nos-á o começo.
Vós imaginais decerto que a luz do seu espírito e a vasta extensão dos seus conhecimentos, afirmada pelo brilho duma juventude florescente e pelo apoio duma raça ilustre, de que ela era o ornamento, lhe proporcionavam grandes vantagens para se estabelecer no mundo. Efetivamente, os seus historiadores dizem-nos que o imperador e toda a sua corte a consideraram como a maravilha do seu século, apesar dela não ter pensado sequer em empanar a luz do Espírito de Deus para a utilizar a seu bel-prazer, sobretudo numa côrte infiel, porque fez realçar esse dom num comércio mais elevado, empregando-o em negociar a salvação das almas.
E na verdade, cristãos, esse glorioso dom da ciência é destinado certamente a algum comércio. Jesus Cristo, ao confiá-lo a seus servos, disse-lhes:
«Negociai até que eu venha» – Negotiamini donec venia (Lc 19,13)
Mas é um comércio divino em que o mundo não pode compartilhar, por duas razões indiscutíveis e convincentes. A primeira nasce da dignidade desse celeste depósito; e a segunda, daquele que no-lo confiou e cujo fundo reservou para si eternamente. Façamos mais conhecidas estas duas razoes, considerando em primeiro lugar o seu valor e a sua dignidade, a fim de não aviltarmos o dom da ciência cristã.
A matéria de que é feita esta celeste moeda é o Evangelho e todos os seus mistérios. Mas que admirável efigie vejo nela gravada? Cujus est imago haec (Mt 22, 20). Já disse, cristãos, que a efigie que se acha gravada na nossa ciência é a de Cristo, Rei de todos os reis. Oh! Como a efigie dum tão grande Príncipe aumenta o preço deste dom, e quão inestimável é o seu valor!
Que fazeis, almas mercenárias, quando simplesmente mirais ao fim de traficar com o mundo para adquirirdes bens temporais? O comércio faz-se por troca; e a troca funda-se na igualdade. Ora que igualdade achais entre a ciência de Deus, que compreende em si os tesouros celestes, e esses miseráveis lucros de que a fortuna dispõe?
O primeiro homem, meus senhores, que se atreveu a nivelar coisas tão dessemelhantes como são o dinheiro e os dons de Deus, foi esse infame Simão o Mágico, que mereceu por esse crime a maldição dos Apóstolos, e depois se tornou a execração de todos os séculos subsequentes. Mas eu não receio afirmar que os que se dão à ciência eclesiástica com o fim exclusivo de auferirem lucros, ou com o fim de economizarem, para outro uso, os seus interesses temporais, enveredam pelo caminho desse mágico e atraem a si, como se fôra um raio, esta imprecação apostólica:
Pecunia tecum sit in perditionen – «Que o teu dinheiro, infeliz, seja contigo para perdição» (At 8, 20)
Direi neste lugar o que penso? Eles concordam com Simão, nivelando as coisas divinas com os bens perecíveis; mas há esta diferença vergonhosa para aqueles a quem me refiro: é que no mercado de Simão o dinheiro é o preço que Ele oferece, e a graça do Espírito Santo o tesouro que pretende adquirir; ao passo que eles alteram a ordem do contrato, para o tornar mais profano e mais mercenário. Prodigalizam e prostituem a graça do céu para possuírem os bens da terra. Simão dava dinheiro pelo dom de Deus, e eles desprezam o dom de Deus para ganhar dinheiro. Que
indignidade! De maneira que enquanto São Pedro recrimina Simão «porque cuidava que o dom de Deus se alcançava por dinheiro» – Donum existimasti pecunia possideri (Idem), podemos nós dizer deles que pretendem alcançar dinheiro pelo dom de Deus, no que seriam incomparavelmente mais covardes e mais criminosos do que Simão, apesar deste ter reunido ambos os crimes, e dos Santíssimos Padres terem sabiamente observado (S. August., in Psal., CXXX, n. 5), que era certamente com o intento de vender que ele queria comprar.
Evidentemente, cristãos, os que assim profanam a ciência do cristianismo não lhe conhecem o merecimento; aliás, envergonhar-se-iam de aviltá-la duma maneira tão abjeta. Nós vemos ordinariamente que esses artistas mercenários alteram e falsificam, por uma combinação desconhecida, essa divina moeda. Eles não apregoam essas máximas puras que ensinam a desprezar os bens terrenos e não a granjeá-los. A ciência que estudam não é a ciência de Deus, vitoriosa do século e das suas ambições; mas uma ciência aduladora e lucrativa, própria dos negócios mundanos, e não do sagrado comercio do céu:
Et in avaritia fictis verbis de vobis negotiabuntur – «A avareza há de leva-los a seduzir-vos por palavras astuciosas, e farão de vós uma espécie de mercadoria» (2Pd 2, 3)
Ora, se nós meditamos santamente na pura ciência do cristianismo, empreguemos-la também como é de direito, auferindo lucros com a salvação das almas e tirando um nobre proveito dum comércio tão honroso. Imitemos Santa Catarina, que realça de tal maneira esse dom divino, que os cortesões e os filósofos, os seus amigos e inimigos, enfim, todos os que dela se aproximam, incluindo a imperatriz, ficam animados dum ardente desejo de se entregarem a Jesus Cristo. Assim devia ser utilizado esse admirável tesouro, que fora confiado a sua fé.
Para expor agora a segunda razão que prometi, e com a qual vou acabar o meu discurso, direi que a ciência do cristianismo é um bem que nos não pertence. Jesus Cristo, ao depositá-lo nas nossas mãos, reservou-se o principio desse bem; e nós recebemo-lo dEle por empréstimo, ou para melhor dizer, como um depósito do qual devemos um dia dar-lhe conta: Negotiamini dum venio – «Negociai, que eu vo-lo concedo»; mas sabei que hei de vir pedir-vos conta de toda a vossa administração e do emprego que do meu bem houverdes feito.
Sendo assim, cristãos, não devemos dispor desse bem como se fossemos seus proprietários. Parece-me bastante justo que, a empregarmos o bem alheio, seja num comercio em que o seu dono possa tomar parte. E que parte dareis ao divino Salvador nessas terras, nessas rendas e nesses lucros que acumulais de sobejo?
«Não sabeis que Ele é nosso Deus, e que não carece dos nossos bens?» – Deus meus es tu, quoniam bonorum meorum non eges (Sl 15, 2)
Mas se não carece dos nossos bens, carece das nossas almas queridas, pelas quais há de em breve baixar do céu a terra. Foi para encontrar essas almas perdidas e transviadas, como ovelhas, que Ele percorreu todos os desertos; foi para as reunir ao rebanho sagrado que as levou aos ombros; foi para as lavar das suas manchas que derramou todo o seu sangue; foi para as curar das suas enfermidades que as ungiu com o seu Espírito Santo; e foi para as alimentar e fortificar que lhes deu o seu próprio corpo.
Por consequência, irmãos, é nesse comércio das almas que devemos empregar os seus dons; e quando chegar o tempo de lhe darmos contas, não há de esse grande Ecônomo ficar vexado de repartir convosco um lucro tão honroso. Receberá da vossa mão as almas que lhe trouxerdes, e, para reconhecer tão precioso trabalho, dirá da sua parte: Vinde, servo fiel, já que soubestes exaltar o meu depósito, segundo o meu espírito e as minhas ordens; já é tempo de receberdes a vossa recompensa.
Qual será a taxa dessa gloriosa recompensa? Responde-nos o profeta Daniel:
Qui docti fuerint, fulgebunt quasi splendor firmamenti; et qui ad justitiam erudiunt multos, quasi stellae in perpetuas aeternitates – «Os que d’outrem houverem aprendido a doutrina sagrada, resplandecerão como o esplendor do firmamento; e os que tiverem ensinado, brilharão como estrelas por toda a eternidade» (Dn 12, 13)
Por onde vedes, cristãos, que, por uma sabia disposição da justiça divina, os que d’outrem receberem os seus ensinamentos são comparados ao firmamento que apenas brilha pela reflexão da luz dos astros; mas os que iluminarem a Igreja pela doutrina da verdade, são propriamente astros brilhantes e origens duma luz viva e imortal.
Por isso Santa Catarina fez rejubilar a celeste Jerusalém por um esplendor duplicado. Toda ela é cheia de luz por ter aprendido humildemente e fielmente praticado o que de mais excelente, se ensina na escola de Jesus Cristo; mas esse esplendor centuplica-se, porque ela derramou por muito longe a luz da ciência de Deus, e fez brilhar em muitas almas as verdades eternas, Não imagineis, cristãos, que os que receberam na Igreja o ministério de ensinar os outros, sejam os únicos, a pretender essa recompensa que até uma donzela conseguiu alcançar. Todos os fiéis de Cristo devem esperar essa glória, porque todos devem trabalhar no sentido de se edificarem mutuamente por sagrados preceitos. É por isso que o apóstolo São Paulo adverte em geral os filhos de Deus, dizendo que devem adubar os seus discursos com o sal da sabedoria divina:
Sermo vester semper in gratia sale sit conditus, ut sciatis quomodo opportet vos uniquique respondere – «Que a vossa palavra seja sempre edificante e adubada com o sal da sabedoria, para que saibais como vos convém responder a cada um» (Cl 4, 6)
Como são cheios de graça estes dizeres, e como este sal tem energia para fazer tomar o gosto pela verdade!
Quando se ouvem os sacerdotes pregar a palavra do Evangelho, não sei que hábito funesto faz com que a escutem da boca deles com indiferença estoica. Espera-se que eles recriminem os costumes perversos; e diz-se que o fazem por dever de oficio, ligando então o espírito humano indócil pouca importância a este assunto. Mas quando um homem, que é considerado como profano, expõe leal e simplesmente o que sente em si a respeito de Deus, quando tapa a boca a um libertino que faz gala do vício ou que moteja despejadamente das coisas sagradas, mais uma vez vos digo, cristãos, que semelhante dizer, adubado com esse sal da graça, tem energia para excitar o apetite e despertar o gosto pelos bens eternos!
Por consequência, irmãos, é conveniente que todos preguem o Evangelho na família, no seio dos amigos, nas práticas familiares e nas reuniões; que cada um empregue toda a luz do seu entendimento para conquistar as almas que o mundo alicia, e para fazer reinar sobre a terra a santa verdade de Deus, que o mundo procura banir com as suas ilusões. Se o erro, se a impiedade se todos os vícios tem os seus defensores, haveis vós ó santa verdade, de ser abandonada por aqueles que servem? Os que vos professam amizade não se atreveriam a erguer a voz para vos glorificar? Defendamos irmãos, defendamos energicamente uma causa tão justa: resistamos a iniquidade, que, não se contentando somente com ser tolerada, se atreve ainda a exigir que a louvem. Falemos amiúde das nossas esperanças, da doce tranquilidade duma alma fiel, dos tédios consumidores da vida presente, e da paz, que nos aguarda na vida futura. E assim, a verdade eterna, que tivermos glorificado com os nossos discursos, há de glorificar-nos com as suas recompensas, na santa comunhão que vos almejo, por todos os séculos dos séculos, com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo. Amém.
Referências:
(1) Nota marg.: Não é permitido ocultar a verdade; porque não há coisa que ela mais tema do que é estar oculta, diz um antigo. E Santo Agostinho diz: Terribiliter admones nos ut nolimus eam habere privatam. É ela um bem público; mas, quem a manifestar, deve temer a vanglória. Para a evitar, faz a teologia esta bela distinção: Gratia gratum faciens, gratiae gratis datae; aquela, para nós; estas, para os outros. Sobre a sua distinção, raciocinemos deste modo: As primeiras graças, como por exemplo a caridade, são-nos concedidas para nosso uso e para ornamento interior das nossas almas; contudo não é permitido que delas façamos gala, porque, embora nos sejam conferidas, não proveem de nós: Si accpepisti, quid gloriaris. Da segunda espécie é muito menos permitido vangloriarmo-nos. Tem de comum com a primeira o fato de não provir de nós; e tem de particular o não vir para nós.
Ora, vós fazeis um duplo latrocínio: tirai lá àquele donde ela provem, o que é comum com a primeira; mas agravais o vosso crime, roubando-a àquele para quem ela é destinada.
Voltar para o Índice dos Sermões de Bossuet
(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 5-32)