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Panegírico de São Tomás de Cantuária

Panegírico de São Tomás de Cantuária

Tomás Becket nasceu em Londres a 21 de dezembro de 1117 duma família anglo-saxônia. Estudou sucessivamente em Oxford, em Paris e em Bolonha. Tendo-se dedicado à carreira eclesiástica, em breve adquiriu grande influência, pelo que Henrique II o elevou à dignidade de chanceler do reino, de preceptor de seu filho, e mais tarde de arcebispo de Cantuária, em 1162. Como quer que o rei pretendesse restringir a jurisdição do clero, pelos seus estatutos de Clarendon, elaborados em 1154, tratou logo o arcebispo de defender animosamente os interesses da Igreja; mas sendo condenado, em 1165, pelo sínodo de Northampton, refugiou-se para junto do Luiz VIII, rei de Franca, que chegou a reconciliá-lo com Henrique II. Ao tempo surgem umas tumultuosas agitações políticas que assinalaram o regresso do arcebispo ao reino; mas o rei da Inglaterra exprimiu imprudentemente o desejo de ser livre do primaz do Cantuária. Imediatamente partiram quatro cavaleiros para a sede do bispado, e ali mataram o infeliz arcebispo mesmo aos pês do altar onde ele ia celebrar o oficio divino. Henrique II teve o desplante de negar este crime, mas no túmulo da vítima confessou-o publicamente e pedia, perdão. A Igreja Católica venera este santo no dia 29 de dezembro.

(V. S. Tomás Becket, sua vida e suas Cartas, obra de M. Darboy, organizada segundo o trabalho de R. Giles. Paris, 1858, 2 vol, em 8º)

Pregado em Paris, na colegiada de Saint Thomas du Louvre, no dia 29 de dezembro de 1668.

SUMÁRIO

Exordio. — Jesus Cristo praticou sempre atos e humilhação, primeiramente na santidade da Sua pessoa e depois em todos os dias da Sua vida. A Igreja não pode gozar de vantagem alguma que lho não custe a morte de seus filhos. Foi por este motivo que São Tomás deu a vida.

Proposição e divisão. — Os mártires que combateram pela fé consolidaram-na pelo testemunho do seu sangue, açaimaram pela sua paciência o ódio público, e pela sua constância invencível confirmaram os fiéis. O santo arcebispo de Cantuária consolidou primeiro a autoridade eclesiástica violentamente oprimida; converteu depois os corações indóceis; e animou em seguida o zelo dos que foram propostos para seus defensores.

1.º Ponto. — Igreja é como que uma desconhecida na terra onde se acha revestida dum caráter real, pela soberania inteiramente espiritual que nela exerce. Os príncipes concederam a Igreja grandes privilégios e a Igreja erigiu aos príncipes um trono nas consciências. Henrique II, rei da Inglaterra, declara-se inimigo da Igreja; mas São Tomás representa com brandura e firmeza que as duas potências devem auxiliar-se mutuamente, e morre pelos direitos da Igreja.

2.º Ponto. — Nos primeiros séculos cristãos eram os príncipes inimigos da Igreja, mas, depois de assinada a paz, operou-se a união. São Tomás resiste até à morte do príncipe que quer usurpar os direitos da Igreja, e o seu sacrifício converteu Henrique II.

3.º Ponto. — O sangue de São Tomás reanimou a coragem do clero, que tem privilégios para que a religião seja respeitada, possui bens para o exercício dos santos ministérios e parada subsistência dos pobres; e tem autoridade para que ela sirva de freio a licença, de barreira a iniquidade e de apoio a disciplina.

Peroração. — Praza ao divino Salvador que todos os que Ele chamou a vida eclesiástica imitem as virtudes, de São Tomás de Cantuária.

In morte mirabilia operatus est
Na morte operou coisas maravilhosas.
(Eclo 48, 15)

Os mistérios de Jesus Cristo são uma queda contínua, pois, enquanto viu depararem-se-lhe novas baixezas, nunca deixou de se humilhar. Ele próprio se compara no seu Evangelho a um grão de trigo que cai no solo (Jo 12, 24), e efetivamente, andou sempre a cair, primeiramente do céu à terra, e do alto do seu trono a um humilde presépio; e depois foi gradualmente caindo até a ignomínia do suplício, até à obscuridade do túmulo e até às profundezas do inferno. E porque já não podia cair mais fundamente, foi também o inferno que lhe marcou o termo fatal das suas quedas misteriosas; e completada afinal essa série de humilhações, foi então que começou a elevar-se coroado de honra e de glória.

O que o nosso Chefe uma vez realizou na Sua pessoa sagrada, opera-o todos os dias nos Seus membros, dos quais temos um ilustre exemplar no mártir a quem hoje veneramos. São Tomás, arcebispo de Cantuária, envolveu-se, em prol dos interesses da Igreja, em longas e infaustas controvérsias com o grande rei Henrique II, da Inglaterra, pelo que foi caindo pouco a pouco do valimento no desagrado, do desagrado no desterro, do desterro numa espécie de extermínio, e deste, finalmente, numa morte violenta. Mas a Providência Divina, tendo-o aberto de suas mãos até este ponto, começou depois a elevá-lo maravilhosamente, honrando com milagres o túmulo desse ilustre mártir, obrigando um rei penitente a venerar-lhe as cinzas, conservando os direitos da Igreja pelo sangue deste bendito prelado, injustamente perseguido na defesa da sua causa, e glorificando-o depois pelos seus sofrimentos, dignos da sublimação mais sacratíssima. Dele posso eu agora dizer o que o Eclesiástico disse de Eliseu, «que a sua morte tinha operado grandes milagres» – In morte mirabilia operatus est. Mas para vos mostrar todas estas maravilhas, justo é pedirmos primeiro o auxílio do Espirito Santo pela intercessão da Santíssima Virgem. Ave Maria.

É já lei estabelecida e desde todo o princípio assente, que a Igreja não pode gozar de vantagem alguma sem que lhe custe a morte de seus filhos, e sem que, para consolidar os seus direitos, tenha de derramar sangue, como penhor indispensável e absoluto. O seu Esposo comprou-a pelo sangue que por ela derramou e quer que ela compre por igual preço as graças que Lhe concede. Foi pelo sangue dos mártires que ela ampliou as suas conquistas muito além do império romano e que alcançou o gozo da paz no tempo dos imperadores cristãos, e os troféus da vitória no tempo dos imperadores infiéis. Parece, portanto, que devia ter dado sangue pela consolidação da sua autoridade, como já o tinha dado pelo restabelecimento da sua doutrina; e neste caso, devia a disciplina ter tido mártires, como igualmente os teve a fé da igreja.

Foi por esta causa, senhores, que o vosso glorioso padroeiro deu generosamente a vida. Ultimamente prestamos honra ao primeiro mártir da fé; hoje celebramos o triunfo do primeiro mártir da disciplina; e para que todos compreendam a grande semelhança que há entre este martírio e os de que nos deram prova as antigas perseguições, eu esforçar-me-ei por vos mostrar que a morte do nosso santo arcebispo operou as mesmas maravilhas na causa da disciplina que a dos outros mártires operou noutro tempo, quando se tratava da crença.

E agora, para não vos deixar por muito tempo na incerteza de como os mártires, que combateram pela fé consolidaram pelo testemunho do seu sangue sua fé que os tiranos queriam abolir: de como acalmaram, pela sua paciência, o ódio público que se pretendia excitar contra eles, taxando-os de acelerados; de como confirmaram, pela sua constância invencível, os fiéis, aos quais havia o intento de apavorar com o terrível espetáculo de tantos suplícios; do modo como, aproveitando-se das perseguições, eles os violentaram a cooperar no estabelecimento da sua fé, na conversão dos seus inimigos, na edificação e na consolidação dos seus irmãos; para vos não deixar por muito tempo na incerteza de como tudo isto decorreu, irei já apresentar-vos os efeitos muito semelhantes que acompanharam a morte do grande arcebispo de Cantuária; e a continuação deste discurso vos mostrará que o sangue desse novo mártir da disciplina consolidou a autoridade eclesiástica que estava violentamente oprimida, que a sua morte converteu os corações indóceis dos inimigos da disciplina da Igreja, e que finalmente afervorou o zelo dos que foram destinados para serem seus defensores.

Eis o que eu intento explicar-vos nas três partes do meu discurso.

São Tomás Becket, Bispo de Cantuária

PRIMEIRO PONTO

Para se compreender verdadeiramente o assunto dos famosos combates do grande São Tomás Becket pela honra da Igreja e do sacerdócio, é mister considerar, antes de mais nada, algumas verdades importantes que se relacionam com o estado da Igreja: o que ela é, o que lhe é devido e o que ela deve; que direitos tem sobre a terra, e que meios lhe são ministrados para nela se manter. Eu sei que esta matéria é muito extensa e cheia de questões bastante dificultosas, mas como a decisão destas dúvidas depende de um ou dois princípios, tenho esperança em que, pondo de parte uma grande rede de dificuldades muito intrincadas, hei de poder dizer-vos em poucas palavras o que é essencial e fundamental, e absolutamente indispensável, para conhecerdes o estado da causa pela qual São Tomás deu generosamente a vida. Apresso-me, portanto, a exprimir-vos duas verdades que, a meu ver, explicam perfeitamente o estado da Igreja na terra. A primeira é em que ela passa como uma desconhecida, cujo nome é ignorado ou nem sequer lembrado por quem devia venerá-lo; e a segunda é que, apesar de desconhecida, se acha revestida na terra dum caráter majestoso pela soberania inteiramente divina e inteiramente espiritual que nela exerce. Estas duas verdades, suficientemente esclarecidas, hão de dar-nos a resolução ordenada das dificuldades que propus.

Vamos à primeira verdade, em que a Igreja é como que uma desconhecida no mundo. Esta qualidade constitui a sua glória, e mostra a sua dignidade e a sua origem celeste, quando ela se dedigna de habitar a terra, por onde passa, em vez de parar; e por onde vagueia, em vez de nela permanecer. O que ela mais receia é que seus filhos se naturalizem na terra, e que façam a sua principal residência onde apenas devem ter um lugar de passagem. Mas nós ficaremos compreendendo mais facilmente essa qualidade de desconhecida, se fizermos, enfim, a comparação da Igreja de Jesus Cristo com a Sinagoga antiga.

Não há ninguém que não tenha notado que os livros sagrados de Moisés, além dos preceitos de religião, abundam em leis políticas, respeitantes ao governo dum Estado. Esse sábio legislador prescreve sobre comércio e política, sucessões e heranças, justiça e guerra, e finalmente sobre todas as coisas que podem manter um império. Mas o Príncipe da nova colônia, o Legislador da Igreja, procedeu mui diversamente. Concede aos príncipes do mundo a feitura das leis políticas; porque todas as que Ele nos dá, e que estão escritas no seu Evangelho, só respeitam a vida futura. Ora a diferença entre o povo antigo e o moderno provem do fato da Sinagoga ter de legislar para estabelecer na terra o seu governo, visto que também nela deveria fixar a sua residência; ao passo que a Igreja de Cristo, andando como uma desconhecida no meio de todos os povos do mundo, não tem leis particulares que formem uma sociedade política, bastando dizer dela o que geralmente se diz dos estrangeiros e dos viajantes que, quanto a governo, seguem as leis do país por onde andam em peregrinação, respeitando os príncipes e os magistrados desse país: Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit (Rm 13, 1). É este o único preceito político que nos dá o Novo Testamento.

Suposta esta verdade, se me perguntardes quais são os direitos da Igreja, necessariamente vos respondo que tem grandes vantagens e gloriosas prerrogativas; mas que, visto Aquele de quem ela tudo espera, ter dito que o Seu reino não é deste mundo (Jo 18, 36), o único direito que portanto lhe assiste na terra, é a faculdade de a deixarem, para assim dizer, seguir o seu caminho e completar em paz a sua viagem. É por isso que admiravelmente se podem aplicar a ela e a seus filhos, estas palavras de Tertuliano:

«Todo o nosso cuidado principal neste mundo, é sair dele o mais depressa possível» – Nihil nostra refert in hoc aevo, nísi de eo quam celeriter excedere (Apolog„ n. 41)

Mas talvez imagineis que eu represente a Igreja como uma desconhecida sem valimento, e a deixe sem autoridade e sem ministério na terra, enfim, completamente despida e desarmada no meio de tantas potências, inimigas da sua doutrina ou ciosas da sua grandeza. Não, irmãos, assim não será. Não é sem motivo que ela constantemente percorre o mundo inteiro, pois foi enviada, por ordem suprema, para nele juntar os filhos de Deus e reunir os seus eleitos, dispersos por todos os países. Está encarregada de os tirar do mundo, havendo mister vir cá buscá-los, para os levar ao Criador, que os chama a sua presença; e atendendo, cristãos, a que ela os vai entregar a Deus, tomando-os a sua proteção, servindo-lhes de guia na viagem que com eles faz, e lhes dirija os passos vacilantes, acompanhando-os sempre nessa peregrinação bem-ditosa! Tudo isto pode fazer, porque dispõe da sua autoridade, das suas leis e da sua vigilância espiritual; tem os seus ministros e os seus magistrados, pelos quais exerce, como diz Tertuliano, «uma divina censura contra todos os crimes» – Exhortationes, castigationes et censura divina ( Apolog., 39). Ai dos que a perturbam, ou se intrometerem nessa celeste administração, ou ainda se arriscarem a usurpar-lhe a menor parte. É uma injustiça inaudita pretender despojar essa Esposa do Rei de todos os reis, só porque ela é desconhecida e se acha inerme. Quem se atrever a por as mãos sacrílegas na arca da sua aliança, terá a Deus como enérgico defensor da sua causa, e como rude vingador daquele que o profanar. Mas deixemos estas reflexões e continuemos o nosso assunto.

Até aqui a Igreja não tem direito algum que a distinga do poder dos homens, a não ser o direito de seu Esposo. Mas os reis do mundo cumpriram o seu dever; porque enquanto essa ilustre desconhecida vigiava pelos seus Estados, concederam-lhe eles grandes privilégios, e assinalaram o seu zelo para com ela com dádivas magníficas. Tão pouco é ela ingrata aos seus benefícios, pois que os publica por toda a terra, não se arreceando contudo de dizer-lhes que, no meio das suas maiores liberalidades, recebem eles mais do que lhe dão, explicando-nos, enfim, claramente que há mais justiça do que graça na concessão desses privilégios. E, para não falar aqui das vantagens espirituais que a Igreja lhes comunica, como podiam eles deixar de lhe conferir algumas honras do seu reino, se ela tanto vela pela sua conservação? Enquanto eles reinam sobre os corpos pela força, e talvez sobre os corações pela inclinação ou pelos benefícios, abre-lhes a Igreja um lugar mais seguro e mais venerável, erige-lhes um trono nas consciências à vista de Deus, aplica um dos artigos da sua fé na segurança das suas pessoas sagradas, e uma parte da sua religião na obediência que lhes é devida. Abafa no imo dos corações, não só os primeiros pensamentos de rebelião, senão os menores murmúrios que contra ela se elevam; e para dissipar qualquer pretexto de revolta contra os poderes legítimos, ensinou constantemente, pela sua doutrina e pelos seus exemplos, que é mister suportar tudo até à injustiça, pela qual se exerce secretamente a própria justiça de Deus. Após serviços tão importantes, não é recompensa merecida conceder-lhe também privilégios? E se ela, a título de recompensa, os fica possuindo, indigno é conceber a ideia de lhos subtrair sem praticar uma extrema injustiça.

Entretanto, Henrique II, rei de Inglaterra, declara-se inimigo da Igreja. Ataca-a no poder espiritual e no temporal, em tudo o que ela tem de divino e no que tem de humano, e usurpa-lhe abertamente a autoridade. Saqueia-lhe o tesouro que encerra a subsistência dos pobres, e empana a honra dos seus ministros com a ab-rogação das imunidades, oprimindo-lhes também a liberdade de que gozam com duras leis de oposição. Príncipe temerário e mal avisado, tu não poderás prever a enorme ruína que há de causar um dia no teu Estado o desprezo da autoridade eclesiástica? Não preverás os excessos inauditos cometidos pelos povos sublevados, quando houverem sacudido esse jugo tão indispensável? Mas nada o pôde deter nos seus assomos cruéis. Os maus conselhos prevalecem, e toda a resistência é inútil, porque ele tudo submete a sua vontade. Só o santo arcebispo de Cantuária é que ele ainda não conseguiu corromper com lisonjarias, nem vencer com ameaças. E, todavia submete a sua constância a provas duríssimas. Nada importa ao santo que o rei o despoje que o avilte, ou que o desterre, porque ele com tudo se resigna; mas que cause a ruína dos seus vassalos, a queda do seu Estado, a perda da sua independência, isto é, que lhe confrange o coração extraordinariamente. Não há nada mais insensível, nem mais sensível ao mesmo tempo do que a verdadeira caridade. Insensível aos próprios males, e nisto diretamente oposta ao amor-próprio, tem uma extrema sensibilidade pelos males alheios. Por isso o grande apóstolo, indiferente a tudo o que com ele se prendia, dizia aos fiéis:

«Eu aprendi a contentar-me com a situação em que me encontro; sei viver pobremente e viver na abundância; habituei-me em todas as conjunturas a ser bem tratado e a sofrer os horrores da fome, a viver no meio das galas da riqueza e a vegetar no meio do asco da indigência» – Scio et humiliari, scio et abundare; ubique et in omnibus institutus sum, et satiari, et esurire, et abundare et penuriam pati (Fl 4, 12)

Todavia, esse homem tão cheio de divindade, mas tão indiferente e tão duro para consigo mesmo, sofre a consequência de todos os males e de todas as aflições que o menor dos fiéis pode suportar.

«Quem enfraquece, exclama ele, que eu também não enfraqueça? Quem é escandalizado, que eu logo me não queime?» – Quis infirmatur, et ego non infirmor? Quis scandalizatur, et ego non uror? (2Cor 11, 29)

A sua ternura para com os seus irmãos é tão grande, tão extremosa, que ele não pode vê-los chorar nem vê-los aflitos, que não sinta uma dor crudelíssima:

«Porque chorais assim, que até se me parte o coração?» – Quid facitis flentes et affligentes cor meum? (1)

De nada servem as vossas lágrimas, que tanto me magoam, «porque eu estou prestes não só a ser preso, mas a morrer também pelo nome de Jesus Cristo» – Ego enim non solum alligari sed et mori paratus sum (At 21, 13). Esse coração diamantino, que parece afrontar o céu e a terra e abalar o inferno, pode suportar a morte e as mais duras violências; mas não pode resistir às lágrimas dos irmãos. Que dor São Tomás deveria sentir ao vê-los consternados e perseguidos por sua causa! Recorda-se então de Jesus que, mal tinha nascido, logo provoca perseguições contra seus pães, que se veem obrigados a abandonar a sua casa por causa dEIe. Assim agora lhe sucedia, porque havia recebido a mesma lei do Altíssimo; e não podendo, neste caso, fazer coisa alguma a favor de seus irmãos, limita-se a dizer-lhes que, visto terem compartilhado das perseguições feitas contra Ele, desejava que compartilhassem igualmente da graça que Deus lhe devia conceder.

O profeta Zacarias, querendo representar-nos a imutável e eterna concórdia que deve haver entre o império e o sacerdócio, diz o seguinte:

«O príncipe será revestido de glória, estará assentado no seu trono e dominará o seu império; e o pontífice estará igualmente assentado no seu trono, havendo um conselho de paz entre os dois» – Ipse portabit gloriam, et sedebit, et dominabitur super solio suo; et erit sacerdos super solio suo, et consilium pacis erit inter illos duos (Zc 6, 13)

Como vedes, a glória, e o esplendor, e a autoridade dominante residem no trono real. Mas embora o Filho de Deus tenha ensinado aos seus ministros que não devem dominar como os mundanos, não deixa com tudo o sacerdócio de ter também o seu trono; pois são dois que o profeta estabelece, como dois são os poderes que admite e que, como se depreende, devem associar-se um ao outro e não estarem subordinados: Consilium pacis inter illos (Mt 20, 25.26). Com isto, muito lucra também o gênero humano, porque vive feliz a sombra (Var.: Ao abrigo) desta concórdia.

São Tomás representou muitas vezes ao rei de Inglaterra, em cartas vibrantes de energia, de suavidade e de modéstia apostólica, que estes poderes devem auxiliar-se mutuamente, darem-se as mãos, e não se olharem com inveja, porque os seus fins são tão diversos que é impossível encontrarem-se sem se desviarem do seu caminho e ultrapassarem os seus limites. Apoiava estes piedosos conselhos na plena autoridade que não só lhe era dada pela santidade do seu caráter, mas pela extremada pureza da sua vida, que era exemplar e admirada em todo o universo.

A França já o conhecia ao tempo em que, decretado o seu exílio, ela lhe abriu generosamente os braços; e o rei Luiz VII, testemunha ocular das virtudes apostólicas desse ilustre varão, nunca deixou de favorecer a sua pessoa e a causa que ele defendia, com os serviços mais relevantes e mais consoladores. Testemunhemos nesta altura a incomparável piedade dos nossos monarcas cristianíssimos. Compreenderam eles que Jesus Cristo só pode reinar com autoridade da sua Igreja; e porque a própria autoridade de que eles se achavam investidos não era mais prezada do que a autoridade eclesiástica, não julgaram indigno do seu poder real dar todo o auxílio aos negócios espirituais, como participantes dos demais assuntos que devem merecer o régio impulso, e que, todos agregados, concorrem para a felicidade dum país. Não cuidou um rei de França, que era imperador, descer da sua dignidade, quando, escrevendo aos bispos de todo o reino, lhes dava a sua incondicional proteção (Var.: o seu incondicional apoio) para as funções do seu ministério, a fim de que eles pudessem executar os seus decretos, servindo-se do poder real, como era conveniente, para satisfação da autoridade prelatícia. Destas últimas palavras dá prova o mesmo rei ilustre a que me refiro: Ut nostro auxilio suffulti, quod vestra auctoritas exposcit, famulante ut decet potestate nostra, perficere valeatis (Ludovic. Pius, Capitul., an. 828, cap. IV).

Tais são as máximas sagradas e perduráveis da monarquia cristianíssima, e prouvera a Deus que o rei de Inglaterra se tivesse deixado inspirar pelos sentimentos e pelos exemplos dos seus augustos vizinhos, porque já São Tomás se não veria na dura necessidade de se opor ao seu príncipe. Mas porque este monarca se torna inflexível, oprimindo constantemente a Igreja, vê-se esta obrigada a empregar os últimos esforços (Var.: expedientes) de que dispõe o seu poder grande e invencível.

Imaginais talvez que ela fulmine excomunhões e anátemas, armas terríveis e exterminadoras da Igreja. Mas embora, Henrique os tivera merecido, Tomás, tão moderado como vigoroso, não ataca assim tão facilmente uma personagem real. Os últimos esforços a que me quero referir são os seguintes; oferece o santo arcebispo a Deus a sua vida; e sabendo que a Igreja nunca é mais forte do que quando fala pela regressa dum longo exílio com um espírito de verdadeiro mártir, preparado para as violências dum rei implacável e de toda a sua corte vivamente irritada.

Santo Ambrósio notou (Serm, contra Axent, n.° 30) já no seu tempo que os homens apostólicos, que heroicamente empreendem obras de piedade e se entregam a censura dos vícios, são miúdas vezes interrompidos na sua missão (Var.: são ordinariamente perturbados) por quaisquer razões políticas. Ora como os pecadores são intolerantes para com os que veem perturbá-los na sua calma aparente (Var.: nos seus prazeres aparentes), e como o seu mais ardente desejo é verem a Igreja decadente e a piedade atacada, comprazem-se de lhe opor o que tem de mais temível, que é o nome de Cesar e os interesses do Estado. Quando Neemias levantava as torres desmoronadas e os muros destruídos de Jerusalém, publicavam os ministros do rei persa por toda a parte que ele andava meditando um plano de rebelião (Esd 6, 6-7); e como a menor suspeita de infidelidade provoca dificuldades infinitas, procuravam arrefecer o ardor do seu zelo com esse infundado terror. Dado, porém, que o santo arcebispo não elevasse torres nem fortalezas, mas que apenas cuidasse em reparar as ruínas duma Jerusalém espiritual, ficou todavia sujeito às mesmas censuras. Henrique, já precavido e irritado (Var.: precavido e exasperado) com falsas informações, declarou com extremo azedume que lhe era infinitamente insuportável a vida desse prelado. Oh! A estas palavras, quantas mãos se não armaram contra Ele!

Notai agora isto, cristãos: se jamais houve um martírio que tão perfeitamente se assemelhasse a um sacrifício, esse é o que eu vou descrever-vos com a mais possível nitidez. Vede os preparativos: o bispo já se encontra na igreja, juntamente com o clero, e todos estão já paramentados. A vítima não está muito longe: preparado convenientemente, como se estivesse avisado do que ia suceder, está o santo pontífice, de olhar calmo, fisionomia imperturbável e gesto brando como sendo a vítima que Deus escolheu para o sacrifício.

Depois de tudo estar assim preparado, vejo eu entrar na igreja os que lhe devem dar o golpe mortal (Var.: e vejo entrar os seus algozes). O santo varão dirige-se ao encontro deles, como fez Cristo junto ao ribeiro de Cedron; e para em tudo imitar este divino modelo, proíbe ao seu clero qualquer meio de resistência, e limita-se a pedir aos seus algozes que respeitem a vida de todos os seus.

«Se é a mim a quem buscais, deixai ir estes, disse Jesus (Jo 18, 8)»

Em seguida, tendo chegado a hora do sacrifício, prepara-se São Tomás para começar a cerimônia. Vítima e pontífice a um tempo, oferece a cabeça e faz a sua oração. Eis os votos solenes e as palavras místicas deste sacrifício:

Et ego pro Deo mori paratus sum, et pro assertione juastitiae, et pro Ecclesiae libertate, dummodo effusione sanguinis mei pacem et libertatem consequatur – «Eu estou preparado para morrer, diz ele, pela causa de Deus e da Sua Igreja; e a única graça que lhe peço neste momento é que o meu sangue lhe possa dar a paz e a liberdade de que o querem privar»

E nisto prostra-se diante de Deus, e pede a intercessão de todos os santos naquele sacrifício solene, não omitindo até uma parte tão importante dessa cerimônia sagrada, que é a invocação do auxílio dos santos mártires e da Virgem Maria, para a Igreja vilmente oprimida. Ele só fala constantemente na Igreja; a Igreja é a única palavra que ele tem gravada no coração e que repetidas vezes lhe aflui aos lábios; e já depois de caído por terra, vitimado pelo golpe cruel, ainda os seus lábios frios e inanimados parecem pronunciar tão cristãmente o nome da Igreja.

Martírio de São Tomás de Cantuária
Martírio de São Tomás de Cantuária

Mas vede agora um novo espetáculo. Depois de haverem despojado o santo mártir das vestes prelatícias, descobrem-lhe outro martírio não menos admirável, que constitui o martírio da sua penitência, e que é nada menos do que um terrível cilício, inteiramente coberto de insetos parasitas. Ah! Mas não desprezemos este quadro, nem tenhamos asco de remexer nessa tão preciosa sordidez. O cilício penetra-lhe horrorosamente a pele, e tão aderente ele se acha ao tronco, ferido pela longa maceração, que parece outra pele sobreposta, ao corpo cingida extremamente. São Tomás foi com efeito um mártir em todo o decurso da sua vida; e o que admira não é Ele ter morrido com tão verdadeira energia, senão ter podido viver no meio de tais sofrimentos. Ó digno defensor da Igreja! Homens como estes é que merecem falar em favor dela e lutar pelos seus interesses, porque lhe asseguram indiscutivelmente a vitória.

Finalmente, as leis que a oprimem vão ser abolidas; e o que o santo arcebispo não pôde obter em vida, há de realizá-lo com a morte. O céu declara-se abertamente; e em quanto os políticos sutilmente discorrem a seu belo prazer, corresponde Deus com milagres tão visíveis e tão frequentes, que os próprios reis e os reis mais ilustres, como são ao nossos reis cristianíssimos, dispõem-se a sulcar os mares para irem venerar as suas cinzas sagradas. Luiz, o Moço, vai pessoalmente pedir-lhe as melhoras de seu filho mais velho, acometido duma doença de morte. Ao grande São Tomás devemos nós Filipe Augusto, devemos-lhe São Luiz, devemos-lhe todos os nossos reis e toda a família real, cujo tronco foi salvo por Ele. Dizei-me agora, irmãos, se a Igreja, quando decadente, encontra defensores como este, e se não tem razão de dizer com o Apóstolo: Cum infirmor, tunc potens sum (2Cor 12, 16). São essas felizes decadências que lhe provocam esses invencíveis socorros, e que armam em seu favor os mais valorosos Soldados e os mais poderosos conquistadores do mundo, que outros mais não são do que os santos mártires. Todo aquele que não defende a autoridade da Igreja, seja abalado de temor por esse sangue precioso dos mártires, que a consagra e a protege. Foi por ter violado os seus direitos que Henrique está vacilante no trono, que a coroa lhe oscila na cabeça, e que o cetro mal se lhe segura nas mãos.

Os povos vizinhos coligam-se, a ordem de Deus, todos os seus vassalos se revoltam e esquecem o seu dever, e o seu próprio filho, olvidando a sua origem, põe-se à frente dos inimigos. Já a vingança do céu começa a persegui-lo de todos os lados; mas é uma vingança misericordiosa, que o submete só para o fazer humilde, e para dum rei pecador fazer um rei penitente. Esta foi a segunda maravilha que operou a morte do santo arcebispo: In morte mirabilia operatus est.

SEGUNDO PONTO

Nessa célebre controvérsia, em que os interesses da Igreja induziram São Tomás a lutar contra um grande monarca, vejo-me eu obrigado a declarar-vos que, não foi com facciosismo nem como rebelde que ele resistia a tão alto senhor, mas com uma grande firmeza aliada a um grande respeito. Se ele se lembrou em todo o tempo de que era bispo, também nunca se esqueceu de que era vassalo; e a caridade pastoral animava-lhe todas as ações de tal sorte, que ele não se tinha oposto ao pecador senão com o intento de salvar o rei.

Coisa estranha não deve de ser para os cristãos haverem de defender-se dos ataques feitos pelos grandes da terra, a sua justa crença, pois que esta mesmo foi uma das primeiras lições que Jesus Cristo deu aos seus santos apóstolos. Mas ainda que esta nova nos predisponha principalmente contra os reis infiéis, vários exemplos ilustres, e entre outros o do grande São Tomás, nos provam muito claramente que a Igreja necessita muitas vezes de se armar de todo o seu vigor no meio da sua paz e do seu triunfo. Quão extremas e perigosas são estas ocasiões, compreendê-lo-eis facilmente, cristãos, se me permitires que vos represente, como que em dois quadros, as duas épocas e os dois estados do Cristianismo: o Império inimigo da Igreja, e o Império reconciliado com a Igreja.

Durante o tempo das hostilidades, havia entre um e outro uma separação completa. A Igreja tinha unicamente o céu, e o Império tinha apenas a terra. Os cargos, as dignidades e as magistraturas constituíam o que em linguagem eclesiástica se chamava o século, e ao qual a Igreja obrigava os seus sectários renunciar. Quem aspirasse as honras mundanas, cometia uma espécie de deserção, e os sábios não admitiam que um cristão nobre pudesse vir a ser magistrado; porque, quando isto foi permitido em certas condições no primeiro concílio d’Arles, realizado nos primeiros anos do reinado do grande Constantino, os próprios termos da licença concedida exprimiam sempre qualquer repugnância com palavras como estas: Ad praesidam prosilire (2), querendo com isto significar todo aquele que ultrapassava os limites marcados, que se divorciava da Igreja, ou que saía das regras estabelecidas. Não era porque os fiéis ignorassem que os poderes do Estado eram legítimos, porque já o próprio São Paulo lhes tinha dito que a sua existência fora ordenada por Deus (Rm 13, 1); mas é que nos primeiros sentimentos de fervor, a Igreja de tal forma se achava envolvida numa atmosfera de divindade, que tudo o que não fosse divino não queria ver aos seus adeptos; e de tal modo afetava também a simplicidade quase mística dos seus santos e divinos pescadores, que não podia habituar a vista a pompa e as grandezas terrenas.

Devo agora dizer-vos, senhores, o conceito em que nesse tempo eram tidos os imperadores, em matéria de religião. Eles não eram somente considerados inimigos da Igreja, porque Tertuliano arrojou-se a dizer que eles nem eram capazes de nela serem recebidos; e certamente ides ficar admirados da liberdade destas palavras que ele proferiu a tal respeito:

«Os Cesares, disse ele, seriam cristãos, se o século que nos persegue pudesse passar sem os Cesares, ou se eles pudessem ser Cesares e cristãos ao mesmo tempo» – Caesares credidissent super Christo, sit aut Caesares non essent saeculo necessarii, aut si et christiani potuissent esse et Cesares (Apolog., n. 21)

Isso são exageros de Tertuliano, direis vós. Porventura não vimos os Cesares submeterem-se por último ao Evangelho, e declinarem a sua majestade aos pés da Cruz? É isso verdade, cristãos, mas é preciso saber distinguir as épocas.

Durante os tempos dos combates, donde saíram os mártires para a missão da penitência, eram os Cesares indispensáveis aos séculos, devendo o partido contrário à Igreja tê-los a sua frente. Ora razão tem Tertuliano em dizer que o nome de Imperador e de Cesar que, segundo as ocultas disposições da Providência, era um nome de majestade, se tornava incompatível com o nome de Cristão, que, nesse caso, devia ser um nome de opróbrio. Os fiéis desses tempos, que viam os imperadores por este prisma, não receavam corromper a simplicidade dos seus costumes no ambiente da corte, nem era para temer que as graças dos imperadores pudessem tentá-los (Var.: demovê-los) porque as mãos, que eles viam ensopadas e ainda a escorrer do sangue dos mártires, não só lhes tornavam suspeitos os seus dons, senão também odiosos. Esta recusa de dons valia-lhes necessariamente ameaças, a que eles resistiam sempre com o grande vigor de que se armavam, e que, para assim dizer, constituía o seu apanágio; e a sua resistência tornava-se tanto mais enérgica quanto mais declarada era a guerra com que um poder tirano pretendia oprimir o Evangelho.

Mas depois de assinada a paz da Igreja, depois do Império se haver coligado com ela, foram-se as coisas modificando paulatinamente. Os fiéis deixaram de recusar ao mundo os presentes que ele lhes fazia, porque o mundo quis ligar-se a eles pelos laços da amizade. Esses cristãos selvagens e desumanos, que não podiam entrar no convívio íntimo da corte, começaram a achá-la atraente e a disputar-lhe as graças, logo que a viram cristianizada. E deste modo, as delícias da paz quebrantaram esses ânimos varonis, invencíveis pelo exercício da guerra; e a ambição, a lisonja, e o amor das grandezas, inoculando-se insensivelmente na Igreja, enervaram pouco a pouco esse antigo vigor, inclusive na classe eclesiástica, que era o seu apoio mais firme, e até se viu, como diz São Gregório (3), a honra do século entrar num poder que Deus estabelecera para a aniquilar.

Neste estado do cristianismo, se acontece haver um rei cristão, como Henrique da Inglaterra, que pretenda usurpar a Igreja, não haverá mister, para lhe resistir, uma resolução extraordinária? Quanto não desejou o nosso santo prelado, visto que era da vontade de Deus que ele fosse perseguido por amor da justiça, quanto não desejou que Deus lhe enviasse em Nero ou outro monstro semelhante para o perseguir? Assim já não teria de lutar com tão fortes considerações que o estimulavam contra um rei cristão, seu amo e seu benfeitor, de quem tinha sido primeiro ministro. Mas há mais: como conseguiria um inimigo declarado, a quem o pretexto do nome cristão não forneceria meio de iludir os bispos com belas aparências, como conseguiria afastar todos os seus irmãos bispos para o deixar só a ele entregue a defesa da justa causa? É esta uma nova espécie de perseguição que se levanta contra São Tomás; perseguição formidável, à qual o poder real dá toda a energia, e a que a profissão do cristianismo proporciona o meio de empregar a astúcia. Não é em circunstâncias análogas que a justiça necessita de ser mantida com todo o vigor eclesiástico? Tanto mais que não basta somente resistir a esse rei soberbo, senão também procurar submetê-lo, mas submetê-lo para salvação sua, por meio da humildade da penitência.

O nosso santo bispo não ignora que não há coisa mais útil para os pecadores do que encontrarem obstáculos aos seus criminosos intentos. E então, não cede ele a iniquidade por ela estar armada e ser apoiada pela régia mão; pelo contrário, vendo-a prosseguir na sua obra nefanda, dum lugar eminente donde pôde manifestar-se com mais energia, julga-se também na obrigação de se sublevar contra ela, como um dique que se vai elevando a medida que as ondas se agitam e se tornam encapeladas. Deste modo, o desejo de salvar o rei obriga-o a resistir-lhe com toda a força da sua vontade. Mas que digo eu? Com toda a força da sua vontade? Porventura, é permitido a um vassalo usar da força contra o seu príncipe; e cuidando fazer dele um homem generoso, não fará antes um homem rebelde? Não, irmãos, não vos arreceeis, nem do procedimento de São Tomás, nem da simplicidade das minhas expressões. Na linguagem eclesiástica, a força tem uma significação diferente da que tem na linguagem mundana. A força, como a compreende o mundo, vai até ao atentado; mas como a Igreja a compreende, força resume-se na plena tolerância, porque é este o limite que lhe está prescrito. Escutai o apóstolo! São Paulo: Nondum usque ad sanguinem restitistis. Era como se dissesse:

«Vós não haveis lutado até ao último extremo, porque não vos defendestes até fazerdes sangue»

Não quer ele dizer que atacásseis até derramardes o sangue dos vossos inimigos, senão que combatêsseis até derramardes o vosso próprio sangue.

Mas agora há de imaginar-se que São Tomás abuse do poder de que o investe a Providência para lutar vitoriosamente com o inimigo do Evangelho. Não sucede, porém, assim. São Tomás não abusa das suas máximas vigorosas. Não é por orgulho que pega nessas armas apostólicas, para se exaltar em face do mundo; serve-se delas como dum escudo indispensável nas ocasiões extremas em que a Igreja se vê atacada. A força do santo prelado não depende, portanto, do concurso dos seus amigos, nem duma intriga subtenente armada. Não sabe fazer alarde da sua paciência para tornar mais odioso o seu perseguidor, nem tão pouco empregar meios secretos para sublevar os espíritos. Só tem a seu favor as orações dos pobres, e os gemidos das viúvas e dos órfãos. Estes é que são os defensores dos bispos, dizia Santo Ambrósio (Hb 12, 4); são eles os seus guardas e todo o seu exército. Mas São Tomás é forte, é de caráter inquebrantável, e não tem espírito timorato, nem também espírito de calunia. Pode verdadeiramente dizer a Henrique, rei da Inglaterra, o que Tertuliano dizia, em nome de todos os cristãos, a um magistrado do Império, grande perseguidor da Igreja: Non te terremus, qui nec timemus (Serm. contra Auxent., n. 33). Aprende a saber quem nós somos, e verás que espécie de homem é um cristão:

«Nós não pensamos em te amedrontar, mas também somos incapazes de te temer»

Não somos temíveis nem covardes. Não somos temíveis, porque não sabemos tramar conspirações; nem somos covardes, porque sabemos morrer cristãmente.

Isto é o que parece dizer o grande São Tomás, e é com este sentimento que ele tão bem sabe aliar os deveres do episcopado com os da sujeição. Non te terremus exprime o vassalo sempre obediente e respeitoso; qui nec timemus indica o bispo sempre firme e inabalável. Por outras palavras: Non te terremus é o mesmo que dizer: «eu nada medito contra o Estado»; qui nec timemus «porque estou disposto a sofrer tudo em prol da Igreja». Razão, tive eu, portanto, em dizer-vos que ele resiste com toda a força da sua vontade; mas essa força não é rebelde, porque é a da paciência. E ele, em vez de ostentar essa paciência com porte altivo e ar de desprezo, para tornar odioso o seu perseguidor, distingue-se, pelo contrário, pela sua extremada modéstia, segundo o preceito do Apóstolo (Fl 4, 5). Com este meio é que ele espera converter o rei. Propõe-se aplacá-lo, depois dele se haver cansado na ira. O seu desejo é sofrer sempre, para que, esgotada a sua vingança, ela dispare em melhores sentimentos. Embora ele veja que os seus bens extorquidos, o desdouro da sua reputação, as fadigas dum longo exílio, e a injusta (Var.: a cruel) perseguição de todos os seus, não tenham podido cevar a cólera do rei tirano, sabe, todavia, quanto pode o sangue dum mártir, e está muito disposto a derramar o seu para abrandar o coração do seu príncipe. E não foi iludido na sua esperança. O sangue desse mártir, o sacrifício cruento de Tomás, produziu outro sacrifício, sacrifício de humildade e de penitência; pois levou a presença de Deus outra vitima, e essa era uma vitima real e soberana.

Já vos descrevi, cristãos, todo o aparato do primeiro sacrifício que sofreu o nosso mártir e defensor da Igreja; mas vede como ainda esse sacrifício é digno do vosso reparo! Além, está um bispo, de aparência grave e modesta, a frente do seu clero; aqui, está um rei, com o ar vexado e confuso, rodeado por toda a sua corte. Além, vê-se um bispo divinamente paramentado com todas as suas vestes; aqui, vemos um rei humildemente despojado de todas as suas galas. Além, vedes espadas desembainhadas, que são as armas da crueldade; aqui, vedes uma disciplina e um cilício, que são os instrumentos da penitência. No primeiro sacrifício, se ficastes admirados pelo denodo extraordinário, também ficastes horrorizados pelo nefando sacrilégio; aqui, porém, tudo é alivio, tudo é paz e tudo é santidade. A vítima foi fulminada; mas a contrição é que lhe dilacerou a alma. A vítima foi sacrificada; mas a humildade é que a derrubou por terra. O sangue que se vê derramado, são as lágrimas da penitência: Quidam sanguis animae (4); e o altar do sacrifício, é o próprio túmulo do santo mártir. O rei prostra-se diante desse túmulo, e faz uma humilde reparação das cinzas do grande São Tomás. Honra essas cinzas, oscula essas cinzas, rega essas cinzas com lágrimas, mistura as lágrimas com o sangue do mártir, e santifica essas lágrimas pela reunião desse sangue. E esse sangue que clamava vingança, aplacado pelas lágrimas dum rei penitente, implora proteção para o seu reino, consolida o seu trono abalado, reanima os seus servidores, entrega nas suas mãos o rei da Escócia, seu maior inimigo, chama ao caminho do dever o filho que andava transviado, e finalmente, num só dia, restabelece a harmonia no seu palácio, a tranquilidade no seu Estado e a paz na sua consciência. Eis aqui o resultado da morte de Tomás; foi esta a segunda maravilha que ela operou: a conversão dos perseguidores. A última depende em parte de nós, sendo para isso necessário, irmãos, que zelo pela santa Igreja se afervore tanto mais quanto mais edificado ele vai sendo pelo exemplo desse grande homem.

TERCEIRO PONTO

Com a morte de Tomás, começou o clero da Inglaterra a readquirir influência; e o sangue desse mártir reanimou e agregou todos os espíritos para manterem coletivamente e santamente os interesses da Igreja. Aprendamos nós também a amá-la e a ambicionar a sua glória, mas não basta imitarmos o ilustre São Tomás na cuidadosa defesa da sua autoridade e dos seus direitos; é preciso que ele nos ensine a melhor maneira de usarmos desses direitos, cada um segundo a esfera em que Deus o colocou no ministério. Ora essa melhor maneira não a deveis vós ignorar, se atenderdes a voz do sangue do mártir; pois basta considerar a razão porque ele foi derramado, e porque toda a Igreja celebra com tanta devoção o martírio de São Tomás. Essa razão resume-se em o quererem privar dos seus privilégios, em lhe quererem usurpar o poder e extorquir os bens; e esse grande arcebispo opôs resistência a tudo com grande piedade.

Mas se esses privilégios apenas servem para dar direito a distinções e honrarias, orgulhosamente desfrutadas; se esse poder permite viver no meio das maiores grandezas mundanas; se o fim dessas riquezas é satisfazer a iníquos desejos, ou avocar uma consideração por meio das pompas do mundo, como foi que tudo isto contribuiu para fazer um mártir tão venerado e tão glorioso? E como foi que este mártir se tornou objeto digno de ocasionar sangue e de causar a maior perturbação num grande reino? Não dá isto causa a que os políticos ímpios digam que São Tomás foi mártir da avareza ou da ambição do clero, e que se nós lhe consagramos a memória foi porque Ele nos garantiu interesses temporais?

Palavras essas dignas dum ímpio, direis vós; arrazoado digno dum herege ou dum libertino. Perfeita- mente de acordo, meus senhores; mas respondamos a esse herege, tapeemos a boca a esse libertino, e justifiquemos o martírio do ilustre São Tomás de Cantuária, que não há de ser difícil. Em primeiro lugar, diremos que se o clero tem privilégios, é para que a religião seja respeitada; se possui bens, é para os aplicar ao exercício dos sagrados ministérios, a ornamentação dos altares e a subsistência dos pobres; e se tem autoridade, é para que ela sirva de freio a licença, de barreira à iniquidade de apoio a disciplina. Em segundo lugar, diremos que se é talvez conveniente o clero ter uma certa preponderância no século, e até uma certa nobreza temporal, ainda que moderada, é para combater o mundo com as suas próprias armas, e para atrair ou reprimir as almas enfermas pelas coisas que habitualmente as impressionam. Essa nobreza, esses auxílios e esses sustentáculos externos da Igreja podem evitar que o mundo o ataque, para assim dizer, nos seus próprios bens, nesse divino poder de que ele se acha investido, e até no coração da religião; são como que as exterioridades dessa santa Sião, dessa bela fortaleza de Davi, que ele não deve por modo nenhum deixar tomar e ainda menos entregar aos inimigos.

Além disso, como o mundo vai insensivelmente fazendo os seus progressos, ao passo que São Tomás só poderia atrasá-los, o intento a tal respeito é sempre glorioso. Devemos, porém, concordar que a defesa empregada pelo nosso mártir, foi verdadeiramente invencível, e que não podia derramar o seu sangue por causa tão justa como a da Igreja.

Mas se o mundo insiste em afirmar que grande número de eclesiásticos sacrificam os seus direitos ao orgulho, o seu poder a tirania e as suas riquezas a vaidade ou a avareza; se a apologia que fazemos e a defesa que tomamos apenas existem nosso pensamento e nos nossos discursos, e não nos nossos costumes e na nossa vida; deverá então admitir-se que, apesar da nossa origem ser verdadeiramente santa, nos degeneramos e quisemos secularizar a simplicidade dos nossos pais, acobertando com o pretexto da religião as nossas paixões particulares. Mas não será vilipendiar o sangue do grande São Tomás, sacrificar o seu martírio aos nossos interesses, e expor ás irrisões injustas dos nossos inimigos a causa tão justa e gloriosa pela qual ele sacrificou a vida?

Praza pois ao divino Salvador, que instituiu o clero para ser a luz do mundo, que todos os que são chamados as honras eclesiásticas, seja qual for o grau do sagrado ministério em que tenham sido colocados (Var.: seja qual for a parte do sagrado ministério que lhes tenha sido confiada), empreguem tão utilmente a sua autoridade que para sempre se louve o grande São Tomás por a ter tão bem defendido; e que apliquem tão santamente e tão castamente o bens da Igreja, que se veja por experiência a razão que havia em os conservar em honra dum sangue tão puro e tão precioso. Saibam manter a dignidade da classe sagrada pelo desprezo das grandezas do mundo, e não pela conquista das suas honras; pelo exemplo da sua modéstia, e não por provas duma estulta vaidade; pela mortificação da penitência, e não pela abundância e pelos escrúpulos dos mundanos. Façam da sua vida a edificação dos povos, da sua palavra o ensinamento dos simples, da sua doutrina a luz dos transviados, do seu vigor e da sua firmeza a confusão dos pecadores; façam da sua caridade o asilo dos pobres, do seu poder o esteio dos fracos, da sua casa o refugio dos aflitos, e da sua vigilância a salvação de todos. D’esta maneira, conseguiremos despertar no espírito de todos os fiéis essa antiga veneração pelo sacerdócio, e iremos todos juntos, nós e os povos que edificamos, receber com São Tomás a coroa da imortalidade que nos está prometida. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Autores a consultar: Fléchier e o Pe. Serafim também fizeram o Panegírico de São Tomás de Cantuária.

Referências:

(1) Segundo o grego, deveria traduzir-se por: Comminuentes, conterentes.

(2) Concil. Arelat. I, can. VII

(3) Pastor., part. I, cap. VIII

(4) S. Agost., Serm., CCCLI, n. 7

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 85-113)