Pode colher-se um quarto fruto da explicação da quarta palavra: Tudo está consumado. Sendo verdade, como não pode deixar de o ser, que por justo juízo de Deus Cristo, livrando-nos da escravidão do Diabo, nos passou para o reino do Filho da sua predileção; indaguemos diligentemente, e não nos cansemos de indagar a causa, enquanto não a descobrirmos, porque tamanho número de gente antes queria tornar-se escravo do inimigo do gênero humano, para com ele arder eternamente nas chamas do inferno, do que servir a Cristo, Príncipe benigníssimo; e, mais ainda do que isto reinar felicíssima e certissimamente com Ele. Eu não acho outra senão que no serviço de Cristo se deve começar pela cruz, e que é necessário crucificar a carne com todos os seus vícios e apetites. Esta amarga bebida, este cálice de absinto, nauseia o homem, fraco por natureza; e é muitas vezes o motivo porque ele antes quer continuar na enfermidade, do que curar-se, tomando aquele remédio. Se o homem não fosse homem, mas bruto, ou homem em delírio e privado da razão, ainda poderia conceder-lhe que se governasse pelas sensações e apetites; porém, sendo o homem um ser racional, conhece certamente, ou pode conhecer que, quem mandou que a carne fosse crucificada com os seus vícios e apetites, não só quer o comprimento deste seu preceito, mas até ajuda, mais ainda, previne com o auxílio da sua graça do mesmo modo, como um médico prudente sabe preparar um copo de remédio amargoso, de sorte que não custo a tomar. De mais, se cada um de nós fosse o primeiro a quem se dissesse: Toma a tua cruz, e segue-me; talvez pudesse ficar indeciso, e desconfiar das suas forças, não se atrevendo nem mesmo a chegar-lhe as mãos, por acreditar, que não tinha forças de poder com ela; porém, tendo sido tantos antes de nós, não só homens, mas até meninos e meninas, os que esforçada e valentemente tem levado a sua cruz atrás de Cristo, e tem crucificado a carne com os seus apetites, que receio podemos nós ter? Porque vacilamos? Santo Agostinho (1), convencido por este argumento, venceu a concupiscência carnal que por muito tempo tinha julgado invencível, pois apresentou aos olhos da sua alma por meio de um resumo de memória muitos e muitas, que ofendiam a castidade, muitos e muitas que se conservaram virgens, e dizia a si mesmo:
«Porque não hás de tu poder, como estes e estas puderam? Nem eles nem elas puderam por força sua, mas por força do Senhor seu Deus»
E o que dizemos da concupiscência da carne, pode também dizer-se da concupiscência dos olhos, que é a avareza, e da soberba da vida, pois não há vício nenhum, que com o auxílio de Deus não possa ser crucificado; nem há o perigo de que Deus não queira auxiliar-nos, porque São Leão nos diz:
«Justamente de nós exige o cumprimento dos seus preceitos, porque se antecipa com o auxílio» (2)
São por isso dignos de compaixão, para não dizer mentecaptos e astutos, os que podendo sujeitar-se ao jugo suave e leve de Cristo (Mt 11), e conseguir nesta vida a tranqüilidade das suas almas, e na futura reinar com o mesmo Cristo, querem antes trazer, em obediência ao Diabo, cinco cangas de bois, e servir aos estímulos da carne com trabalhos e dores (Lc 14), e por fim sofrer com seu senhor, o Diabo, os perpétuos tormentos do inferno.
Referência:
(1) Liv. 8, Confiss. cap. 11
(2) Serm. 16, de Pass.
Voltar para o Índice de As Sete Palavras de Cristo na Cruz, de São Roberto Belarmino
(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 237-240)