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Do primeiro fruto da primeira palavra proferida na Cruz

Capítulo II. Do primeiro fruto da primeira palavra proferida na Cruz
Explicamos, qual seja a inteligência da primeira palavra, que Cristo proferiu na Cruz. Agora, meditando, faremos por colher daquela palavra alguns frutos, e estes preciosos, e de muita utilidade para nós e para todos. Primeiro que tudo desta primeira parte do sermão, que Cristo pregou na cadeira da Cruz, aprendemos que a Sua caridade é muito mais ardente, do que nós podemos conhecer, ou imaginar, e é por isto, que o Apóstolo escrevendo aos Efésios, lhe diz:

“E conhecer também a caridade de Cristo, que excede todo o entendimento” (Ef 3, 19)

Com esta passagem da sua epístola dá ao Apóstolo a conhecer, que nós pelo mistério da Cruz podemos saber que a grandeza da caridade de Cristo é tamanha, que excede todo o saber humano, por ser maior do que a força da nossa inteligência pode compreender, pois nós, quando sofremos alguma grande dor, ou dos olhos, ou dos dentes, ou da cabeça, ou de outra alguma parte, tanto dela nos deixamos dominar, que a mais nada damos atenção; e por isso nem recebemos amigos, que venham visitar-nos, nem outros indivíduos, que por diversos motivos nos queiram falar. Cristo, crucificado, tinha na cabeça uma coroa de espinhos, como bem claramente dizem os antiquíssimos escritores, Tertuliano, latino, no seu livro contra os Judeus (1) e Orígenes, grego, no seu Tratado sobre Mateus (2) não podia por isso nem encostar, nem chegar a cabeça à Cruz, sem ter de sofrer. Suas mãos e pés estavam traspassados de cravos, que faziam sofrer ao Senhor acerbíssimas e contínuas dores. Seu corpo, nu e fatigado de prolongada flagelação, e muito andar, exposto à ignomínia e ao frio, e dilatando com o Seu peso as chagas das mãos e dos pés com desmedido e perpétuo tormento, causava ao piedoso Senhor muitas dores e quase muitas cruzes ao mesmo tempo; e não obstante tudo isto,ó caridade sem dúvida incompreensível! Despregando todos aqueles tormentos como se nada sofresse, e dando-Lhe só cuidado a salvação dos Seus inimigos, e com o desejo de desviar deles o perigo eminente clama a seu Pai:

“Meu Pai perdoa-lhes”

Que faria Cristo, se aqueles malvados sofressem uma perseguição injusta, e não a exercessem? Se fossem Seus amigos, Seus parentes, Seus filhos; não inimigos, não traidores, não perversíssimos parricidas? Sim, Benigníssimo Jesus, a Tua caridade é incompreensível ao saber do homem; pois vejo o Teu coração no meio de tamanha tempestade de injúrias e sofrimentos, como um rochedo no meio do mar, continuamente batido de todos os lados pelas ondas, e apesar disto imóvel e tranqüilo. Estás vendo os Teus cruéis inimigos que, depois de te fazerem tantos ferimentos mortais, insultam Tua resignação, e se alegram pelo mal que Te fizeram; estás vendo, torno a dizer, não como inimigos, os Teus ferozes inimigos, mas como um pai os seus filhinhos a chorarem, ou como um médico os seus doentes em delírio pela gravidade da moléstia, por isso não Te iras, mas compadeceste, e a Teu Onipotente Pai, os recomendas para serem medicados e salvos. Tal é, pois a força da verdadeira caridade, estar em paz com todos; não julgar ninguém inimigo; e até viver em paz com aqueles, que nos odeiam; e é por isto, que no Cântico do amor se diz do poder da perfeita caridade:

“A água, posto que em grande abundância, não pôde extinguir a caridade; e nem mesmo rios poderão submergi-la” (Ct 8, 7)

A água em grande abundância são as muitas paixões, que as maldades espirituais, como tempestades do inferno, fizeram chover sobre Cristo por meio dos judeus e gentios, que representam nuvens carregadas de ódios: porém este diluvio d’águas, isto é, de tormentos, não pôde extinguir o incêndio da caridade que estava ateado no peito de Cristo: por isso a sua caridade sobressaía naquele dilúvio de muitas águas, e, apesar delas, ardia, dizendo:

“Meu Pai, perdoa-lhes”

Nem somente aquela muita água não pôde extinguir a caridade de Cristo; mas nem mesmo depois rios de perseguições puderam apagar a caridade dos membros de Cristo. Por isso passado pouco tempo, a caridade verdadeiramente cristã, que ardia no peito de Santo Estevão, não pôde ser extinta pela chuva de pedras, mas mais ainda brilhou, e, clamando disse:

“Senhor não lhes impute este pecado” (At 7, 60)

Depois a perfeita e invencível caridade de Cristo, propagando-se em muitos milhares de santos Mártires e Confessores, de tal modo combateu contra rios de perseguidores, tanto invisíveis, como visíveis, que em verdade se pôde dizer, que nem rios tormentos terão consumação dos séculos a força de a extinguirem. Agora; subindo da humanidade de Cristo, a Sua divindade, grande foi a Sua caridade para com os que O crucificaram; porém maior, foi para com eles, e depois, será até o fim do mundo a caridade de Cristo Deus, de seu Pai, e do Espírito Santo, para com os homens, que são inimigos do mesmo Deus, e que, se pudessem, do Céu O expulsariam, crucificariam, e fariam morrer. Quem poderá compreender a caridade de Deus para com os homens, ingratos e maus? (2Pd 2). Aos anjos, que pecaram, nem perdoou, nem concedeu o arrependimento; e sofre muitas vezes com paciência os homens, pecadores, e blasfemos, e que desertam para o diabo, inimigo de Deus: faz ainda mais do que isto; alimenta-os, sustenta-os, protege-os, e como que os traz nos braços: pois nEle vivemos, nEle nos movemos, e nEle estamos como diz o Apóstolo: e não só os bons e justos, mas também os ingratos e perversos como o Senhor diz em São Lucas (Lc 6 ): e não lhes faz só isto o nosso Bom Deus; muitas vezes os enche de benefícios, dá-lhes o talento, concede-lhes a riqueza, sobe-os aos cargos honoríficos, exalta-os até o trono; entretanto, pacientemente está a espera, que voltem do caminho da iniquidade e da perdição.

Pondo de parte o mais, que exigiria um discurso interminável, se quiséssemos mencionar tudo quanto pode dizer-se da caridade de Deus para com os maus, e inimigos da Majestade Divina, consideremos somente o benefício de Cristo, de que agora tratamos. Não amou porventura Deus o Mundo até lhe dar O seu Filho unigênito? (Jo 3, 16). O Mundo é inimigo de Deus; pois está posto no maligno, como diz São João (1Jo 5). E se alguém ama o mundo não há nele o amor do Pai, como ele também diz (1Jo 2). A amizade deste Mundo, é inimiga de Deus; e todo aquele que quiser ser amigo deste século, se constitui inimigo de Deus, como escreve São Tiago (Tg 4, 4). Deus, pois amando o mundo, amou o Seu inimigo, mas para torná-lo Seu amigo; pois para isso lhe enviou o seu Filho, que é o Príncipe da paz (Is 9), para por Ele o mundo ser reconciliado com Deus; e foi por isso, que se no nascimento de Cristo os Anjos cantaram Glória a Deus nas alturas e paz na terra (Lc 2). Amou Deus o mundo, Seu inimigo, para por meio de Cristo lhe oferecer reconciliação, e para que, reconciliado, ele evitasse o castigo que merecia. O mundo não recebeu Cristo; fez maior a sua culpa; insurgiu-se contra o Medianeiro, a quem Deus inspirou que pagasse malefícios com benefícios, e rogasse pelos seus perseguidores: rogou, e foi atendido pela sua reverência (Hb 5). A paciência de Deus esteve à espera que o mundo fizesse penitência em virtude da pregação dos Apóstolos, os que a fizeram, obtiveram o perdão; porém os outros foram exterminados por justo juízo de Deus, depois de muito tempo lhes ter esperado pelo seu arrependimento.

Sem dúvida, pois, desta primeira palavra de Cristo aprendemos, que a Sua caridade excede a compreensão humana, e que também a excede a caridade do Pai, que assim amou o mundo, que lhe deu o seu Filho unigênito, para que todo o que crê nEle, não pereça; mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16).


Referências:

(1) Cap. 13

(2) Tract. 35

Voltar para o Índice de As Sete Palavras de Cristo na Cruz, de São Roberto Belarmino

(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 38-45)

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