Capítulo XXVII
Crucifixerunt eum, et eum eo alios duos, hinc, et hinc, modium autem Jesum – “Crucificaram-no, e a outros dois com ele, um a um lado, outro do outro, e Jesus no meio” (Jo 19, 18)
Quando o Salvador chegou ao Calvário onde devia consumar o seu sacrifício e dar-nos o mais solene testemunho do seu amor, nem tempo de suspirar lhe deixaram. Arrancaram-lhe rudemente a sua veste, que estava colada ás chagas, e mais uma vez renovaram todas as suas dores. Mandam-no em seguida deitar-se sobre a cruz, afim de nela o poderem pregar. Sem demora nem resistência obedece o bom Jesus, estende-se sobre este leito de dor, não tendo por travesseiro senão os espinhos de que estava coroado. Então com uma sorte de furor arremessam-se sobre ele os algozes, pedem-lhe primeiro a mão esquerda, segundo é crença comum, e trespassam-na com um grosso cravo pelo meio dos nervos. Tendo-se estes comprimido pela violência da dor e não podendo a mão direita estender-se até ao buraco que no outro braço da cruz tinham aberto, foi necessário estender esta mão com cordas; outro tanto foi necessário fazer aos pés, de sorte que todo o corpo de Nosso Senhor ficou deslocado. Que amargas dores!!! Calava-se porém o inocente Cordeiro e não deixava escapar de sua boca uma lastima; consertava fixos no céu os olhos; e oferecia a Deus por nossa salvação, os seus sofrimentos e a sua vida…
Cravado que foi na cruz, arrastaram-na até o fosso onde devia ser plantada. Ai elevaram-na com cordas, e deixam-na cair bruscamente nesse fosso. Ó Deus! Quem poderia compreender, quem poderia dizer quantas dores vos causou esta queda da cruz! Oh! De que dilacerações não foi seguida!
E é por mim que Jesus quer assim sofrer! por mim, que o amo tão pouco, tão mal o sirvo! por mim que em minha vida passada tanto o ofendi! por mim que ainda hoje o contristo todos os dias, por minha tibieza! Ó meu Deus, meu Deus, meu Jesus, aos pés da vossa cruz me lanço, exclamando:
“Misericórdia, misericórdia para um pobre pecador, para um ingrato! misericórdia!”
Minha alma, olha o teu Senhor, olha a tua vida suspensa deste madeiro; vê como neste infame patíbulo não acha posição nem repouso. Ora se finca nas mãos, ora nos pés; mas onde quer que se apoia torna-se insuportável a dor. Volta a cabeça já para um, já para outro lado; se a deixa cair sobre o peito, as mãos fatigadas do peso rasgam-se mais; se a inclina sobre os ombros, são penetrados pelos espinhos; se a encosta á cruz, os espinhos entram mais na cabeça.
Ah! Jesus meu, quanto é cruel a morte que sofreis! Dignai-vos dizer-me o que vos pôde levar a submeterdes-vos a tão horrorosos tormentos.
— Meu amor por ti, filho meu; esse é quem me cravou na cruz. Sofro, ah! Sofro incompreensíveis dores; mas se preciso fora para a tua salvação suporta-las até ao fim do mundo, de toda a minha vontade o faria, tanto amo a tua alma! tão preciosa a meus olhos é!
— Ó meu Deus! as vossas palavras cobrem-me de vergonha e contusão. O vosso coração é todo amor por mim; e o meu!!!… Ensinai-me, Jesus meu; que devo fazer para reconhecer uma tal ternura da vossa parte?
— Ama-me, e ficarei contente; ama-me e ter-me-ei por pago de todos os meus sofrimentos. Desprende o teu coração de todo o afeto criado, e excita em tua alma o desejo de gozar da minha presença no céu.
— Senhor, vós bem vedes o interior do meu coração: vede quanto desejo amar-vos. Sim, este desejo me abrasa e me consome; continuamente me persegue, não me deixa repouso noite e dia. Tenho necessidade do vosso amor, o meu coração tem dele uma ardente sede, e parece-me que ninguém vem em meu socorro. Desfaleço, e parece que ninguém vem suster-me. Quero amar-vos, parece-me como que impossível; tão pouca é a minha coragem! Meu Deus! Meu Deus! Não sei se bem vos exprimo os sentimentos de minha alma; mas, visto como os conheceis, ah! Por favor, tende piedade de mim! Dai-me o vosso amor; sem ele não posso viver; sem ele terno morrer; segunda vez insto, dai-me, dai-me o vosso amor. Bom Jesus, terno Pastor, meu doce Mestre, quando parecerei sem macula e verdadeiramente humilde aos vossos olhos? Quando vos amarei perfeitamente? Quando me enlevarei todo em vós por ternos e ardentes desejos? Quando serão absorvidas na imensidade do vosso amor a minha tibieza e imperfeição? Ó meu Deus! Ó doçura da minha alma! ó minha consolação, minha vida, meu amor, meu desejo! ó meu tesouro! Ó todo o meu bem! a minha alma suspira por vossos doces abraços; consome-se, desfalece, no ardor de a vós se unir, de a vós estar inteiramente unida pelos doces laços de um indissolúvel amor. Oh! Quando de todo cessará para mim o estrépito do mundo? Quando me verei inteiramente livre dos cuidados e vicissitudes do século? Quando acabará a minha peregrinação e o triste cativeiro deste exílio? Quando verei declinar a sombra da mortalidade e luzir a aurora da eterna luz? Quando gozarei da vossa vista, e vos louvarei eternamente e sem obstáculo com os vossos santos? Ó meu Deus! Ó meu amor! Ó todo o meu desejo! (diz Blosius, cap. iv, n.° 2) satisfazei, eu vo-lo suplico, todos os meus desejos e dai-me o vosso amor; dai-me o vosso céu, afim que vos possa amar mais. Maria, obtende-me a graça de amar enfim o meu Deus, como mereço e como desejo. Assim seja.
RESOLUÇÕES PRÁTICAS
Amor de Deus Só
Meu caro Teótimo, Jesus hoje pede-te que em reconhecimento do amor que te testemunhou deixando-se pregar na cruz, o ames com toda a extensão do teu amor, e não sofras algum outro amor. Sonda o teu coração, e vê se verdadeiramente é todo de Deus; ai! Ainda ama as criaturas, está-lhes como que pregado, e talvez não consente em delas se desprender. E no entanto é certo que nada põe mais obstáculo à nossa união com Deus como estes apegos ás coisas da terra. Ah! Meu caro Teótimo, ama a Deus e só a Deus, ou se amas alguma criatura, não a ames senão em Deus; não te prendas muito a ela, e está pronto a deixa-la, sempre que for do agrado de nosso Senhor. O amor da criatura que no de Deus não é de alguma sorte fundado, é perigoso. Pede, pede ao Senhor te dê um coração puro, um coração vazio de tudo 0 que não é ele ou por ele. Trabalha seriamente por arrancar do teu coração toda a afeição desordenada, por mais pequena que seja.
— Então não posso amar os meus amigos? Dizes-me tu agora.
— Eu te respondo: tens amigos, ama-os tanto como te aprouver, mas sempre seja em Deus e por Deus: ama-os, mas seja para os levar a servir a Jesus Cristo, e ganhar o céu, e não pelo prazer que possas achar em os amar; ama-os, mas pede incessantemente ao nosso bom Mestre a graça de os amar cristãmente. Não te acostumes a os olhar como seres necessários à vida neste mundo, porque, meu caro Teótimo, só Deus, Deus só, te deve bastar; fora dele só há miséria, fraqueza, e vaidade. Dize, pois, muitas vezes do fundo do coração: Meu doce Jesus, dai-me a graça de sempre vos amar acima de todas as criaturas, e amar os meus amigos como vós quereis que os ame. Desprendei o meu coração de tudo o que não sois vos.
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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 202-206)