I
Quando uma coisa tem estes dois predicados, beleza e utilidade atrai o coração das criaturas com doce violência, que as obriga a amá-la, e buscar possui-la; como desejo que vos apaixoneis pela perfeição cristã, e procureis com muito empenho conseguir sua feliz posse, quero apresentar-vos parte da sua celeste beleza, e algumas razões da sua incompreensível utilidade.
Começando pelo primeiro destes predicados, quanto é belo a Santidade que consiste na simples posse da graça santificante, tal beleza tem que enamora não só os Santos e Anjos, mas até o próprio Deus; a alma que a possui é na realidade amiga do Senhor, sua filha, embora tivesse e tenha bastantes manchas veniais. Ainda que uma alma fosse manchada com um milhão de faltas veniais, tendo a graça santificante, seria, porém resplandecente com tal formosura, que agradaria a Deus, que sempre a olharia como sua amiga e filha. O que diremos da que tem a alma que, além disso, conserva-se isenta até de culpas veniais, nem com deliberação acolhe as imperfeições, que poderiam embaciar seu resplendor, e seu estudo e desvelo é agradar a Deus o melhor que pode, não aceitando gostos separados dos divinos. Ah! A beleza de semelhante alma excede muito a capacidade humana! Deus a contempla com, tão grande complacência que no Cântico dos cânticos, desabafa assim seu afeto:
“Amiga minha, és toda bela, em ti não há mancha. És a minha pomba, irmã e esposa. Quanto te adorna a graça, delícias minhas!”
Uma formosura que namora o coração de Deus, não atrairá também o nosso? Não empregaremos os meios que nos são possíveis para adquiri-la? Quantas vezes anelamos por mísera beleza e ao mesmo tempo perigosa! Como merece a preferência a inefável que nos traz todos os bens perante Deus!
II
Exprime-se a múltipla utilidade da Perfeição. Primeiro, no testemunho da boa consciência
Sem dúvida a perfeição de que falo, encerra em si o complexo de todos os bens, que formam a verdadeira felicidade nesta vida, e dão a mais segura esperança da Bem-aventurança futura.
Não se pode duvidar que a maior felicidade da vida mortal consiste no bom testemunho da consciência, que não nos acusa de pecado. Quando sentimos na alma este suave testemunho somos verdadeiramente felizes, e quem não fez faltas grave goza desta felicidade; porém completa até quem de tal modo foge de qualquer falta, até das mais leves. A alma que não se repreende de ofensas de Deus completamente deliberadas, sente interiormente que é toda do Senhor, sua consolação será tanto maior se nas coisas indiferentes busca sempre sua maior glória.
III
A segunda vantagem consiste na segurança que se pode ter de possuir a graça de Deus
Ensinaram os Luteranos e Calvinistas, etc., que os cristãos devem firmemente acreditar que estão na graça de Deus, como devem crer no mistério da Santíssima Trindade. Isto é disparate de herege, Deus revelou que é Trino e Uno, e crendo-se na sua revelação é impossível que não seja verdade o mistério da Santíssima Trindade; mas o Senhor não revelou que Antônio ou Manuel possuam sua graça. Pelo contrário, alguns homens do tempo moderno, que julgavam ter achado o caminho da perfeição nas selvas do terror, ensinaram que as almas mesmo sendo boas devem estar em contínua ansiedade, e não se persuadirem que estão na graça de Deus, e permanecerem sempre duvidosas, pendentes de uma balança que oscila até à morte, esperando ver para que lado caem, se é nos braços de Deus ou nos de satanás. Também isto é erro. É certo que não podemos ter certeza infalível de fé divina de estarmos na graça de Deus, mas podemos ter animadora conjectura que nos conforte e mantenha em paz e tranquilidade. Um filho que não se lembra de ter dado grandes desgostos a seu pai, ou se os deu procurou desagravá-lo com o arrependimento, não tem razões convincentes de possuir o amor de seu pai? Não pode estar seguro e tranquilo? Este gênero de certeza não iguala a da fé, porém deixando uma discussão que me afastaria do assunto, que é explicar quem são aqueles que podem assegurar-se melhor que possuem o infinito tesouro da graça santificante, e por isso são amigos e filhos do Deus? Sem dúvida, afirma São Francisco do Sales, são aqueles que não só fogem do pecado mortal, mas também do venial, e como dissemos em todas as coisas buscam o beneplácito divino. Não era preciso que o assegurasse tão grande Santo, e outros conspícuos mestres espirituais, a nossa razão o demonstra com evidência. A culpa mortal é a aversão da nossa vontade à de Deus; quando está unida e conforme com a divina, não existe em nossa alma culpa mortal, visto que na uniformidade da nossa vontade com a divina consiste a caridade perfeita, e com esta, como definiu a Igreja contra as blasfêmias de Bajo, não pode haver pecado mortal. Segue-se disto, que quais são as almas que poderão estar mais seguras de possuir a graça divina do que as que aborrecem não só o mortal, mas até o pecado venial, e buscam em tudo contentar a Deus? Ninguém certamente, ainda que outros façam milagres de mudar os montes, ressuscitar mortos, pois estes prodígios pode executar quem está em pecado mortal, o qual não tem a alma que possui a caridade perfeita. Não é verdade que vossa maior consolação seria estar certa, do modo possível, que estais na graça de Deus, que se a morte vos surpreendesse em qualquer hora, não perdereis o Céu? Se quiserdes ter a possível segurança a este respeito, eis o que agora deveis fazer. Detestar a culpa até venial, buscar o agrado de Deus em todas as coisas, quando o souberdes; ficai assim mais esperançosa e sossegada do que estareis operando estupendos milagres.
IV
A terceira vantagem consiste na maior segurança de não perder a graça de Deus
Um temor que atribula as almas pias, é que embora atualmente estejam em estado de graça a podem perder; este susto em algumas almas chega a ponto de desejarem a morte para se livrarem de semelhante perigo. O Venerável Paulo Segneri ordenou que com o médico o desenganando, o avisasse da sua morte próxima com estes dois versos: Ti rallegra, Padre mio, Non potrai piú offender Dio.
Porém quais são as almas que podem ter mais segurança de não cair em pecado mortal, e não perder para o futuro a graça de Deus? Sem dúvida são aquelas que aborrecem até o venial, pois aborrecendo sempre até os leves, estão mais seguras de fugir dos graves. Como seria possível que uma pessoa temesse a picada de véspera e não a mordedura da cobra? Sabe-se que quanto mais se detesta a culpa, é mais difícil cair nela, o que constitui tão grande mal é ser voluntário em quem a faz, o que é impossível sendo aborrecida. Não será isto grande consolação para uma alma que ama a Deus, e quer assegurar sua salvação?
Cumpre observar que não se pode ter maior segurança de permanecer no estado de graça, do que tem o cristão que aborrece a culpa até venial, vantagem que não tem se ele a comete com facilidade e frequência. Este de tal modo se enfraquece, e se entibia no amor divino, que o embate de violenta tentação o faz sucumbir miseravelmente. Isto é conforme à sentença do Espírito Santo:
“Quem despreza as pequenas faltas gradualmente cai nas grandes”
A este respeito diz SantaTereza, que por meio de miudezas o demônio vai fazendo aberturas por onde entram coisas grandes, assustada com tal perigo clamava com energia:
“Dos pecados deliberados, por pequenos que sejam Deus vos livre!”
Verdades que também são ensinadas com evidência pela experiência, pois vemos que as almas fervorosas que se acautelam com solicitude dos pecados veniais, apesar de fazerem alguns por fragilidade, porém não se despenham nos mortais.
V
A quarta consiste na especial predileção de Deus pelas almas que aspiram à perfeição
Enfim quais são as almas que poderão esperar de Deus maior abundância de graças e especial predileção, senão as que buscarem evitar todas as coisas que Lhe possam desagradar, e fazerem sempre o que Lhe dá maior gosto! É certo que Deus concede sua graça gratuitamente, e é verdade de fé que esta não se pode merecer. Refiro-me a atual, que concorre para praticarmos a virtude, evitarmos o mal, e semelhantemente a graça santificante, que não pode merecer o pecador privado dela, porem é de fé que os justos com suas boas obras merecem verdadeiramente o aumento da graça santificante, como ensina o concílio de Trento.
Não devemos acreditar que o Senhor na distribuição de suas graças prefira, e enriqueça com maior abundância aquelas almas que Lhe dedicam mais amor e fidelidade? Um príncipe prudente faz muitas dádivas a seus súditos, e pela sua bondade as faz até aos indignos; quais são que as gozam com maior abundância, senão os mais respeitosos fiéis e zelosos pela sua honra? Não convém acreditarmos que na distribuição das suas mercês prefira os que mais o estimam, e melhor buscam corresponder a seus benefícios? É certo também que as graças de Deus não se podem merecer, mas é igualmente certo que se podem desmerecer, ou impedi-las. Quem corresponde bem às graças do Senhor, está disposta a receber sempre outras maiores para o futuro; quem falta a esta correspondência, pela sua parte opõem obstáculo às seguintes. Podemos concluir com as palavras de Samuel: Cujus erunt optima quaque Israel?
A quem se darão as mercês mais escolhidas, e prediletas que Deus concede à sua Igreja, senão aos que O amam com a maior perfeição que podem, e se conformam mesmo com custo à vontade divina? Quem poderá conceber a suma utilidade que recebe a alma cristã pelo exercício da perfeição, fugindo das culpas mesmo veniais, e buscando o beneplácito divino? Que tesouro repleto de bens, de consolações, segurança, graça!
Tendo visto que a prática de tal perfeição Deus a requer de todos os cristãos, e que não é mui difícil a nossa fraqueza, confortada com o auxílio da graça divina, que alma entre as piedosas, não se fortalecerá com a suave esperança de consegui-la, e vendo sua suprema beleza e utilidade, não se abrasará no vivo desejo de conquistá-la?
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(Blósio, Venerável Luis; FRASSINETTI, Padre José. Bálsamo Espiritual. B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1888, p. 204-215)