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As Virtudes do Recolhimento e do Silêncio

Compre a coleção As 12 Virtudes para cada mês do ano, na Editora Rumo à Santidade
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Mês de Outubro: As Virtudes do Recolhimento e Silêncio

Mês de Outubro

Breve introdução sobre o Recolhimento, Silêncio e o Apóstolo Patrono

Muitas pessoas há, que não podem, por mais que o queiram, recolher-se à solidão e separar-se das criaturas para se ocuparem só com Deus; cumpre, porém, observar que pode a gente gozar dos benefícios da solidão do coração em outros lugares que não sejam desertos e grutas. Aqueles mesmos que se vêem na necessidade de viver no mundo podem sempre conservar, ainda no meio dos caminhos, praças públicas e ocupações, a solidão do coração e a união com Deus, uma vez que tragam o coração livre de mundanos apegos. Nenhuma ocupação impede a solidão do coração, uma vez que tenha por objeto o cumprimento da vontade de Deus.

Se quiseres entreter-te continuamente com Deus, ama a solidão. Toma a peito as palavras que o Senhor disse um dia a Santa Teresa:

“Com que gosto não falaria eu com muitas almas; mas o mundo faz tanto barulho em seus corações, que elas não ouvem mais a minha voz”

Por isso ocupa-te com o mundo só tanto quanto o exigirem teus deveres de estado, a obediência ou a caridade. Prepara no íntimo de teu coração uma camarazinha escondida para ai te recolheres em Deus. Para isso tem em grande apreço o silêncio, pois quem não o ama nunca achará a solidão. Segue o conselho de Santo Efrem:

“Fala muito com Deus e pouco com os homens”

Marca uma hora certa do dia para o silêncio e retira-te durante ela para um lugar solitário. Se isso não te for possível, procura ganhar de vez em quando alguns momentos livres para o recolhimento interior.

Compenetra-te bem da verdade de que Deus está a teu lado em toda a parte e observa todas as tuas ações.

“Nele vivemos, nos movemos e somos” (At 17, 28)

Esse pensamento te ajudará a evitar todo o pecado e ter em vista unicamente o beneplácito de Deus em tudo que fizeres. Acostuma-te a dirigir tuas vistas das criaturas a Deus, que lhes deu a existência e destinou-as ao nosso serviço. Fa­ze então atos de agradecimento e amor, recordando-te que Deus, desde toda a eternidade, pensou em obrar tantas maravilhas para ganhar teu coração. Procura, além disso, avivar a tua fé na verdade de que Deus mora de um modo especial em lua alma:

“Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espirilo de Deus mora em vós?” (1 Cor 3, 16)

Ele habita em ti cheio de amor e bondade para te iluminar, te dirigir e te assistir em tudo que pode servir para tua eterna salvação. Acostuma-te por isso a falar com Ele da maneira mais íntima, cheio de confiança e amor como com teu melhor amigo. Ele gosta que te entretenhas mui familiarmente com Ele. Os amigos, no mundo, tem suas horas marcadas, em que se entretêm mutuamente e as em que estão separados uns dos outros; mas não há hora de separação entre Deus e ti, contanto que queiras. Ele não se separa de ti, mesmo quando descansas.

Fala, portanto, com Ele tanto quanto te for possível; se amas, sempre terás alguma coisa a dizer-Lhe. Trata com Ele a respeito de teus negócios, teus planos, teus sofrimentos e tudo o que te diz respeito. Ele acha satisfação se Lhe comunicas tudo, mesmo as mínimas coisas, até as mais vulgares. Entretém-te repetidas vezes com Ele por meio de curtas mas fervorosas jaculatórias e suspiros de amor. Se te ocupaste por mais tempo com negócios que distraem, cuida em te recolher novamente em Deus por meio de piedosas aspirações.

Sumário
I. A sua natureza
II. Do Amor à Solidão
III. Do Silêncio
IV. Do andar na Presença de Deus
V. O Recolhimento do Redentor
VI. A Prática do Recolhimento e do Silêncio
VII. Orações para alcançar a Virtude do Mês

I. A Natureza do Recolhimento e Solidão

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

No estado de justiça original o homem vivia de Deus, em Deus, para Deus. Os pensamentos do seu espírito, os afetos do seu coração, a atividade de suas mãos e de seus braços, tudo se voltava para Deus e glorificava a Deus. Em todas as criaturas que O cercavam ele encontrava Deus; as suas vozes uniam-se em concerto para cantar os louvores do Criador, para exaltar a sua riqueza e a sua beleza, a sua sabedoria e o seu poder, a sua bondade inefável e a sua infinita ternura. Transportado de amor por um Deus tão bom, fazia subir ao céu o hino do seu reconhecimento, da sua admiração e do seu amor. Era a verdadeira vida para a sua inteligência e para o seu coração; era a paz na beleza da ordem.

Mas o pecado veio semear a desordem em tudo e a morte. Afastado de Deus, o coração volta-se sempre para si mesmo e procura em vão a felicidade perdida em gozos e afeições naturais de que se alimenta. Separada do Sol divino que a aclarava, a inteligência se cobre de trevas, e, semelhante ao cego incapaz de reachar o rumo, procura em toda parte, com hesitações, a luz que parece fugir. A imaginação, os sentidos e as paixões lançam-se a todos os lados como louca corrida, procurando febrilmente tudo que lhe pareça oferecer uma sombra de gozo. Apegando-se à criatura, o homem afasta-se mais de Deus; e sem se saciar jamais, excita sempre a fome de felicidade que o atormenta e que só Deus poderia aplacar. Fecisti nos ad te, Domine, et irrequietum est cor nostrum donec requiescat in te.

O homem que quer achar Deus, e com Deus a paz deve, pois, reagir contra si mesmo; e para fazer voltar a Deus as suas potências dispersas, deve arrancá-las; às criaturas que as atraem e fascinam. Quando a alma se desprendeu das criaturas, quando reuniu as suas potências para concentrá-las em Deus, ela está recolhida: o ato pelo qual se desprende toda do pensamento, da atração das criaturas para se unir a Deus, é um ato de recolhimento.

Ora, a repetição dum mesmo ato engendra na alma o hábito; e o hábito se torna para a alma uma necessidade, ao mesmo tempo em que uma felicidade. Para a alma é uma necessidade agir segundo os seus hábitos, e o que faz por hábito torna-se fácil a despeito dos obstáculos que se possam encontrar.

A alma, pois, que se esforça para romper o encanto das criaturas a fim de se unir a Deus e penetrar-se do pensamento de Deus, adquire mais domínio sobre si mesmo; assim as criaturas perdem muito da sua força de sedução; a atração da criatura é, enfim, substituída pela atração de Deus. Essa alma tem necessidade de Deus, procura-O em toda parte e em tudo; o seu pensamento prende-se a Deus, e se não lhe é possível jamais não perdê-lO de vista, ao menos tem um como instinto que a faz voltar sempre para Ele, como a agulha magnética que se volta para o pólo que a atrai e onde encontra repouso. Esse hábito, que comunica à alma força e a facilidade de se conservar unida a Deus ou de voltar-se frequentemente a Deus, apesar dos esforços das criaturas para desviá-la e reter longe dEle: eis a virtude do recolhimento.

Ao recolhimento opõe-se a dissipação, que se não deve confundir com a distração. A distração não destrói o recolhimento; a dissipação é a sua ruína, tornando-a impossível. O espírito distraído presta inconscientemente atenção a qualquer objeto estranho à ocupação do momento e isso sem que o coração a ele se apegue. A alma dissipada, ao contrário, vítima de qualquer apego do seu coração, difunde-se sobre as criaturas que a seduzem, como a borboleta que adeja de flor em flor, sempre à procura de algum gozo novo.

É evidente que a distração não favorece o recolhimento; todavia o coração que quer só Deus retrairá facilmente o seu espírito dessas distrações para voltar ao pensamento de Deus, enquanto a alma dissipada é arrastada para longe de Deus pelo peso dos seus apegos e de suas afeições naturais.

Notemos que o recolhimento não é coisa puramente negativa. Se o homem concentra sua atenção e suas potências, não é para deixá-las inativas, mas para aplicá-las a um objeto diferente dos que as ocupavam ou as solicitam.

Para melhor compreensão, distinguiremos diferentes espécies de recolhimento.

Em primeiro lugar há um que podemos chamar de recolhimento natural. Um orador acha-se diante duma multidão; pedem que lhe dirija a palavra.

“Preciso recolher-me um instante, responde ele, dai-me alguns momentos de reflexão”

Absorve-se todo no assunto; que pensamento apresentará à multidão e como a convencerei? É o recolhimento natural que consiste em concentrar toda a atenção para se ocupar de uma só coisa.

Vem em seguida o recolhimento religioso. Este consiste em desprender o espírito dos objetos da terra e em volvê-lo a si para a meditação religiosa e piedosas contemplações. Por exemplo, um homem se afasta das preocupações exteriores e, para se desapegar da terra, absorve-se na meditação dos rigores da justiça divina, ou considera a morte em que se acabam as vaidades humanas, e para a qual todo cristão sério deveria estar sempre preparado; esse homem está recolhido: é o recolhimento religioso.

A perfeição do recolhimento religioso é o recolhimento em Deus, isto é, o recolhimento da alma que se afasta da fascinação das criaturas, concentra as suas potências para volvê-las a Deus, e que, penetrada da presença de Deus, se conserva bem unida a Ele.

O maior pecador pode, em certas horas, ter-se assim unido a Deus pelo recolhimento. Se, por exemplo, tocado da graça, cai de joelhos diante de Deus, contempla tantos benefícios, tantas graças que recebeu, reconhece aos pés do divino Mestre a indignidade da sua conduta, deplora-a com dor e pede perdão em prantos: está perfeitamente recolhido. Mas compreendemos logo e voltaremos a falar disso, o recolhimento habitual em Deus não pode ser senão o resultado do fervor.

Ora, a alma recolhida une-se e conserva-se unida a Deus pelo espírito e pelo coração, pelo pensamento e pelo amor. O pensamento ou a vista de Deus não basta para constituir o recolhimento. Pode-se pensar em Deus e odiá-lO; pode-se vê-lO para blasfemá-lO e ultrajar.

É, sobretudo pelo coração, pelo amor, que a alma adere a Deus e Lhe fica unida. O pensamento leva o
coração a Deus; mas muitas vezes também o coração conduz o pensamento a Deus. Santo Afonso, falando do exercício da presença de Deus, a qual nos é recomendada com tanta insistência, e que é praticamente a perfeição do recolhimento, Santo Afonso, dizemos nós, enumera não só os meios a tomarmos para dirigir o nosso pensamento a Deus, mas também os atos pelos quais o nosso coração se deve apegar a Deus. São atos breves, mas firmes, enérgicos, ardentes. O recolhimento não é tampouco a oração, o entretenimento mais ou menos prolongado com Deus; é a sua condição indispensável, a preparação, é, se se quiser o começo.

A virtude do recolhimento não exige que a alma esteja sempre atualmente pensando em Deus; isso é um grau de recolhimento ao qual a maior parte dos cristãos não pode nem deve pretender. A Santíssima Virgem o realizou; os santos dele se aproximam mais ou menos por um auxílio extraordinário da graça divina. Mas à grande massa dos homens, Deus não concede esse auxílio extraordinário; por isso essa união com Deus, esse recolhimento sempre atual lhes é uma impossibilidade que Deus não exige. Ainda mais, seria para eles erro pretendê-lo; não o poderiam prosseguir sem detrimento dos deveres cujo cumprimento Deus lhes impõe. Dando-nos os deveres de estado, Deus quer que lhes prestemos toda a atenção. Que um religioso, por exemplo, negligencie os seus alunos ou os doentes confiados ao seu desvelo, que omita a preparação para as aulas ou para os seus sermões; que não preste senão meia atenção aos seus penitentes, ou só exerça distraidamente a vigilância a que está obrigado; numa palavra, que desempenhe imperfeitamente os cargos a ele confiados pela obediência, e isso sob o pretexto de querer estar mais unido a Deus, ninguém evidentemente aprova, e a sua conduta repreensível, longe de agradar a Deus, só o pode irritar.

Mas se a alma recolhida deve às vezes desprender de Deus as suas vistas para lançá-las às criaturas, das quais o Senhor mesmo quer que ela se ocupe, deixa sempre junto dEle o seu coração. Quão diferente é a sua atividade exterior da alma dissipada!

Muitas vezes, durante a oração, a alma dissipada abandona o Senhor para se entregar a toda sorte de preocupações naturais. Fora da oração não só não procura em tudo a vontade de Deus, mas se absorve em mil coisas não queridas por Deus. Joguete de seus caprichos e paixões derrama-se no mundo ou ao menos o procura sem cessar pelos sonhos e loucuras da sua imaginação, sem, todavia conseguir matar a fome do seu coração, que, não podendo gozar de Deus, procura a todo transe usufruir os bens deste mundo, cuja fascinação o deslumbra e inebria.

Mesmo quando a alma dissipada parece desempenhar os seus deveres de estado e entregar-se a trabalhos queridos pela Providência, como é que os executa? Talvez comece por dirigir, às vezes, os seus olhares para o céu, porém essa primeira intenção é logo apagada por outras preocupações de amor-próprio ou de vaidade, de interesse ou de ambição; e nesse caso tem lugar a febre devoradora da precipitação, ou o pouco caso e a negligência da preguiça ou do enfado; e durante horas e dias inteiros, escrava das paixões do seu coração, a alma se consome numa atividade toda natural ou se abandona ao torpor e à laxidão.

Inteiramente outra é a conduta da alma recolhida. Sempre voltada para Deus, conserva-se diretamente unida a Deus, o mais possível, e só deixa o exercício da oração quando a vontade divina a chama manifestamente para outra ocupação. Daí o grito de Santo Afonso: sejamos sempre avaros do tempo, para consagrá-lo à oração; a alma recolhida só deixa Deus para Deus, cuja divina vontade deseja cumprir em tudo.

Não se poderá dizer de uma alma que ela está recolhida em Deus quando se entrega a ocupações que sabe não serem da vontade de Deus ou mesmo contrárias a ela; não está então unida a Deus nem por sua inteligência, que procura ocupação estranha ao Senhor, nem por seu coração que, em vez de procurar o bem de Deus, só quer satisfazer suas paixões ou caprichos ou ao menos sua vontade própria.

A alma recolhida, porém, não se contenta de lançar-se ao trabalho unicamente para cumprir a divina vontade; não lhe basta oferecer o seu trabalho ao Senhor antes de empreendê-lo. Qualquer que seja a sua atividade, não se abandona a ela de tal modo que se torne escrava das suas ocupações em vez de dominá-las; guarda o domínio de si própria, e de tempo em tempo volta-se para o Deus do seu coração, para Lhe dizer que só a Ele é que busca e quer contentar em tudo. Anima mea in manibus meis semper. Frequentemente imersa em Deus, o pensamento da alma recolhida é sempre dele impregnado, mesmo quando parece mais absorvida pelas ocupações que a Providência lhe impõe. Se ao contrário o trabalho, embora oferecido a Deus, absorve de tal modo à alma que já não fosse senhora de si mesma e perdesse a lembrança de Deus durante horas inteiras, isso seria, sim, um desfalecimento do recolhimento, que a alma piedosa deploraria amargamente. Compararam com razão a alma recolhida a um compasso do qual uma ponta fica fixa no centro, enquanto a outra traça a circunferência. As duas pontas desse compasso são o coração e a inteligência: o coração fixo em Deus, não aceito nenhuma afeição, nenhum apego contrário ao beneplácito divino; a inteligência gravita, por assim dizer ao redor de Deus e é retida pelo coração no raio da união com Deus e conduzida por Ele ao centro da divindade.

Uma outra imagem mais graciosa ainda do recolhimento é a mãe terna e devotada que trabalha junto ao leito de seu filho recém-nascido. O olhar segue e dirige a agulha, mas frequentemente também se volta com complacência para o pequenino ser querido, pelo qual lhe bate sem cessar o coração.
Por tudo quanto ficou dito, é fácil compreender quão íntimas são as relações do recolhimento com a caridade; o recolhimento nasce da caridade e, a seu turno, a nutre e fortalece.

É do amor de Deus que nasce o recolhimento. Se a alma não amasse a Deus, não teria necessidade nem a força de se conservar unida a Ele, apesar dos esforços das criaturas que a solicitam de todos os lados. Por sua vez, o recolhimento nutre e fortalece a caridade, que, sem Ele, se extinguiria como o ferro que se esfria quando longo tempo longe do braseiro donde tirava o seu calor.

Unida a Deus pelo recolhimento, a alma sente-se sempre mais abrasada de amor para com a infinita Beleza, sempre mais admirável à alma que a contempla. Essa bela doutrina é ensinada pelo Doutor Angélico, quando explica que a imersão mútua é o efeito próprio do amor. O objeto amado enche necessariamente o espírito e o coração de quem ama como diz São Paulo aos filipenses: Eo quod habeam vos in corde. Por sua vez, quem ama penetra de certo modo o objeto amado para conhecer e amar sempre mais, e para entrar em todas as suas alegrias e em todas as suas dores; diz-se do Espírito Santo, que é o amor substancial de Deus, que ele perscruta as profundezas da Divindade: Scrutatur etiam profunda Dei (1 Cor 1, 10). É assim que se realizam as belas palavras de São João: Qui manet in caritate, in Deo manet, et Deus in eo (Jo 4, 16). Nesse sentido a pensamento segue o coração que o arrasta. Assim também se deve compreender a palavra de Santo Agostinho: Amor meus pondus meum, meu amor é o peso que me arrasta; e esta outra do Salvador: Ubi thesaurus vester, ibi et cor vestrum erit. Os pensamentos do espírito vão para onde está o tesouro do coração.

Mesmo quando não goza da presença e dos entretenimentos daquele a quem ama, o amigo verdadeiro nutre-se da recordação dele, do desejo de vê-lo e de se devotar por ele; é, poderíamos dizer o recolhimento de amizade. Mais feliz, a alma que ama a Deus não se sente afastada do seu amigo divino, porque nEle tem a vida, o movimento e o ser; mesmo, porém, quando com Ele se não entretém diretamente na doçura da oração, compraz-se em contemplar as suas amabilidades, e goza em sacrificar-se para Lhe provar o seu amor: é o recolhimento da caridade. Partindo desse ponto, pode-se definir o recolhimento: uma força nascida do amor, pela qual a alma, resistindo às atrações das criaturas, permanece senhora de si mesma, e se conserva unida a Deus pela fidelidade constante do coração e por frequentes retornos do espirito.

Assim se compreende também que uma única afeição desregrada basta para comprometer e mesmo para matar completamente o recolhimento numa alma; pois que uma única afeição desregrada basta para arrastar habitualmente o coração e o espírito, lançando os na dissipação.

Qual deve ser a frequência desse retorno a Deus? Seria temeridade pretender resolver essa questão contento de todos: Nas coisas morais as apreciações humanas dificilmente concordam entre si. Pode-se, todavia, dizer que o recolhimento exige que o cristão, e com mais razão o religioso, se una a Deus por um ato sobrenatural cada vez que a sua atividade, para ser humana, reclama o impulso da inteligência e da vontade, isto é, quando começa o trabalho ou muda de ocupação. De fato, se começa o trabalho por um impulso irrefletido, sem motivo determinante fornecido pela razão, a sua ação nem seria um ato humano; nesse caso não se poderia falar de recolhimento. De outro lado, se o motivo que o dirige, embora honesto como se supõe, for puramente natural e Deus nele não tiver parte de forma alguma, ninguém dirá que esse homem é recolhido e unido a Deus. Cremos, pois, poder dizer que o recolhimento exige ao menos um retorno da alma para Deus no começo de cada ação principal. A santa Regra a isso nos exorta quando nos convida a começar cada uma das nossas ações com uma Ave-Maria. Quanto ao resto, a questão é só de graus. Há, evidentemente, grande distância entre o recolhimento do cristão que se contenta de erguer seus olhos ao céu antes de cada trabalho novo, e o recolhimento dos santos cujos olhos estão quase constantemente fixos em Deus, mesmo na atividade do zelo mais devorador. Enquanto uma alma, que se uniu a Deus antes do trabalho, não contrariar, cedendo a um impulso natural, à primeira intenção, não será dissipada, por prolongada que seja a ação que a preocupa. Se o trabalho, entretanto, pode absorver, horas inteiras, sem que ela se lembre do Senhor, poder-se-á acaso dizer que ela está recolhida em Deus? Corresponderá ao desejo da Regra, que exige seja a nossa vida um recolhimento contínuo e nos exorta a multiplicarmos orações breves e fervorosas?

Percebe-se, enfim, como consequência, o estreito nexo que existe entre o recolhimento, de um lado, e o silêncio e a solidão, do outro. A convivência e os entretenimentos com o mundo, quando não queridos por Deus, além de ser uma fonte abundante de pecados, só podem arrastar a alma a mil distrações e depois à dissipação positiva. A alma, pois, que quer ficar recolhida e gozar a união com Deus, afasta-se, o mais possível, de tudo quanto possa solicitar e cativar o seu espírito e o seu coração. Para evitar assaltos perigosos e lutas inúteis e temerárias, entrincheire-se no silêncio e oculte-se na solidão, a não ser que a vontade divina obrigue a sair dela: estar só com Deus, eis o desejo sincero do seu coração e a verdadeira alegria da sua vida.

II. A Solidão, o Silêncio e a Presença de Deus

Os escritos seguintes são de Santo Afonso Maria de Ligório.

Três coisas se requerem para se guardar o recolhimento do espírito ou a contínua união da alma com Deus: a solidão, o silêncio e o andar na presença de Deus. Essas são aquelas três coisas que um anjo inculcou a Santo Arsênio, dizendo-lhe: “Foge, cala-te e repousa”; com outras palavras: busca a solidão, guarda o silêncio e descansa em Deus, tendo sempre diante de ti o pensamento da sua presença.

Nos capítulos seguintes exporemos mais a fundo cada um desses três pontos.

Do Amor à Solidão

I

1. Todas as almas que amam a Deus sentem em si um forte atrativo para a solidão, porque sabem que Deus trata com muita familiaridade aqueles que evitam quanto possível o tumulto do mundo.

“Ó feliz solidão, exclama São Jerônimo, na qual Deus se entretém com grande amor, familiaridade e afabilidade com as almas que ama”

Deus não faz ouvir sua voz onde se passa o tempo em gargalhadas e inúteis palestras.

“O Senhor não está na agitação” (1 Rs 19, 11)

Ele mesmo diz por boca de Oseias:

“Levá-la-ei à solidão e aí falarei a seu coração” (Os 2, 14)

Deus fala com a alma na solidão e de um modo especial a seu coração, fazendo-lhe ouvir palavras que a inflamam em seu santo amor. “Minha alma derreteu-se quando me falou o meu Amado” (Ct 5, 6), diz a esposa dos sagrados Cânticos.

Como conta São Euquério, perguntou uma vez uma pessoa que tendia à perfeição a um diretor espiritual o que deveria fazer para alcançar seu fim. Este deu-lhe a seguinte resposta:

“A solidão é o lugar onde se acha Deus. Na solidão facilmente se guarda a virtude; no trato com o mundo, porém, facilmente a perdemos”

São Bernardo diz que aprendeu mais a respeito de Deus e das coisas divinas na solidão, entre carvalhos e faias, do que nos livros e nas escolas dos sábios. Por essa razão sentiam-se os santos tão irresistivelmente atraídos a fugir do tumulto do mundo e a buscar a solidão; por esse motivo amavam tanto as grutas, os montes e os bosques. Isso já fora profetizado pelo profeta Isaías, quando disse:

“A terra deserta e ínvia se alegrará, e a solidão exultará, e florescerá como a açucena; lançando germes copiosamente brotará e com intensa alegria e muitos louvores saltará de prazer, os seus mesmos habitantes verão a glória do Senhor, e a magnificência de nosso Deus” (Is 35, 1-2)

Com outras palavras: A solidão é uma fonte inesgotável de alegrias para as almas interiores: pela pureza e inocência de seus habitantes floresce a solidão como um lírio e dá frutos de todas as virtudes; essas almas felizes receberão a graça de contemplar a majestade de Deus e sua infinita beleza.

Para permanecermos unidos a Deus devemos continuamente lembrar-nos dEle como dos bens infinitos com que compensa a seus fiéis sequazes. Pelo comércio com o mundo, porém, se apagam essas verdades espirituais, pelas coisas terrenas que nos entram pelos olhos, e os bons sentimentos desaparecem de nosso coração. Por isso é impossível que se tenha uma vida verdadeiramente piedosa, não se amando a solidão e só encontrando gosto no trato com os homens, no fazer sempre visitas e recebê-las e em conversações mundanas.

Consequentemente, ninguém é mais digno de lástima do que uma pessoa que quer levar uma vida devota e que, para isso, já fez muitos sacrifícios e, contudo, passa uma grande parte do dia era vãs diversões, em gargalhadas e tagarelices e talvez até em conversações contra a caridade. Em vez de pôr toda a sua satisfação em se entreter em seu Deus, busca sua consolação em uma vida cheia de distrações e no convívio com homens mundanos, que não deixarão de envenenar seu coração com as máximas depravadas do mundo.

Ela abusa, pois, do tempo que Deus lhe concede para sua santificação. Infeliz dela, como pode desperdiçar esse tempo precioso? Os santos estavam prontos a comprar pelo preço de seu sangue uma pequena parcela desse tempo! Oh! O que não dará ela uma vez, quando a morte, estiver próxima, por um só dia, por uma só daquelas muitas horas que agora desperdiça com tanta leviandade!

2. Os mundanos fogem da solidão, e isso com toda a razão, porque no recolhimento são atormentados pelos remorsos de sua consciência. Eles procuram a sociedade e o tumulto do mundo, para que o rumor que ali existe os preocupe e encubra a voz de sua consciência. Os que, porém, têm a consciência em paz, gostam da solidão e se, às vezes, não podem evitar o burburinho do mundo, sentem-se incomodados, como o peixe fora d’água.

Não deixa de ser verdade que o homem preza o trato com os outros; mas existe talvez coisa mais bela que o comércio com Deus? Não se sente nenhuma amargura e nenhum enfado se se afasta da companhia dos homens para se entreter com Deus, nosso Criador.

“A sua conversação nada tem de desagradável e a sua companhia nada de fastidioso, mas o que nela se acha é satisfação e prazer” (Sb 8, 10)

Sem razão alguma se diz que a vida solitária é uma vida triste; ela é antes um antegozo do paraíso, é um começo da vida dos santos, que acham uma satisfação indizível em se ocupar unicamente com o amor e o louvor de Deus. Isso nos ensina expressamente São Jerônimo, que fugiu de Roma para se recolher a uma gruta em Belém, para aí gozar da solidão. “A solidão é meu paraíso”, escrevia ele depois.

O venerável Pe. Carafa, geral da Companhia de Jesus, dizia que não desejava coisa alguma deste mundo: mas se tivesse de desejar alguma coisa, seria então uma pequena gruta, um pedaço de pão e um livro de devoção, para que pudesse passar sua vida na mais rigorosa solidão.

Pode parecer-nos que os santos, na solidão, se acham inteiramente sós; mas não é assim:

“Nunca estou menos só que quando estou só, diz São Bernardo, porque então estou na companhia de Deus, que mais me contenta do que a companhia de todas as criaturas juntas”

Os santos parecem estar tristes e, contudo, não vivem na tristeza. Porque o mundo os vê afastados de todas as alegrias terrenas, tem-nos em conta de infelizes e desconsolados, mas o contrário é a verdade: eles gozam de uma paz imensa e contínua, segundo a expressão do Apóstolo (2 Cor 6, 10).

3. Para gozares dessa deliciosa solidão, alma cristã, não é preciso que te retires para uma caverna ou para um deserto: no meio de tua própria família a poderás achar. Ocupa-te com o mundo exterior só tanto quanto o exigem teus deveres de estado, a obediência ou caridade, e, dessa forma, viverás naquela solidão que convém a teu estado e que Deus de ti requer. O rei Davi sabia criar-se essa solidão no meio das mais importantes ocupações de seu governo:

“Eis que me retirei fugindo e permaneci na solidão” (SI 54, 8)

São Filipe Néri alimentava por algum tempo o pensamento de se retirar para um deserto; Deus, porém, recomendou-lhe que não abandonasse a cidade de Roma, mas que aí vivesse como se estivesse em um deserto.

Se, conforme o exposto, não é necessário que vivas continuamente na solidão, deves, contudo, cuidar em buscá-la todas as vezes que te for possível; ao menos deves amá-la, conforme as palavras de São Lourenço Justiniano:

“A solidão deve sempre ser amada, ainda que não sempre praticada” (De cast. con., c, 6)

Se uma pessoa devota é obrigada a deixar a solidão para cumprir com os deveres de seu estado, que o faça então com toda a liberdade de espírito, sem se inquietar de forma alguma, pois, do contrário, mostraria um certo apego à sua vida recolhida, o que seria uma falta notável.

II

1. Até aqui só falamos da solidão corporal; vamos agora falar da espiritual, que é mais necessária que aquela, pois São Gregório diz:

“Que aproveita a solidão do corpo, se falta a do espírito?” (Mor., 1. 30, c. 23)

Que adianta, quer o santo dizer, habitar corporalmente um deserto, se a alma se apega às coisas deste mundo?

“Uma alma livre de apego às coisas terrenas, diz São Pedro Crisólogo, encontra a solidão até nas ruas e praças públicas”

Doutro lado, que adianta permanecer sozinho em casa ou em uma igreja, se nosso coração se ocupa com as coisas deste mundo, que, com seu barulho, nos impedem de ouvir a voz de Deus? Disse uma vez o Senhor a Santa Teresa:

“Oh! Com quanto gosto não falaria eu com muitas almas! O mundo, porém, faz tanto barulho em seus corações, que elas não ouvem a minha voz! Oh! Se elas se afastassem um pouco do mundo!”

2. Procuremos, por isso, conhecer em que consiste a solidão do coração. Ela consiste nisso, que arranquemos de nosso coração todas as afeições que não se referem a Deus e que em todas as no­sas ações tenhamos em vista o seu santo agrado.

O salmista exprime essa verdade da seguinte forma:

“Que tenho eu no céu? E fora de ti, que desejo eu sobre a terra?… Vós sois o Deus do meu coração e minha partilha, Deus, para sempre” (SI 72, 25)

Em uma palavra, a solidão do coração consiste em se dizer:

“Meu Deus, só a Vós eu quero e nada mais”.

Alguns se queixam que não podem achar a Deus; a estes responde Santa Teresa:

“Desprendei o vosso coração de todas as coisas e buscai a Deus, que vós o encontrareis”

Para se buscar e achar a Deus, deve-se primeiro conhecê-lo. Como, porém, se poderá conhecer a Deus e sua beleza infinita, se se tem o coração preso às criaturas? Em um vaso de cristal, que está cheio de terra, não poderá penetrar a luz do sol; do mesmo modo não pode brilhar a luz divina em um coração que está cheio de amor pelas alegrias, riquezas e honras deste mundo. Isso nos dá Cristo a entender pela parábola da porta fechada:

“Quando rezares, busca teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo” (Mt 6, 6)

Com outras palavras: Para se poder unir a Deus na oração, deve-se recolher a seu próprio coração, que, segundo Santo Agostinho (Manual, c. 30) é o quarto de que fala o Senhor, e fechá-lo a todas as afeições terrenas.

Esforça-te, pois, para viveres em solidão espiritual, se não te for possível a corporal, diz São Bernardo. Mesmo quando te achares na companhia de outros para trabalhar ou te recrear, esforça-te por te conservar na solidão, isto é, recolhido em Deus; e ainda que corporalmente não te possas furtar à conversação, faze-o ao menos no desejo e intenção, permanecendo unicamente por ser isso agradável a Deus.

III

1. Deve-se aqui notar que, por solidão, não se deve entender a ociosidade, como se no recolhimento não se tivesse de fazer nada ou de pensar em coisa alguma. Deus quer que procurem a solidão os que O amam; não deseja, porém, que vivam ociosos. Alguns há que levam uma vida recolhida, mas, em sua solidão, não se ocupam com nada ou então com leituras frívolas ou outras coisas inúteis. Esses tais vivem na solidão, mas deverão dar contas um dia a Deus de sua solidão ociosa, como diz São Basílio.

A solidão ociosa é-nos comum com os irracionais; a solidão em que nos ocupamos com estudos inúteis e trabalhos supérfluos é mundana; a solidão religiosa não é nem ociosa nem inútil, mas mui santa e proveitosa. As almas piedosas devem imitar as abelhas, que não se cansam de preparar o mel em suas células; não devem perder nenhum instante, mas estar sempre ocupadas ou com a oração ou com a leitura de qualquer livro útil ou com qualquer serviço correspondente a seu estado.

“A ociosidade é o princípio de todos os vícios”

Este provérbio se funda sobre uma sentença do Espirito Santo:

“A ociosidade ensina muita malícia” (Ecl 33, 29)

São José Calazans costumava dizer:

“O demônio sai à caça das almas ociosas”

Conforme São Boaventura, o ocioso é atormentado com mil tentações, enquanto que quem está ocupado tem uma só a combater.

É impossível que se esteja sempre a rezar; por isso é preciso se dedicar também ao trabalho. Salomão louva sobremaneira a mulher forte, porque trabalhava em lã e linho (Pr 31, 13). Santa Maria Madalena de Pazzi se sujeitava a todos os trabalhos do claustro, apesar de sua fraqueza corporal; era vista ora a varrer, ora a carregar água, ora a ajudar na cozinha. Seu biógrafo diz que ela sozinha trabalhava mais que quatro irmãs leigas juntas.

2. Seria um erro acreditar que o trabalho prejudica a saúde; pelo contrário, ele muito auxilia a sua conservação. Muitas vezes procuramos subtrair-nos ao trabalho não tanto por temor de prejudicar a saúde, como por medo do incômodo; quem, porém, olhar para Jesus crucificado, não temerá a fadiga. Uma freira chamada Francisca se queixava que suas mãos, pelo muito trabalho, estavam todas estragadas. Mas logo ouviu que o Salvador crucificado lhe dizia:

“Francisca, olha para as minhas mãos! Poderás ainda te queixar?”

3. O trabalho é, de resto, um meio precioso contra o enfado na solidão, assim como contra as tentações a que se está sujeito no recolhimento. Sentia-se uma vez Santo Antão Abade tão horrivelmente atormentado por pensamentos impuros e desgosto da vida solitária, que já não sabia mais que fazer. Então apareceu-lhe um anjo e o conduziu a um jardim próximo; aí tomou uma enxada e começou a cavar a terra; em seguida orou por algum tempo; recomeçou depois disso o seu trabalho e novamente pôs-se em oração. Disso aprendeu o santo o que deveria fazer par se conservar contente na solidão e livrar-se das tentações, a saber, alternar a oração com o trabalho.

4. O trabalho, além disso, não impede, de forma alguma, o exercício da oração, se for empreendido sem cuidados excessivos e sem paixões. Vendo uma vez São Bernardo a um monge que, mesmo durante o trabalho, não cessava de rezar, disse-lhe:

“Continua assim, meu irmão, e tem confiança, pois agindo assim ficarás livre do purgatório, depois da morte”

Esse modo de proceder observa o mesmo São Bernardo, como se conta em sua vida. Sem negligenciar os trabalhos externos, vivia continuamente recolhido em Deus: Dessa forma deve-se ocupar cada um internamente com Deus, enquanto externamente faz o seu trabalho; doutra maneira essas ocupações externas serão sem proveito para a vida espiritual e cheias de imperfeições. Nos Cânticos diz o esposo à alma:

“Põe-me como um selo sobre teu coração, como um selo sobre o teu braço” (Ct 8, 6)

Primeiramente quer que O ponhamos sobre seu coração e então sobre seu braço, pois, se não se tem a Deus no coração, não se poderá tê-lO no braço, isto é, as obras externas não Lhe agradarão. Se, porém, as obras externas procedem do amor, serão sumamente perfeitas, como diz Santa Teresa.

5. Por isso estão em erro os que menosprezam o trabalho e querem se restringir unicamente à solidão; mas também erram os que se sobrecarregam com trabalhos externos de tal modo que não lhes resta mais tempo para o recolhimento de espírito.

“Meu filho, diz o Sábio (Ecl 11, 10), não te empenhes em muitas coisas, pois, se multiplicares os negócios, não ficarás imune de culpa”

Alguns há que se entregam de tal maneira ao trabalho começado, que não pensam em nada mais. Não resta dúvida que devemos executar com toda a diligência o que nos foi imposto, mas sempre com sossego e sem paixão, de forma que o nosso espírito possa se elevar a Deus de tempos a tempos. Santo Antão diz que em todas as nossas ocupações externas, por mais urgentes que sejam, devemos conservar em nosso interior um quarto escondido, ao qual possamos nos recolher, estando cansados do trabalho, para ai nos unir com Deus. Por isso é de grande utilidade, ao começar o trabalho, elevar o nosso coração a Deus, por meio de atos de amor, de oferecimento, de resignação ou de qualquer outra oração e repetir isso muitas vezes no decurso do trabalho. Santa Catarina de Sena sabia achar a Deus no meio dos inúmeros trabalhos que lhe impunham seus pais para demovê-la de seus exercícios de devoção; enquanto fazia externamente seu trabalho, guardava em seu coração, que ela chamava a sua cela, o mais perfeito recolhimento e se entretinha ai sem interrupção com seu mui amado Salvador.

Do Silêncio

1. O silêncio é um meio excelente para se alcançar o espírito da oração e para se habilitar para o trato ininterrupto com Deus. Dificilmente se encontrará uma pessoa verdadeiramente piedosa que fale muito. Todos que possuem o espírito de oração amam igualmente o silêncio, que é justamente chamado o conservador da inocência, um baluarte contra as tentações e uma fonte de oração, pois que o silêncio favorece o recolhimento e excita no coração bons pensamentos: ele obriga de certo modo a alma a pensar em Deus e nos bens celestes, como diz São Bernardo (Ep. 78). Por essa razão todos os santos e mesmo aqueles que não viveram coma anacoretas eram especiais amantes do silêncio.

O profeta Isaías diz:

“O silêncio cultivará na alma a justiça” (Is 32, 17)

De um lado ele nos preserva de muitos pecados, removendo a ocasião de altercações, de difamações, rancor e curiosidade; de outro lado, nos auxilia a adquirir muitas virtudes. Como não se pratica admiravelmente a humildade quando se ouve modestamente e se guarda o silêncio, enquanto falam os outros; a mortificação, quando, desejando-se narrar algum episódio ou dizer algum chiste se abstém disso, calando-se; a mansidão, quando nada se responde sendo-se injustamente repreendido ou injuriado!

O muito falar, pelo contrário, traz consigo muitos danos. Como se conserva a devoção pelo silêncio, assim também se perde pelo muito falar. Por mais que se esteja recolhido durante a oração, se depois não se vencer no falar, estar-se-á logo distraído como se não tivesse feito oração. Abrindo-se a tampa de uma estufa, o calor se evapora em curto prazo.

“Evita o muito falar, admoesta São Doroteu, porque ele expele os bons pensamentos e o recolhimento em Deus” (Doct. 24)

É fora de dúvida que uma pessoa que fala muito com os homens pouco se entretém com Deus, e que Deus, por sua parte, pouco fala com ela; segundo suas próprias palavras, ele conduz a alma à solidão quando lhe quer dirigir a palavra:

“Eu a conduzirei à solidão e lhe falarei ao coração” (Os 2, 14)

Além disso, nos admoesta o Espírito Santo (Pr 10, 19):

“No muito falar não faltará pecado”

Ainda que durante a conversação, que se protrai sem necessidade, não se pense que se está cometendo falta, contudo, depois, em um sério exame de consciência, se descobrirá qualquer falta, quer por indiscrição, ou por curiosidade, ou, ao menos, por inútil tagarelice.

Mas, que digo eu? Não é só de uma ou outra falta que nos tornamos culpados, quando falamos muito, mas de grande número delas. Segundo São Tiago (Tg 3, 6) é a língua “um mundo de injustiças”, pois, como nota um sábio escritor, o maior número de pecados é ocasionado pelo falar ou pelo ouvir falar. Ah! Quantas almas não se acharão, no dia de juízo, entre os condenados porque não guardaram sua língua! O pior é que aquele que se entrega à distração pelo intenso trato com as criaturas e pelo muito falar, não conhece suas faltas e, por isso, cai sempre mais profundamente. “O homem que fala muito, diz o salmista (Prov 139, 12), não será dirigido na terra”, e seguirá por mil desvios, sem que se possa esperar a sua emenda.

Parece que alguns não podem viver sem prosear desde a manhã até à tarde: querem saber tudo o que acontece, incomodam-se com tudo e ainda perguntam que mal fazem com isso. A esses respondo: Deixai de falar tanto, procurai recolher-vos um pouco e conhecereis quantas faltas cometestes com vosso imoderado prosear.

“Quem guarda a sua boca, guarda a sua alma”, diz o Sábio (Pr 13, 3). E São Tiago escreve:

“Quem não peca por palavra é um homem perfeito” (Tg 3, 2)

Quem, por amor de Deus, pratica o silêncio, fará também com diligência a leitura espiritual, a meditação e a visita ao Santíssimo Sacramento. Oh! Quanto ama Deus a uma alma que observa o silêncio! Principalmente se se mortifica no falar naquelas ocasiões em que sente um desejo especial para falar, por exemplo, depois de um longo retiro, em acontecimentos agradáveis ou desagradáveis. Quem costuma, porém, se difundir em conversas estará continuamente distraído e deixará facilmente a oração, a meditação e outros exercícios de devoção e perderá assim, pouco a pouco, o gosto por Deus e pelas coisas divinas. É impossível que aquele que não ama o silêncio, diz Santa Maria Madalena de Pazzi, ache gosto nas coisas divinas; ele se lançará, mais cedo ou mais tarde, nos braços das alegrias mundanas.

2. Contudo, a virtude do silêncio não consiste em nunca se abrir a boca para uma conversa, mas em se calar quando não há motivo razoável para se falar. Por isso diz Salomão (Ecl 3, 7):

“Há tempo para se calar e tempo para falar”

Nota São Gregório de Nissa que se fala primeiramente do tempo de se calar, porque pelo silêncio é que se aprende a arte de falar bem.

Quando, pois, se deverá calar e quando deverá falar um cristão que deseja santificar-se? Ele deve calar-se quando não for necessário falar, e deve falar quando a necessidade ou a caridade o exigir. São Crisóstomo (In ps. 140) estabelece a seguinte regra:

“Só quando o falar for mais proveitoso que o calar-se é que se deve falar”

Com isso se harmoniza o conselho dado pelos mestres espirituais:

“Cala-te ou fala de tal modo que o falar seja preferível ao silêncio”

Santo Arsênio confessou que se arrependeu muitas vezes de ter falado e nunca de ter guardado o silêncio. Por isso Santo Efrém aconselha a cada cristão:

“Fala muito com Deus e pouco com os homens” (Encom. in ps.)

Pelo que farias muito bem, alma cristã, se guardasses o silêncio em certas e determinadas horas do dia e, para não encontrares ocasião de falar, te retirasses, durante esse tempo, para um lugar solitário. Se a obediência ou a caridade não to permitir, procura ao menos achar alguns momentos livres para te recolheres e reparares as faltas que cometeste em tuas conversações, pois o Sábio diz (Ecl 14, 14):

“Não deixes passar uma partezinha do bem que te é concedido”

Se não puderes empregar para o Senhor mais tempo, consagra-Lhe ao menos os curtos instantes que te estão à disposição e procura cortar toda conversação inútil sob qualquer oportuno pretexto.

Se alguma vez em tua presença se pronunciar alguma palavra indecente, foge então sem demora ou, ao menos, abaixa os olhos e não dês resposta ou então dirige a conversa para outro assunto. Conversas mundanas deves procurar cortá-las quanto antes. Santa Francisca Romana recebeu certa vez uma bofetada de seu anjo da guarda porque não deu outra direção a uma conversa de algumas senhoras que falam sobre coisas fúteis.

Para não faltares neste ponto, deves, antes de tudo, mortificar a tua curiosidade. O Abade João costumava dizer:

“Quem quiser refrear sua língua, deve tapar seus ouvidos, reprimindo o desejo de saber novidades”

3. Se estiveres obrigada a falar, alma cristã, pondera bem primeiramente o que queres dizer: “Coloca tuas palavras na balança” (Ecl 28, 29), te diz o Espírito Santo. São Bernardo diz que as palavras deveriam passar duas vezes pelo crivo da apuração antes de chegarem à língua, para que não se diga o que não é útil declarar. São Francisco de Sales exprime o mesmo pensamento com outras palavras:

“Para não se faltar, na conversa, se deveria ter a boca como que abotoada, para que se pudesse refletir, enquanto se desabotoasse, no que se vai falar”

Antes de falar deves, pois, ponderar:

1.º O que queres dizer: se, por exemplo, com isso não ofendes a caridade, a modéstia ou qualquer outro mandamento de Deus;

2.º Com que intenção falas: algumas vezes se diz alguma coisa boa, mas com má intenção, para se aparecer virtuoso ou então espirituoso;

3.º Com quem falas: se com um superior, ou com um igual, ou inferior; se na presença de adultos ou de crianças, que talvez poderiam escandalizar-se com tuas palavras;

4.º Como deves falar: pois é teu dever falar com simplicidade cristã, sem afetação; com humildade, evitando toda a expressão orgulhosa ou vaidosa; com mansidão, sem mostrar impaciência ou ofender o próximo; com discrição, sem querer ter sempre a primeira palavra, principalmente se fores mais moço que os outros; com modéstia, evitando interromper os mais.

Além disso, deves falar com voz moderada e evitar todas as expressões e gestos que são próprios de um mundano. Finalmente, deves te abster de rir imoderadamente, pois isso de forma alguma está bem a uma pessoa que deseja viver piedosamente, como nota São Basílio. Um riso moderado, porém, que denota a alegria do coração, não é nem contra a civilidade nem contra a piedade. Modéstia e alegria é o que deve luzir no procedimento de um bom cristão, e não melancolia e desalento, pois isso desonra a piedade e induz a crer que uma vida dedicada a Deus ocasiona, em vez de paz e alegria, unicamente tristeza e tribulações.

Do andar na Presença de Deus

A. Benéficos efeitos do andar na presença de Deus

O andar na presença de Deus é chamado, com razão, o fundamento da vida espiritual. Consiste ele nisso: que se evite o pecado, se pratique a virtude e se una mais intimamente possível com Deus. Ora, são justamente essas três coisas que opera o andar na presença de Deus; ele conserva a alma afastada do pecado, excita-a à prática da virtude e faz que ela se una a Deus por meio de seu santo amor.

1. Quanto ao primeiro efeito, a preservação do pecado, não há meio mais eficaz para refrear as paixões, para resistir às tentações e, consequentemente, para evitar o pecado do que a lembrança da presença de Deus. Santo Tomás diz:

“Se pensássemos sempre na presença de Deus, nunca faríamos, ou então só raramente, coisa alguma que Lhe desagradasse” (Opusc. 58, c. 2)

Segundo São Jerônimo, a recordação da presença de Deus fecha a porta a todos os pecados. E, de fato, se os homens não ousam transgredir, em presença de seus príncipes, de seus pais ou superiores, os seus preceitos, como poderiam infringir os mandamentos de Deus se pensassem que Ele os vê?

Santo Ambrósio conta que, durante um sacrifício que Alexandre Magno oferecia no templo, um pajem preferiu deixar-se queimar a mão a cometer a irreverência de deixar cair a tocha que sustinha. Ora, se o respeito para com seu rei pôde fazer que esse jovem, para não faltar com ele, vencesse a natureza, quanto mais poderoso, ajunta o Santo Doutor, não será o pensamento da presença de Deus para levar uma alma crente a vencer todas as tentações e a suportar antes todos os tormentos do que ofender a seu Deus e Senhor diante de seus próprios olhos.

Os homens, só por isso, caem em pecado, porque perdem de vista a presença de Deus.

“A causa de todo o mal, diz Santa Teresa, está em que não pensamos na presença de Deus, mas antes o julgamos muito longe de nós” (Cam. da perf., c. 29)

Antes dela já o dissera Davi:

“Não há Deus diante dele: por isso seus caminhos são manchados em todos os tempos” (SI 10, 5)

O Abade Diocles chega até a dizer que aquele que perde da memória a presença de Deus, torna-se um animal ou um demônio. E ele tem razão: porque um tal homem será sempre assaltado por seus desejos  sen­suais ou diabólicos e não terá a força para resistir-lhes.

Doutro lado, os santos acham nesse pensamento, de que Deus os está vendo, a força para resistir a todos os ataques do inimigo. Esse pensamento outorgou à casta Susana a coragem para repelir os dois libertinos que a queriam seduzir ao pecado, apesar de a terem ameaçado com a morte.

“Prefiro antes cair, sem esse pecado, nas vossas mãos, disse ela com inabalável constância, do que pecar na presença de Deus” (Dan 13, 23)

Esse pensamento converteu a uma mulher depravada, que não se envergonhara de tentar Santo Efrém ao pecado. O Santo dissera-lhe que, se quisesse pecar, deveria ir com ele no meio da cidade. “Mas como se poderá cometer um tal pecado na presença de tanta gente?”, perguntou-lhe ela. “E como se poderá pecar na presença de Deus, que vê tudo?”, respondeu-lhe o santo. Ouvindo essas palavras, rompeu em pranto a pobre pecadora, pediu perdão ao santo e adjurou-o a que a auxiliasse no caminho da salvação. Santo Efrém internou-a em um claustro, onde levou uma vida edificante e chorou até à morte os seus pecados (Metaphrasl., Vit. Sti. Ephr.).

Coisa semelhante se deu com o Santo Abade Pafúncio a respeito de uma outra pecadora chamada Tais, que lhe dissera que ninguém haveria de ver seu pecado, além de Deus. O santo respondeu-lhe, com voz muito grave:

“Crês, portanto, que Deus te vê, e queres entretanto pecar?”

Tais sentiu-se ferida por essas palavras, entrou em si e começou a detestar sua vida vergonhosa: trouxe seus móveis, seus vestidos e jóias, que adquirira por sua vida escandalosa e, amontoando tudo isso em uma praça pública, ateou-lhe fogo, e dirigiu-se em seguida para um convento, onde jejuou durante três anos a pão e água, repetindo as palavras:

“Ó Vós que me criastes, tende piedade de mim!”

Decorridos esses três anos, teve uma santa morte. Logo após sua morte, foi revelado a um discípulo de Santo Antão, Paulo, o Simples, que essa feliz pecadora recebera um trono de glória entre os santos do céu (Vita Pat., 1. 1).

O pensamento na presença de Deus nos ajuda, pois, a evitar o pecado. Digamos, portanto, ao Senhor, com o piedoso Jó:

“Ponde-me, Senhor, junto de vós, e arme-se contra mim a mão de quem quer que for” (Jó 17, 1)

Ó meu Deus, fazei-me lembrar de Vos­sa presença, fazei-me pensar por toda a parte que Vós me vedes; que venham então os meus inimigos, que eu certamente os vencerei. São João Crisóstomo diz:

“Se nos conservarmos sempre na presença de Deus, não só não pensaremos em coisas más, mas também não as diremos, nem as faremos, porque estaremos persuadidos que Deus observa todas as nossas ações, ouve todas as nossas palavras e vê todos os nossos pensamentos” (In Filip h. 8)

2. Quanto à prática das virtudes cristãs, é a recordação da presença de Deus igualmente um poderoso meio para isso. Com que valentia não combatem os soldados na presença de seu rei! O pensamento de que os observa o príncipe, que os pode recompensar ou punir, aviva sua coragem força em alto grau. Se igualmente pensássemos que, em tudo que fazemos, o olho de Deus está voltado para nós, certamente nos esforçaríamos para fazer tudo bem e com pura intenção, sem buscar outra coisa que o exclusivo agrado de Deus e sem nos importar com os homens.

São Basílio diz:

“Se alguém se achasse na presença de seu rei e de um simples camponês, certamente procuraria agradar ao rei, sem se incomodar muito com o que agradasse ao camponês; da mesma forma se esforça aquele que anda na presença de Deus a agradar unicamente a Deus, seu Senhor, que observa todos os seus atos e não às criaturas”

3. Quanto ao terceiro efeito, a união com Deus, é verdade incontestável que o amor é alimentado pela presença do objeto amado; isto se dá até com os homens, apesar de descobrirem tanto mais faltas em nós quanto mais convivem conosco. Muito mais se aumentará, pois, o amor de Deus na alma, se ela O tiver continuamente diante dos olhos porque, quanto mais se trata com Ele, tanto mais brilha sua beleza e amabilidade.

Para se permanecer em união contínua com Deus não basta fazer uma meditação, de manhã e à noite. Se se retira do fogo a água fervendo, diz São Crisóstomo, retoma logo a sua natural frieza. Por isso deve-se estar atento a conservar, fora da meditação, o fogo do amor por meio da recordação contínua da presença de Deus. O venerável Henrique Suso se dedicou com especial zelo a este santo exercício e chegou a tal grau de perfeição, que se entretinha sem interrupção com Deus por meio de aspirações amorosas. Santa Gertrudes alcançou também tal perfeição nesse ponto que o Salvador, referindo-se a ela, disse a Santa Mechtildes:

“Essa alma, minha muito amada, anda sempre na minha presença e se esforça sempre por cumprir a minha vontade e fazer todas as suas ações para minha maior glória” (Insin., 1. 1, c. 12)

São Bernardo quando, nos seus primeiros anos de vida religiosa, se sentia desanimado ou tíbio, pensava em alguma pessoa piedosa, quer ausente, quer mesmo falecida, e isso bastava, como ele mesmo conta, para que a alegria e o fervor no amor de Deus voltassem imediatamente à sua alma. Quanto mais útil não será, pois, para uma alma que ama a Deus o pensamento de que Deus está perto dele e deseja o seu amor. Davi sentia-se cheio de alegria e consolação ao só pensar em seu Deus:

“Lembrei-me de Deus e me deleitei” (SI 76, 4)

Por mais aflita e desconsolada que se ache uma alma, se ela ama a Deus, se sentirá certamente consolada logo que pensar em seu mui amado Senhor. Por isso, aqueles que estão cheios do amor de Deus conservam a tranquilidade e a paz, porque, assim como o girassol se volta sempre para o sol, também eles, em tudo que lhes sucede e em tudo o que fazem, se esforçam por ter a presença de Deus diante dos olhos.

“Quem ama verdadeiramente, diz Santa Teresa, pensa sempre no objeto amado” (Vida, c. 13)

B. Diversos modos de se pôr na presença de Deus

Quero explicar-te agora, alma cristã, como podes te transportar à presença de Deus. Esse ato se exerce em parte pelo entendimento, em parte pela vontade: por meio do entendimento deve-se representar a Deus presente; por meio da vontade deve-se unir a Ele, fazendo-se atos de humildade, adoração, amor e semelhantes.

I

Tendo-se em vista o entendimento, podemos nos pôr na presença de Deus de diversas maneiras.

1. O primeiro modo consiste em nos representar que Jesus Cristo, nosso Salvador, nos acompanha e nos vê por toda a parte. Podemos no-lO representar ora neste, ora naquele mistério; por exemplo, ora como um menino no presépio de Belém, ora como pobre exilado na fugida para o Egito, ora como operário na oficina de Nazaré, ora como homem de dores, que é condenado à morte como um criminoso, flagelado, coroado de espinhos e pregado na cruz.

Santa Teresa aplaude muito esta maneira de se colocar na presença de Deus. Devo, contudo, notar que, se ela é boa, não é, contudo, a maneira melhor e nem sempre é útil, e isso por dois motivos: primeiro, ela não corresponde inteiramente à verdade, porque Jesus Cristo não nos está continuamente presente ao mesmo tempo como Deus e homem, mas só depois da comunhão ou no Santíssimo Sacramento; segundo, essa maneira de se pôr na presença de Deus pode dar facilmente ocasião a enganos ou, ao menos, cansar muito a cabeça pelo grande esforço da fantasia. Querendo-se servir dela, faça-se, pois, com cuidado, sem se querer representar forçosamente os traços, a cor do rosto ou a fisionomia do divino Salvador: basta que O julguemos presente em uma figura indeterminada e nos representemos que Ele vê tudo o que fazemos.

2. O segundo modo de se colocar na presença de Deus é muito seguro e preferível, pois que se baseia sobre uma verdade da fé. Consiste em vermos, com os olhos da fé, a Deus presente em toda a parte e nos compenetrarmos vivamente da verdade que Ele está continuamente conosco e observa todas as nossas ações.

Não importa que não o vejamos com os olhos do nosso corpo. Também não vemos o ar e, contudo, nem de longe duvidamos que ele nos circunda de todos os lados, pois, do contrário, não poderíamos respirar, nem viver.

Não vemos a Deus, mas a fé nos ensina que Ele nos está continuamente presente. “Porventura não encho eu o céu e a terra?” (Jr 23, 24), diz Ele pela boca do profeta. Nós estamos em Deus de um modo semelhante ao de uma esponja no mar, que está circundada pela água e toda impregnada dela. São Paulo diz:

“Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28)

Ele, que é nosso Deus, diz Santo Agostinho, observa todas as ações, todas as palavras, todos os pensamentos de cada um de nós com tal cuidado, como se tivesse esquecido todas as outras criaturas, para nos dispensar toda a sua atenção. Mas Deus não só vê todas as coisas que fazemos, dizemos e pensamos, como também registra tudo, para exigir contas de nós, no dia do juízo, e nos recompensar ou castigar segundo os nossos méritos.

Este segundo modo de pensar na presença de Deus não cansa o espírito, pois basta excitar um ato de viva fé, dizendo-se interiormente:

“Ó meu Deus, creio firmemente que estais aqui presente”

Pode-se também juntar, a esse, atos de amor, de resignação, boa intenção e outros semelhantes.

3. O terceiro modo de conservar a recordação da presença de Deus consiste em considerar a Deus nas criaturas, que dEle recebem seu ser e foram destinadas para o nosso uso. Deus está na água que nos purifica, no fogo que nos aquece, no sol que nos ilumina, na comida que nos sustenta, em todas as coisas que criou para nossa utilidade, Se, por isso, virmos qualquer objeto belo, como um magnífico jardim, uma delicada flor, pensemos que nossa criatura se reflete um fraco raio da infinita beleza de Deus, daquele Deus que deu o ser a essas coisas. Se falamos com um santo ou com um sábio, pensemos que é Deus que lhe comunicou uma partezinha de Sua santidade ou sabedoria. Se ouvimos uma música deleitosa, se certos perfumes nos agradam, se comidas e bebidas nos satisfazem, pensemos que é Deus que nos distribui esses dons com o fim de elevar nosso coração para Ele por meio dessas coisas e fazê-lo aspirar às alegrias eternas do céu.

Acostumemo-nos, pois, alma cristã, a ver em todas as coisas a Deus, que se nos apresenta nelas, e façamos amiudados atos de agradecimento e de amor, lembrando-nos que Deus, desde toda a eternidade, pensou em operar tantos milagres de onipotência para ganhar os nossos corações.

“Apressa-te a amar na criatura o Criador, diz Santo Agostinho, e não prendas o teu coração naquilo que Deus fez, para que não percas, pela entrega de ti mesmo às criaturas, aquele que te criou”

Conforme isso procedia esse grande santo; à vista das criaturas elevava seu coração a Deus, e, inflamado em amor, exclamava:

“Céu e terra e tudo o que neles existe me clama que eu devo vos amar”

Se eu considero o céu, as estrelas, os campos, os montes, queria dizer o santo, então parece-me que me clamam:

“Agostinho, ama a teu Deus, porque Ele nos criou unicamente para que O possas amar”

À vista de encantadoras campinas, lagos, regalos ou outras belas coisas, Santa Teresa parecia ouvir as repreensões dessas criaturas acusando-a de ingratidão para com seu Deus. Santa Maria Madalena de Pazzi ficava cheia de admiração e inflamada em amor quando tinha nas mãos uma bela flor ou fruta, e dizia consigo mesma:

“Deus, pois, pensou desde toda a eternidade em criar esta flor e esta fruta, para ganhar o meu amor!”

Um santo homem, chamado Simeão Saulo, costumava bater com seu bordão nas flores e plantas quando atravessava os campos, dizendo:

“Calai-vos, já basta; calai-vos, pois me lançais em rosto que amo pouco a esse Deus que vos fez tão belas por amor de mim e para me atrair a Ele por meio de vós. Já entendo o que quereis dizer: basta, calai-vos!”

4. O quarto meio, que é o mais perfeito, para conservar sempre viva em nós a recordação da presença de Deus, consiste em vermos a Deus em nós mesmos.

Não é preciso subir ao céu para achar a Nosso Senhor; precisamos só nos recolher um pouco e O encontraremos em nós mesmos. Quem se representa a Deus na oração, como muito distante, se cria assim uma fonte de muitas distrações. Santa Teresa diz:

“Nunca fiquei sabendo perfeitamente o que era rezar bem, até que Deus mesmo me ensinou o verdadeiro modo de conversar com Ele. Eu comecei então a me aprofundar no meu interior e isso se evidenciou como muito útil para minha alma” (Cam. da perf., c. 30)

Deus está presente em nós de um modo mui diferente do que nas outras criaturas: em nós mora o Senhor como em seu templo, em sua casa:

“Não sabeis que vós sois templos de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?” (1 Cor 3, 16)

Por isso nos diz o divino Salvador que Ele, com o Pai e o Espírito Santo, faz sua entrada na alma que o ama, para aí permanecerem, não um momento, mas para sempre.

“Se alguém me amar, meu Pai também o amará e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23)

Os reis desta terra moram em grandes palácios; mas neles possuem aposentos especiais, nos quais geralmente habitam. Coisa semelhante se dá com Nosso Senhor: Ele está por toda a parte, sua presença enche o céu e a terra; mas, de um modo especial, habita nas nossas almas, onde se demora com especial gosto, como em outros tantos jardins de delicias.

“Eu habitarei neles, assim fala Deus pela boca do Apóstolo, e andarei entre eles e serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (2 Cor 6, 16)

Ele mora nos nossos corações e aí quer ser amado de nós e por nós invocado, pois Ele está no meio de nós, cheio de amor e bondade, para atender às nossas súplicas, receber provas de nosso amor, para proteger-nos e iluminar-nos, dirigir-nos e comunicar-nos seus bens, para auxiliar-nos em tudo que pode servir para nossa salvação.

Procuremos, pois, avivar a nossa fé nessa verdade e humilhemo-nos diante de tão sublime majestade que se digna morar em nós. Façamos muitas vezes atos de confiança, de entrega de nós mesmos e de amor para com a infinita bondade de Deus; demos-Lhe graças por seus fatores; alegremo-nos com sua glória; peçamos-Lhe conselhos em nossas dúvidas e consideremo-nos muito felizes por possuirmos nEle o sumo bem, sem precisarmos temer que poder algum criado no-lo possa roubar jamais, ou que Ele mesmo nos abandone, a não ser que nós mesmos o expulsemos de nosso coração.

Santa Catarina de Sena, como ela mesma nos conta, edificou no seu interior uma cela e aí se entretinha sem interrupção em amorosas conversações com seu Deus e Senhor; aí se indenizava da proibição imposta por seus pais de não se recolher a seu quarto para rezar. E nessa pequena cela encontrou ela muito mais do que poderia achar no seu quarto, desde que deste teria ela de sair repetidas vezes, ao passo que nunca teve de abandonar aquele santuário interior, mas, antes, permaneceu sempre nele cheia de recolhimento e devoção.

Falando uma vez Santa Teresa dessa presença de Deus em nosso coração, disse:

“Aqueles que desse modo se recolhem ao pequeno céu de sua alma, onde impera aquele que o criou, podem estar certos que trilham um caminho seguro; dentro de pouco tempo terão vencido uma grande parte do caminho” (Cam. da perf., c. 20)

5. Se me perguntares, alma cristã, quantas vezes no dia deves te pôr na presença de Deus, respondo-te com São Bernardo (De int. dom., c. 27), que o deves fazer todos os instantes, pois, como não há um momento, diz o Santo, em que não gozemos dos benefícios de Deus, assim também não devemos deixar passar um instante sem pensar em Deus e Lhe testemunhar nossa gratidão. Se alguém soubesse que seu rei sempre pensava nele e em seu bem-estar, certamente haveria de amar ternamente um tal príncipe e nunca se esqueceria dele, mesmo no caso que essa afeição não lhe trouxesse nenhum proveito.

É, porém, fora de dúvida que Deus se ocupa constantemente contigo e te beneficia sem cessar, ora com inspirações, ora corroborando tua vontade, ora com outras provas de ternura. Não serias talvez réu de uma grande ingratidão se te esquecesses dEle, ainda que por pouco tempo? Devemos, pois, nos esforçar para pensarmos na presença de Deus sem interrupção ou, ao menos, quantas vezes nos for possível.

Nosso Senhor dirigiu ao patriarca Abraão estas palavras: “Anda diante de mim e sê perfeito” (Gn 17, 1), o que quer dizer, procura andar sempre na minha presença, e serás perfeito. Semelhante conselho deu a seu filho o piedoso Tobias:

“Meu filho, nunca percas a Deus de vista durante tua vida inteira”

Perguntando Dositeo a seu mestre, São Doroteo, o que se devia fazer para se santificar, recomendou-lhe também ele que andasse sempre na presença de Deus:

“Lembra-te sempre, lhe disse, que Deus está ao pé de ti”

Dositeo, que fora antes um soldado depravado, seguiu esse conselho e atingiu, em cinco anos, um tal grau de perfeição que foi visto, depois de sua morte, entre os mais santos anacoretas.

II

Até aqui só falei do ato do entendimento; quero agora mostrar-te, alma cristã, como tua vontade deve participar nesse santo exercício da presença de Deus. Antes de tudo deves notar que só aos santos, no céu, é dado permanecer sem interrupção diante de Deus em sua incessante visão; aqui na terra é humanamente impossível se conservar incessantemente na presença de Deus; apesar disso, devemos tender a isso tanto quanto possível, não como desassossego de ânimo e excessivo esforço, mas com calma e resignação.

De três modos pode a nossa vontade cooperar nesse empenho:

1. Primeiramente podemos elevar o nosso coração a Deus muitas vezes por meio de orações jaculatórias e aspirações amorosas, curtas mas fervorosas. Tais atos se podem praticar em qualquer lugar e a qualquer hora. Seja qual for a tua ocupação, poderás sempre, de tempos a tempos, elevar teu coração a Deus e dizer:

Ó meu Deus, só a Vós desejo e nada mais.
A nada mais aspiro que pertencer inteiramente a Vós.
Disponde de mim e de tudo que me pertence como Vos aprouver.
Sacrifico-me por completo a Vós.
Amo-Vos mais que a mim mesmo.
Sacrifico-me por completo a Vós.
Só quero o que quereis.
Por amor de Vós renuncio a tudo o mais.
Eu Vos agradeço todas as graças que me concedestes.
Ajudai-me, tende piedade de mim.
Dai-me o Vosso santo amor.
Senhor, merecia arder agora no inferno.
Alegro-me com a Vossa felicidade.
Desejo que todos Vos amem.
Não permitais que Vos seja outra vez infiel.
Coloco em Vós toda a minha esperança.
Quando Vos verei face a face?
Tudo que eu fizer ou padecer seja por Vós.
Faça-se em tudo a Vossa santa vontade!

Há momentos em que, de um modo especial, se deve esforçar para se avivar a fé na presença de Deus, a saber:

De manhã, ao despertar, se deve dizer:

“Meu Deus, eu creio que estais aqui presente, e que estareis ao pé de mim em toda a parte em que hoje estiver; protegei-me sempre e não permitais que Vos ofenda diante de Vossos olhos”

No começo da meditação ou da oração vocal, pois quem reza distraído, diz o Cardeal Caracciolo, Bispo de Aversa, prova que foi negligente em excitar a fé na presença de Deus; — nas tentações contra a santa castidade ou a paciência; por exemplo, se fores acometido por uma dor veemente, se fores gravemente ofendido ou se um objeto desagradável te cair diante dos olhos, deves então imediatamente recordar-te da presença de Deus e te fortalecer com o pensamento de que Ele te vê.

2. Um segundo meio para se conservar na presença de Deus pelos atos da vontade consiste em renovar repetidas vezes durante o trabalho a intenção de querer fazer tudo unicamente para agradar a Deus. No começo de todos os teus atos, quer comeces um trabalho, quer te dirijas à mesa, ou à recreação, ou ao descanso, deves sempre dizer contigo mesmo:

“Senhor, não quero fazer isto para minha satisfação, mas unicamente para cumprir a Vossa vontade”

Durante a ação mesma deves te esforçar para renovar amiúdo essa boa intenção, dizendo:

“Meu Deus, tudo para Vossa glória”

Dessa maneira te conservarás perfeitamente e sem grande esforço na presença de Deus, visto que só o desejo de agradar a Deus já é uma recordação amorosa deSua presença.

Será igualmente bom se estabeleceres certos sinais ou ocasiões para te recordares mais facilmente da presença de Deus; por exemplo, ao bater do relógio, à vista do crucifixo, ao entrares ou ao saíres do quarto. Costumam alguns colocar em seu quarto um sinal especial, que os deve recordar da presença de Deus.

3. Um terceiro meio consiste em empregarmos ao menos alguns momentos para nos recolhermos em Deus, quando nossas ocupações nos distraem ou cansam muito. Se teu corpo não resistisse mais, por fraqueza, visto que o esforçaste muito ou jejuaste por longo tempo, não tomarias imediatamente um reconfortante, para que pudesses continuar teu trabalho? Quanto mais, pois, deves assim proceder para com tua alma, quando seu zelo ou o amor de Deus diminui, porque ela jejuou por muito tempo, isto é, descuidou-se da oração e do recolhimento.

Como costumava dizer o Pe. Álvarez, a alma sem a oração deve se sentir incomodada, como uma pedra fora de seu ponto de apoio ou um peixe fora d’água. Por isso se se passou longo tempo ocupado em trabalhos que distraem, deve-se procurar tomar novamente fôlego na solidão, recolhendo-se em Deus por meio de afetos e orações.

A bem-aventurança do céu consiste na visão e no amor de Deus. Nossa felicidade na terra deve consistir igualmente em amar a Deus e contemplá-lO, não face a face, como no céu, mas pela fé, considerando-O sempre presente. Quem assim proceder alcançará uma grande confiança e um ardente amor de Deus, seu sumo bem. Para um tal começa já aqui neste vale de lágrimas a vida dos bem-aventurados no céu, que sempre vêem a Deus e, por isso, não podem deixar de amá-lO. Um tal homem despreza todas as coisas terrenas, porque sabe perfeitamente que tudo o mais desaparece em comparação de Deus; ele começa já aqui na terra a possuir aquele sumo bem que, mais que todos os outros bens, contenta os corações.

V. O Recolhimento do Redentor

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

Unida ao Verbo divino pela união hipostática, gozando constantemente a visão beatífica, a alma do Salvador estava absorta em Deus, contemplando tudo em Deus e Deus em tudo. Em seu espírito, nenhum pensamento estranho a Deus; o seu coração, abrasado do amor divino, não podia conceber afeto que não fosse para Deus.

Embora nada tivesse a temer do contato do mundo e das criaturas, que não podiam desviá-lo nem um instante de Deus, para dar-nos o exemplo e mostrar-nos como se permanece unido a Deus, Jesus foge do mundo e procura á solidão e o silêncio.

É na solidão da gruta de Belém que aparece pela primeira vez sobre a terra; mais tarde o mesmo se dá no deserto, no Egito e em Nazaré. A sagrada Família está sempre isolada e ignorada: Jesus, Maria, José vivem no trabalho, no recolhimento e na oração, longe do ruído do mundo, estranhos a tudo que se passa ao redor deles.

Durante trinta anos, Jesus permanece oculto aos olhos dos homens. E não veio ele para salvar o mundo, para arrancá-lo à barbárie, para reconduzi-lo a Deus e à virtude? Os homens estão imersos nas trevas do erro e assentados à sombra da morte: ele é a luz e a vida, a sabedoria e a verdade. Não se apressa ele em fazer brilhar a seus olhos essa luz que ele traz e em manifestar-lhes essa verdade que deve salvá-los? Tantos pecadores gemem na escravidão de Satanás, carregando as pesadas cadeias de seus pecados, seria ele insensível a seu infortúnio? Quando lhes trará a paz com o perdão? Seu Pai, enfim, é desconhecido, blasfemado, ultrajado. Não convirá fazer ecoar, o mais possível, essa voz que vingará a sua glória, que lembrará o seu poder e justiça e que, publicando as maravilhas do seu amor, lhe levará em multidões os corações transviados? Vãos arrazoados da nossa curta sabedoria e do nosso louco orgulho, Jesus Cristo não vos conheceu. Não é certamente indiferente à desgraça dos homens nem à honra de seu Pai; o seu coração, ao contrário, é abrasado dum amor infinito a seu Pai e aos homens; suspira pelo momento em que possa manifestar do modo mais refulgente esse amor, por seus trabalhos e pela efusão de seu sangue. Mas ele, a sabedoria infinita, não quer ter outras vistas que as de seu Pai, nem outros planos que os de sua paternal providência. Em Belém, no Egito e em Nazaré, onde trabalha como um pobre artífice, bem como mais tarde nas cidades e povoados da Judéia, ocupa-se dos interesses de seu Pai e trata com ele primeiro da salvação dos homens. É o que nos diz a única palavra que dele temos durante os trinta anos da sua vida oculta:

“Não devo eu ocupar-me das coisas de meu Pai?”.

E, chegada a hora marcada pelo Pai para começar a sua vida pública, fá-la ainda preceder de quarenta dias da solidão mais profunda no deserto, onde se dedica inteiramente ao jejum e à oração.

Empreende depois com divino ardor a obra gigantesca que seu Pai lhe confiou. Mas nem as preocupações da vida material, nem os trabalhos do seu apostolado, nem o movimento das multidões que se comprimem e agitam ao redor dele, nem os louvores que lhe dão, nem as blasfêmias de que o saturam, nem a agudeza dos sofrimentos e suplícios que padece: nada o pode desviar de Deus nem um instante.

Nem em as suas alocuções nem em as suas ações aparece jamais a menor preocupação pessoal, nem o menor cuidado das coisas do mundo. Jamais cai de seus lábios uma palavra que não seja de Deus e para levar a Deus. E a gravidade de seus passos e do seu porte, e a sua mansidão e calma inalterável, e a modéstia de seus olhares que conserva sempre humildemente baixo ou erguido para o céu, às vezes mesmo a veemência de suas palavras infinitamente sábias e infinitamente medidas, tudo, numa palavra, na sua pessoa e nos seus atos manifesta a união intima e constante da sua alma com Deus.

Vê-lo-ão, não obstante, arrancar-se à multidão tanto de dia como de noite, e retirar-se à solidão para se entreter a sós com seu Pai.

Que lição para as precipitações do nosso zelo muitas vezes tão imoderado por não serem suficientemente puros em suas intenções! Quando, pois, compreenderemos que, para agradar a Deus e fazer santamente a sua obra nos trabalhos do apostolado, devemos empreendê-los só quando ele quer, e enquanto ele o quer, e que mesmo então o nosso primeiro dever é conservar-nos unidos a Ele, não ter em vista senão a Sua glória, e não procurar senão o seu beneplácito e o cumprimento da Sua vontade?

“Temos nós mais a fazer ou a dizer do que o Redentor do mundo? pergunta o R. P. Bouchage. Quais que o creria quem visse nossa agitação, as nossas conversações, o nosso ardor desregrado nas coisas externas. Mas se nosso Senhor, que tinha de converter o mundo, não se distraía nem dissipava um instante, como pretenderíamos justificar o desvio dos nossos pensamentos? As mil superfluidades a que nos lançamos roubam-nos à presença de Deus e à vigilância interna do nosso espírito. Não nos iludamos; é preciso estar sempre unidos a Deus na medida do possível e deixarmos de lado o que não é do nosso dever para nos aplicar à nossa obrigação sob as vistas de Deus. É preciso, numa palavra, para quem quer imitar a Jesus, ter um espírito sempre livre e pronto a ouvir a voz do alto”

VI. A Prática do Recolhimento e do Silêncio

Para fortalecermo-nos no santo recolhimento e nos unirmos mais intimamente a Deus durante este mês em que a santa Regra nos recomenda que nos ocupemos especialmente dessa virtude, é preciso que nos recordemos em que consiste o recolhimento e particularmente o que a Regra exige de nós a esse respeito. Examinaremos, pois, com lealdade o nosso modo de cultivar o recolhimento até ao dia de hoje.

Antes de tudo é necessário saibamos se há em nós, no nosso coração ou na nossa conduta, algum obstáculo ao recolhimento; porque, enquanto esse obstáculo, se existir, não for afastado ou seriamente combatido, todos os nossos esforços serão vãos, se é que, conservando voluntariamente um obstáculo no coração, queremos fazer esforços para nos recolher.

Se, pois, descobrirmos em nós algum obstáculo ao recolhimento, que possamos afastar é necessário que o façamos desaparecer quanto antes: tal seria, por exemplo, uma atividade excessiva, sobrecarregando-nos de ocupações não determinadas pela obediência. Se se trata duma afeição, dum sentimento de que nos possamos desfazer logo, é preciso que nós resolvamos a combatê-lo com energia e por meios eficazes e bem determinados.

Depois de organizada a luta contra os obstáculos, indagar-se-ão as medidas a tomar para guardar mais habitualmente a presença de Deus, para multiplicar os retornos a Ele e se determinarão os atos pelos quais o coração se prenderá mais fortemente a Ele.

O congregado será mais particularmente previdente em precisar alguns momentos do dia em que a alma se retemperará mais no recolhimento por atos mais profundos.

Ser-lhe-á ainda bom passar em revista a diferentes ações do dia para aperfeiçoá-las sob o ponto de vista do recolhimento que os deve acompanhar. Não se deve negligenciar nenhuma.

É primeiro na oração e em todos os exercícios de piedade que devemos ter a peito estarmos perfeitamente unidos a Deus e penetrados do sentimento da sua santa presença.

Na meditação procuraremos tomar convicções fortes sobre a necessidade do recolhimento, sobre os bens incomparáveis que ele nos proporciona, sobre as funestas consequências da dissipação, etc. Gostaremos de contemplar os exemplos do divino Mestre, admirando o seu recolhimento na oração, no trabalho, nas perseguições e nos sofrimentos, etc.

Multiplicaremos ainda os atos de fé viva na presença de Deus, as súplicas ardentes para obter o recolhimento, enfim o ato enérgico para nos desprendermos das criaturas e de nós mesmos e aderirmos a Deus.

Ato e resolução: Ó Jesus, eu Vos amo e porque Vos amo é-me doce necessidade estar unido a Vós; essa união conVosco é ao mesmo tempo o contentamento do Vosso amor e do meu, e é para mim a fonte da verdadeira vida e da felicidade; porque Vos amo, quero ser semelhante a Vós na união com o Pai pelo exercício duma fé viva e dum amor generoso. Essa união me seria fácil, ó Jesus, se minha fé fosse mais viva e meu amor por Vós mais ardente, pois que sempre e em toda parte estou diante do Vosso Pai e de Vós. Mas a minha fé é fraca e lânguida, e meu amor por Vós é pouco generoso; tudo em mim e ao redor de mim conspira e se une para me afastar de Vós. Jesus dê-me mais fé, mais amor. Quero unir-me e prender-me a Vós por atos repetidos de fé e de caridade; quero banir do meu espírito todo pensamento que Vos seja estranho; do meu coração, todo afeto que não seja para Vós. Para ficar conVosco, quero fugir das criaturas e conservar-me na solidão e no silêncio tanto tempo quanto, por Vossa vontade, dele não precisar sair. Mas, Jesus dê-me força para sustentar a luta contra as criaturas e contra mim mesmo em prol do Vosso amor. Maria, minha Mãe, faça que eu viva unido a Jesus.

No correr do dia multiplicarei os retornos a Deus por orações jaculatórias e atos breves, mas fervorosos. Em certos momentos determinados, tomarei alguns minutos para reavivar o fervor da minha alma.

Antes dos exercícios de piedade é necessário à alma pôr-se em calma, afastar-se dê toda preocupação estranha, e unir-se a Deus por um ato de fé e um ato de amor.

Quanto ao trabalho, interditar-se-á toda ocupação que não for conforme a vontade de Deus. Antes de cada ação principal, purificará as suas intenções e renovará ao Senhor o oferecimento de si próprio e de toda a sua vida. Trabalhando para Jesus Cristo, a alma fervorosa lançará com frequência um olhar de amor ao divino Mestre e lhe dirigirá uma palavra do coração.

Guardará a solidão e o silêncio enquanto a caridade, a obediência ou qualquer outra virtude não a obrigarem a abandoná-la.

Os exames de consciência, enfim, registarão lealmente a fidelidade às resoluções tomadas, ou os desfalecimentos; e expiar-se-á generosamente toda negligência, embora pouco voluntária.

VII. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Eis, por fim, algumas orações de Santo Afonso para crescermos no Recolhimento e Solidão.

Oração para conseguir o recolhimento

Até aqui, ó meu Jesus, mui pouco tenho amado a vida retirada. por isso que mui pouco Vos tenho amado. Fui mendigar prazeres e consolações entre as criaturas, e estas me foram causa de perder a Vossa graça, ó Bem infinito. Quão desgraçado sou por ter conservado o meu coração entregue, durante tanto tempo, à dissipação, ocupado tão somente em gozos terrestres, e vivendo no esquecimento do meu Deus! Ah! Meu Jesus, apoderai-Vos do meu coração, que à custa do Vosso sangue resgatastes; inflamai-o no Vosso amor, e possuí-o todo, todo.

Oração a Maria

Ó Virgem santa, obtende-nos o amor da oração e solidão, a fim de que, desprendendo-nos das criaturas, possamos aspirar a Deus só e ao paraíso, onde esperamos ver-vos um dia, pará louvar e amar sem cessar convosco o vosso Filho Jesus, pelos séculos dos séculos. Assim seja.

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(OMER C.SS.R., Padre Saint. Escola da Perfeição Cristã para Seculares e Religiosos: Obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja. Editora Vozes, 1955, p. 251-267)

(AZEVEDO C.SS.R., Padre Oscar das Chagas. As Doze Virtudes para cada Mês do Ano. Editora Vozes, p. 191-207)

(OMER C.SS.R., Padre Saint. As Mais Belas Orações de Santo Afonso: Edição atualizada e acrescida de novos exercícios e orações. Editora Vozes, 1961, p. 311-312)