Sermão para o 2º Domingo depois da Epifania
SUMÁRIO
Exórdio. – Jesus Cristo une-se às almas fiéis por vias misteriosas; e eis o motivo porque tantas vezes lhe chamam, e com razão, o divino Esposo das almas.
Proposição e divisão. – O orador tira o assunto do seu sermão da história milagrosa das bodas de Caná. Desenvolve sucessivamente três pensamentos principais que lhe são sugeridos pela conversão da água em vinho. Jesus Cristo transformou:
1.° O símbolo em realidade;
2.° A letra em espírito;
3.° A lei de rigor em lei de misericórdia e de amor.
1.º Ponto. — Pelo milagre das bodas de Caná, quis Jesus Cristo fazer-nos compreender quê, do mesmo modo que convertia a água em vinho, convertia também o símbolo em realidade. No Antigo Testamento tudo é simbólico, no Novo tudo é real; e assim como o símbolo não pode existir sem a realidade, assim todas as Escrituras proféticas não teriam razão alguma de ser, e até nos pareceriam às vezes bem extravagantes, se nelas não se destacasse a figura de Jesus Cristo. São águas sem ímpeto e sem sabor, frias e languidas, que de repente se convertem num vinho generoso, sob a divina influência de Jesus Cristo
«A lei é, pois, um Evangelho oculto; e o Evangelho é a lei explicada»
2.º Ponto. — Deus mandará dizer pelo seu profeta:
«Eu hei de inspirar-lhes nas almas a minha lei, e hei de escrevê-la, não em tábuas de pedra, mas nos seus corações» (Jr 31, 31)
E na verdade, com Jesus Cristo, o Espírito de Deus apoderou-se dos nossos corações por uma caridade sinceríssima, por um poderoso amor que Ele nos inspira, e por uma bondade santa e arrebatadora. A lei antiga ordenava, mas não vivificava, mas não atraía; impunha-se ao espírito pelo raciocínio, mas não ao coração pela caridade; impressionava profundamente os ouvidos, como diz Bossuet, mas não comovia o coração. A lei nova, pelo contrário, entusiasma-nos com um divino fervor, alenta-nos, aquece-nos com benditos arderes.
3.º Ponto. — A lei antiga é uma lei de receio e de rigor; os seus transgressores eram punidos impiedosamente; e Deus oprimia-os muitas vezes com eternas maldições. A lei nova é uma lei toda de amor.
Peroração. — Nós já não estamos sob o império da lei do temor, estamos sob o império da lei do amor. Sirvamos a Deus com um amor liberal e sincero. E vós, sobretudo, neófitas, rendei-lhe eternamente as vossas ações de graças.
Nuptiae factae sunt in Cana Galilaeae, et erat mater Jesu ibi. Vocatus est autem et Jesus et discipuli ejus.
Celebrava-se uma boda em Caná da Galileia e a mãe de Jesus estava lá. Jesus e os seus discípulos também foram convidados para a boda (Jo 2, 1 e 2)
Jesus com sua santa Mãe e com os seus discípulos: Que companhia, amadas irmãs! Foram convidados para um banquete, e que piedoso banquete! Para um banquete nupcial, e que bodas misteriosas! Mas nesse banquete falta o vinho; o vinho, a que os caprichosos chamam a alma dos banquetes. Será isto avareza? Será pobreza? Será negligencia? Ou não será antes qualquer mistério que o Espírito Santo nos propõe para exercitarmos a nossa inteligência? Certamente deve ser isto, caríssimas irmãs. Porque eu vejo que o Salvador, para suprir essa falta, converte a água em vinho excelente, e esse vinho é servido no fim do banquete com grande admiração dos assistentes. Ó vinho admirável e cheio de mistério, fornecido pela caridade de Jesus, aos rogos da Virgem Maria! Dizei-me, irmãs, que interesse tem o sóbrio Mestre em que haja vinho nessa reunião. Era coisa que merecesse a intervenção da Sua omnipotência? Era em semelhante conjuntura que Ele devia começar a manifestar a Sua glória, constituindo uma obra desta natureza o Seu primeiro milagre? Parece-vos que haja nisto mistério? Deus não há de querer, almas cristãs, que façamos tal conceito do nosso Salvador! Ele é a Sabedoria e a Palavra do Eterno; porque todos os Seus discursos e todas as Suas ações denunciam espírito e vida. Tudo é luz na Sua pessoa, tudo nEle é inteligência, tudo nEle é razão. Ó eterna Sabedoria, alumiai como vosso Espírito Santo a nossa razão fraca e impotente, a fim de compreendermos a vossa.
Nesta história milagrosa, tudo me faz ver Jesus Salvador. Vejo-o propriamente em corpo; mas também o vejo mais em mistério. Segundo a verdade histórica, é Ele convidado a banquetear-se; mas, segundo a verdade do mistério, e se bem o soubermos compreender, é Ele propriamente o Esposo. É sabido que Jesus é o Esposo das almas fiéis; contudo, se m’o permitis, deduzir-vos-ei sobre este ponto algumas verdades cristãs maravilhosamente piedosas.
Deus ocupa o céu e a terra, encontra-se em todos os lugares, como diz a teologia; mas também sabe comunicar-se duma maneira muito particular às criaturas inteligentes: Ad ipsum veniemus, et mansionem apud eum faciemus – «Nós viremos a ele e nele faremos morada» (Jo 14, 23). É realmente incompressível, irmãs, como a natureza divina se une aos espíritos puros por meio de castos amplexos; e se bem que isto seja, um segredo inefável, é-o todas as vezes que as Escrituras divinas no-lo representam de diversas maneiras e por símbolos diferentes. Umas vezes dizem que Deus é uma fonte de vida que derramando-Se em nossas almas, as lava e purifica, comunicando-lhes uma divina fresquidão e saciando-lhes a sede ardente com as ondas das verdades: Fons aquae salientis… (Jo 4, 14). Quemadmodum desiderat cervus ad fontes aquarum (Sl 41, 2). Outras vezes descrevem-no-lo assim como um dúlcido orvalho que, à semelhança dum fecundo regato, banha o nosso espírito e nEle faz germinar as sementes celestes: Rorate, caeli desuper (Is 45, 8). E ainda outras representam-nos Deus à maneira dum fogo consumidor que, penetrando todas as nossas forças, devora todas as afeições desconhecidas e purifica as nossas almas como o ouro num foco calorífico: Ignis consumens est (Dt 4, 24).
Dizem-nos noutro lugar que Deus é um alimento admirável; porque assim como todas as partes do nosso corpo atraem a si uma certa substância sem a qual desfaleceriam, e depois se incorporam nela pela virtude dum secreto calor que a natureza lhes deu, assim também as nossas almas seriam destituídas de todo o vigor, se por fiéis desejos que o Espírito Santo lhes excita, não atraíssem a si essa verdade eterna que por si só é capaz de as sustentar. É o que nos é significado por esse pão angélico que se converteu em pão humano:
«Pão celeste que desejamos por um apetite de vida eterna, que tomamos pelo ouvido, que ruminamos pelo entendimento e que digerimos pela fé» – In causam vitae appetendus, et devorandus auditu, et ruminandus intellectu, et fide digerendus (Tertul., De Ressurr. Carnis, n.)
Tais são pouco mais ou menos as comparações de que se servem as Escrituras para nos fazer compreender em certo modo essa santa união da natureza divina com as almas, eleitas. Mas de todas essas comparações a mais grata, a mais agradável e a mais comum nas Epístolas Sagradas, é aquela em que o nosso sublime Deus é comparado a um casto esposo, que, por um sentimento de misericórdia, embevecido no amor das nossas almas, depois de mil amorosas carícias, depois de mil provas das Suas santas inspirações, se une finalmente a elas por amplexos inefáveis, e, enlevando-as com uma certa dulcidão que o mundo não pode compreender, as repassa dum gérmen divino que frutifica em boas obras para a vida eterna.
Três condições são necessárias para satisfazer ao matrimônio. União: Erunt duo in carne una (Gn 2, 24). Dulcidão: Faciamus adjutorium (Gn, 2, 18); se Ele está só, «demos-lhe um auxílio: é complacente ser auxiliado». Fecundidade: Crescite et multiplicamini (Gn 1, 28). É o que o apostolo São Paulo nos ensina, quando diz aos cristãos que, assim como o marido e a mulher são uma e a mesma carne, assim também «o que se associa a Deus é um e o mesmo espírito» – Qui adhaeret Domino unus spiritüs est (1 Cor 4, 17); doutrina que o santo apóstolo achou para as nossas almas, repetindo-a em tantos lugares que muito tempo levaria a relatar-vo-los.
Ora, visto que declinamos dessa primeira pureza que nos igualava aos anjos na inocência da nossa origem, porque nos tornamos sensuais e grosseiros, não poderíamos por mais tempo conservar a semelhança com a natureza divina, se ela primeiramente se não tivesse aviltado. E foi por isso que o Filho de Deus, igual e consubstancial a seu Pai, para chamar as almas humanas, esse feliz matrimônio com Deus, cuja santidade tinham violado pela infâmia do seu adultério, foi por isso que Ele desceu do céu à terra e encarnou e abdicou essa terrível majestade, ou antes lhe empanou o brilho, e tomou as nossas imperfeições, a fim de se igualar a nós em certo modo, e quis que, pela natureza humana que Ele se dignou de tomar para se confundir conosco, achássemos um caminho seguro para a natureza divina, da qual nos tínhamos afastado por uma funesta desobediência.
É esse caritativo Esposo da Igreja, isto, é, das almas fiéis, que o Apóstolo nos descreve, aos Efésios, capítulo 5: É o mais belo dos filhos dos homens que amou uma esposa feia, a fim de a tornar formosa. Veio busca-la à terra, a fim de a conduzir em triunfo para a pátria celestial. Deu a sua alma por ela, lavou-a com o seu sangue, purificou-a na água do batismo com palavras de vida, deu-lhe por dote o seu reino, e por adorno as suas graças. É esse Esposo, amadas irmãs, que opera hoje o seu primeiro milagre e representa nesse primeiro milagre o que veio fazer a este mundo. Os seus discípulos creem nEle neste dia; porque Ele é o principio da sua Igreja. Guarda o seu melhor vinho para o fim do banquete; é como que o Evangelho para a última idade, que deve durar até a consumação dos séculos. Esse vinho tira-o Ele da água, e converte essa água em vinho, como converte a lei no Evangelho, isto é, o símbolo em verdade, a letra em espírito, o terror em amor. Digamos alguma coisa dessas três conversões; mas digamos apenas os pontos capitais, por causa do pouco tempo de que dispomos. O resto ficará entregue à vossa meditação.
PRIMEIRO PONTO
É a respeito dEle que se achá escrito no Gênesis, capitulo II, «que o homem deixará seu pai e sua mãe para se ligar a sua mulher» (Gn 2, 24). Ora, para falar como é de uso em coisas humanas, a mulher é que, pelo contrario, deixa a casa paterna para ir viver com seu marido. Mas, segundo a inteligência espiritual, Jesus é esse homem por excelência que deixou seu Pai e sua Mãe para se ligar a sua querida esposa. Deixou em certo modo seu Pai, quando desceu do céu à terra, para tornar a juntar-se com Ele, conforme o disse em diferentes lugares. Deixou na sinagoga, sua mãe, que o tinha gerado carnalmente, para se ligar à Igreja, sua única esposa, que Ele tirou das nações idólatras.
Haveis, pois, de saber, irmãs, que sendo Jesus o termo de todas as obras de Deus, tudo o que de extraordinário se fez desde a origem do mundo foi apenas em atenção para com Ele. Lede as Escrituras divinas e em toda a parte vereis o Salvador, se tiverdes os olhos bastantemente purificados. Não há página onde Ele não exista. Encontra-se no paraíso terreal, encontra-se no dilúvio, encontra-se na montanha, encontra-se na passagem do Mar Vermelho, encontra-se no deserto, encontra-se na Terra prometida, nas cerimônias, nos sacrifícios, na Arca e no Tabernáculo; em toda a parte se encontra, mas simbolicamente. E então aprouve ao nosso sublime Deus, como diz o Apóstolo aos Gálatas (Gl 4, 3) elevar-nos pouco a pouco, como as crianças, até ao conhecimento dos seus mistérios. Por uma infinidade de exemplos sensíveis, soterrados durante muitos séculos, por semelhanças de coisas corporais que impressionavam a nossa imaginação, guiou-nos Ele suavemente para a inteligência das Suas verdades e fez-nos compreender as grandes coisas que Ele preparava para a nossa salvação. Considerai, por quem sois, todo este grande aparato da lei mosaica. Para que sobrecarregar esse pobre povo de tantas cerimônias diferentes, que todas eram muito laboriosas, e, não obstante, muito incapazes por si só de tornarem o homem mais agradável a Deus? Porque é evidente, caríssimas irmãs, que nem tantas purificações corporais, nem todos esses banhos externos, nem esse número infinito de penosas observações, nem o aroma do incenso ou da gordura queimada, nem o sangue dos animais mortos eram coisas que por si só pudessem agradar ao nosso sublime Deus, que, visto ser um espírito puro, quer ser adorado em espírito e em verdade. Mas EIe ordenava todas as coisas, para que todo este pomposo fausto e Ioda esta majestade exterior da religião judaica fossem símbolos do seu amado Filho; e era esta consideração que lhe tornava estas coisas agradáveis temporariamente, se bem que elas fossem indiferentes por sua natureza. Por isso, como diz o Apóstolo; desde a origem do mundo até à ressurreição do Salvador, «tudo acontecia em figura a nossos pais» – Omnia in figuris contingebant ilis (1 Cor 10, 11). É por isso que o admirável Santo Agostinho diz que nem na lei da natureza, nem na lei mosaica, vê coisa alguma que seja agradável, se nelas se não manifestar o Salvador. Tudo é displicente; é uma água insípida, se não for convertida nesse vinho celestial, nesse vinho evangélico que se guarda para o fim do banquete, esse vinho que Jesus preparou e que extraiu da Sua vinha eleita. Vou narrar-vos alguns feitos da história antiga, e vereis quanto ela é insípida, se nela não ouvirmos o Salvador. Diremos alguns dos mais notáveis com o douto Santo Agostinho (De Genes. ad Litter., lib. IX, cap. XIII, n. 23), porque, se contássemos circunstanciadamente tudo o que nos fala do nosso Salvador; não chegariam os anos para tanto.
Vede no Paraíso terreal esse homem novo que Deus fez a seu bel-prazer. Sobre ele faz descer um sono profundo, para formar duma das suas costelas a companheira que lhe destinava. Dizei-me, diz Santo Agostinho, que necessidade havia de o adormecer para lhe tirar essa costela? Seria talvez com o fim de lhe diminuir a dor? Ridículo motivo seria este! Mas como esta história é pouco agradável! Como esta água é insípida, se Jesus a não converter em vinho! Acrescentai-lhe o sentido espiritual, e vereis o Salvador, cuja morte origina a Igreja; morte que é semelhante ao sono, por causa da Sua pronta ressurreição e da tranquilidade com que Ele voluntariamente a sofreu. A Sua morte dá, portanto, origem à Igreja. O primeiro Adão é privado duma costela para com ela ser formada sua mulher durante um sono muito misterioso; e durante o sono do novo Adão, depois que Ele fechou os olhos com a mesma paz com que os homens adormecem, é-lhe aberta a ilharga com uma lança, e imediatamente brotam os Sacramentos com os quais é regenerada a Igreja. Que direi agora de Noé, que, só por si, restaurou o mundo sepultado nas águas do dilúvio, e que repovoou o gênero humano com o pequeno número de homens que faziam parte da sua família ? Não foi o Salvador, o único reparador da humanidade, que, com doze homens que envia por toda a terra, povoou o reino de Deus e encheu o mundo duma nova raça? Que direi do moço Isaac que é o próprio portador da lenha sobre que deve ser imolado, enquanto o seu próprio paí se prepara, segundo as ordens de Deus, para o sacrificar sobre a montanha? Ó espetáculo desumano! Mas se nele se considerar Jesus, converte-se num espetáculo de misericórdia! Agora é o Salvador que leva a cruz para ser imolado no monte Calvário, entregue por seu próprio Pai nas mãos dos seus inimigos, a fim de constituir uma hóstia viva para a expiação dos nossos crimes.
E o casto José, vendido pelos irmãos e preso pelos egípcios, convertido por este infortúnio no salvador dos irmãos e dos egípcios, não é Jesus submetido à morte pelos judeus, isto é, pelos idólatras, e convertido, por sua morte, em Salvador dos judeus e dos idólatras? Se eu passar o mar Vermelho com os israelitas, se com eles permanecer no deserto, quantas vezes verei o Filho de Deus, único guia do seu povo no deserto deste mundo, que retirando-os do Egito por meio da água do Batismo, os conduziu à Terra prometida! Esse maná tão delicioso, que é senão uma carne corporal, se eu não sentir no paladar o gosto do Salvador? Acho-a insípida; pouco falta para que eu diga com os judeus:
«Estamos enjoados com essa carne ordinária» (Nm 21, 5)
Mas quando nela aprecio o Salvador, verdadeiro pão angélico, verdadeiro alimento das almas fiéis, que nós comemos à mesa sagrada, ah! Como então é agradável ao paladar, como então é saborosa! Vede o lajeado do templo; vede as vestes sacerdotais; vede o altar e santuário todo banhado com o sangue das vítimas, e o povo israelita lavado tantas vezes com esse mesmo sangue; como tudo isso é gélido, amados irmãos, se a fé não me mostrar o sangue do Cordeiro derramado para remissão dos nossos crimes, esse sangue do Novo Testamento que nós oferecemos a Deus nesses terríveis altares, e de que nos saciamos para a vida eterna!
Enfim, diz Santo Agostinho (Tract. IX in Joan., n. 3), se não considerarmos Jesus Cristo, todas as Escrituras proféticas são insulsas; são aparentemente extravagantes, pelo menos em certos lugares. Mas se nelas apreciarmos o Salvador, tudo então é luz, tudo é inteligência, tudo é razão. Vede esses dois discípulos que vão a Emaús. Falavam da redenção de Israel, que é o assunto de toda a lei antiga, mas não compreendiam os mistérios do Redentor. Era uma água sem energia e sem sabor, como frios e languidos eram os mistérios.
«Nós esperávamos, diziam eles, que fosse Ele o que remisse Israel» (Lc 21, 5)
Esperávamos é uma palavra gélida. O que vemos é Jesus aproximar-se deles, percorrer todas as profecias, orientá-los no mistério, na significação profunda e misteriosa, converter a água em vinho, os símbolos em verdade e a obscuridade em luz. E ei-los que ficam imediatamente transportados:
Nonne cor nostrum ardens erat in nobis – «Não ardia o nosso coração dentro de nós» (Lc 24, 32)?
É que eles tinham começado a beber o vinho novo de Jesus, isto é, a doutrina do Evangelho. Todavia admirai, caríssimos irmãos, os salutares conselhos da Providência, que por uma tal riqueza de exemplos nos ensina uma única verdade, que é o Verbo encarnado. Ah! Se tivéssemos os olhos bem abertos, seria um espetáculo muito agradável ver que não há página, nem palavra, nem por assim dizer traço ou virgula da lei antiga que não fale do Salvador! A lei é um Evangelho oculto.
O Evangelho é a lei explicada; os filósofos dizem-nos que o vinho não é mais que uma água colorida, que recebe, ao passar pela vinha, uma certa impressão das suas qualidades, porque esse elemento é susceptível pela sua natureza de todas as alterações desconhecidas. Por isso a água da lei antiga converte-se no vinho da nova lei. E é essa mesma água da lei mosaica, que, sendo apropriada a Jesus Cristo, verdadeira vinha do Pai Eterno, toma uma nova forma e uma nova energia. Por consequência, irmãs, passemos as noites e os dias a meditar na lei do Senhor. Procuremos Jesus em toda a parte, e não haverá sítio onde Ele se não encontre. E visto que aprouve ao nosso sublime Deus oferecer-nos esse novo vinho do seu Evangelho, mas puro e sem mistura, limpo das fezes dos símbolos e da água das expressões proféticas, não tendo daí por outra bebida senão esse sagrado e imortal licor, oxalá que o nosso espírito experimente sempre o gozo da palavra divina.
Mas não nos detenhamos na letra; libemos o espírito vivificador que Jesus nela ensinou com a Sua graça. É o que constitui a nossa segunda parte, e, para maior brevidade, ligaremos também a terceira numa mesma ordem de raciocínio.
SEGUNDO E TERCEIRO PONTO
Não poder eu transportar-vos em espírito a esse terrível monte onde se mostra a majestade do Senhor! É o monte Sinai em que Deus dá a Sua lei a Moisés. Ali vejo esse sublime Deus Omnipotente, gravando na pedra as Suas santas leis, dignas de serem escritas na maior altura dos céus com os ardentes raios do sol. E depois disso, pela boca do Seu servo Moisés, manda anunciar ao Seu povo as Suas ordens, e ameaça os transgressores com punições que causam horror só de as contar. Em verdade, essa lei é sacratíssima; não vos convençais, caríssimas irmãs, de que ela contenha a vida. Todas essas palavras majestosas e essa Escritura do dedo de Deus não são mais que um instrumento de morte, se não forem acompanhadas do espírito da graça. «É uma letra que mata», diz o grande apóstolo São Paulo (2 Cor 3, 6).
Quantas almas presunçosas foram precipitadas na morte eterna por esses augustos preceitos! Não vos admireis dessa palavra, que é a doutrina do apóstolo São Paulo, cuja verdadeira explicação é esta: A lei indicava perfeitamente o que era necessário fazer, mas não valia à impotência da nossa natureza. Impressionava profundamente os ouvidos, mas não comovia o coração.
Não era suficiente que Deus, com voz trovejante e imperiosa, fizesse anunciar ao povo os Seus desígnios; era preciso que Ele falasse interiormente e que, por uma poderosíssima operação, abandonasse a nossa dureza.
Deus eterno e sublime, vós ordenais-me; é justo que sejais obedecido; mas de que me valem as Vossas ordens se me não derdes a graça por meio da qual eu possa observar os Vossos preceitos? Ora essa graça não é a lei; é o próprio dom do Evangelho, porque diz o apóstolo São João que «a lei foi dada por Moisés, e a graça e a verdade foram feitas por Jesus Cristo» (Jo 1, 17) . Que é então que fazia a lei? Ela ordenava, exigia, oprimia os transgressores com eternas maldições, porque «amaldiçoado será o que não observar as palavras que estão escritas neste livro» (Dt 27, 27); mas não aliviava em coisa alguma as nossas enfermidades. Era uma água languida e sem energia, capaz de nos agitar, mas incapaz de nos manter.
É por isso que o Salvador, compadecendo-se da nossa impotência, vem dar-nos um vinho duma celestial energia, que é a Sua graça, que é o Seu Espírito Santo que embriagou os apóstolos no dia de Pentecostes. É esse santo e divino Espírito que conduz a lei até ao íntimo dos nossos corações, e neles a grava em caracteres de fogo. Até anima interiormente e dá-lhe uma força vivificadora; converte a letra em espírito, sendo esta a nova aliança que Deus contrai conosco pelo Seu Evangelho. É por esta razão que, falando pela boca de Jeremias, Ele diz: «Eis que eu hei de estabelecer com a casa de Judá um novo testamento, não como o que estabeleci com seus pais, que não ficaram no meu testamento, porque eu os desprezei, diz o Senhor, mas um testamento novo que eu hei de dar à casa de Israel» (Jr 31, 31ss), isto é, aos verdadeiros filhos de Israel e ao povo da nova aliança, e que é concebido nestes termos:
«Hei de inspirar-lhes nas almas a minha lei, e hei-de escrevê-la, não em tábuas de pedra, mas nos seus corações; e eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus»
Que virtude maravilhosa é essa que entra Ião profundamente nos nossos corações? Donde vem a essa nova lei essa força tão penetrante? Vem do Espírito de Deus, amadas irmãs, que é o verdadeiro motor das nossas almas, o diretor dos nossos corações, o guia dos nossos desejos. Mas por que espécie de operações a conduz Ele assim até ao íntimo de nós mesmos? É por uma caridade sinceríssima, por um poderoso amor que Ele nos inspira, por uma casta deleitação e por uma bondade santa e arrebatadora.
Deus exerce duas espécies de operações nas nossas almas, que estabelecem a diferença das duas leis. Em primeiro lugar, amedronta-as, enche-as do terror dos Seus juízos; e em segundo lugar, atrai-as, inflama-as dum amor sagrado. A primeira operação, que é o temor, não pode penetrar até ao íntimo das nossas almas: assombra-as, agita-as, mas não as altera. Suponhamos que encontrais uns ladroes. Se fordes o mais forte, eles apenas se acercarão de vós com uma aparência de civilidade simulada; mas nem por isso deixam de ser ladrões e de ter a alma ávida de carnificina e de pilhagem. O receio abafa os sentimentos e parece reprimi-los; mas não lhes corta a raiz. Vede essa pedra em que Deus escreveu a Sua lei; acha-se alterada por ter em si palavras tão santas? É por isso menos dura? Não. Esses preceitos sagrados apenas existem numa superfície exterior. O mesmo se dá com a lei de Deus. Quando não entra em nossas almas senão pelo terror, impressiona apenas a superfície; e enquanto apenas houver esse temor servil, não pode o íntimo ser convenientemente alterado. Só o amor que entra no recôncavo dos arcanos dos nossos corações, só ele tem a chave das nossas almas e só ele lhe modera os movimentos. Se tiverdes más inclinações ou sentimentos desregrados, nunca eles poderão ser expulsos senão por inclinações contrárias, senão por um santo amor, senão por castos sentimentos do verdadeiro bem; e então a alma modificar-se-á por completo. O amor dilata-a por um certo fervor, abre-a até ao íntimo para receber o orvalho das graças celestes. Já não é uma pedra em que se escreve externamente, é uma espécie de cera penetrada e derretida por um calor divino. É assim que o Salvador se acha verdadeiramente gravado em todas as faculdades das nossas almas. Encontra-se na nossa vontade inteiramente transportada pelo Seu santo amor. Encontra-se na memória, porque ninguém pode esquecer o que ama. Encontra-se no entendimento, porque o amor curioso e diligente não tem outra satisfação a não ser a de contemplar as perfeições do objeto amado que o atrai. Daí passa aos corpos pelo exercício das virtudes e por sagradas operações que, originando-se no amor de Jesus, conservam todos os seus caracteres.
Tal é, caríssimas irmãs, o espírito da nova lei. É por isso que Deus não nos aparece com esse aspecto terrível que tinha no monte Sinai. Além, fumegava esse monte com a majestade do Senhor, que «faz distilar os montes como cera» (Sl 96, 5); aqui não esmagará sequer uma cana partida (Mt 12, 20), porque é todo clemente e todo benigno. Além apenas se ouve o ribombo dum longo e horrível trovão; aqui ouve-se uma voz doce e afável:
«Ficai de mim sabendo, diz Ele, que sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29)
Alem é proibida a aproximação sob pena de morte:
«Não vos aproximeis; diz Ele, senão morrereis; e os homens e os animais que se aproximarem do monte, morrerão fatalmente» (Ex 19, 12-13)
Aqui varia Ele de linguagem: «Vinde, vinde», diz Ele (Mt 11, 28, et alibi), aproximai-vos, não vos arreceeis, meus filhos; vinde a mim, oprimidos, que eu vos aliviarei e vos ajudarei a levar os vossos fardos; vinde a mim, enfermos, que eu vos curarei; pecadores, publicanos, aproximai-vos, que eu sou o libertador; deixai vir a mim os pequeninos, porque deles é o reino de Deus (Mc 10, 14).
Porque há esta mudança na linguagem, caríssimas irmãs? Ah! É que Ele quer que o amem sobre todas as coisas. Vem converter o terror em amor; essa água fria do receio, que oprimia o coração com uma baixa e servil timidez, num vinho dum divino fervor que o há de encher de contentamento, que o há de alentar, e que o há de aquecer com benditos ardores. É este o espírito da nova lei. Já vos disse as conversões que fez o Salvador. A água é insípida; assim era a lei nos seus mistérios e nos seus símbolos, se Jesus a não convertesse na verdade do seu Evangelho, vinho doce e saboroso que nos enche de delícias celestes. A água não tem energia para nos excitar; assim era a lei pela sua letra inútil e impotente, se não fosse acompanhada do vinho da nova lei, isto é, do espírito da graça. Estas duas primeiras conversões dão origem a uma terceira. Por mui longo tempo e bastantemente bebemos esse gélido terror; mas já é tempo dos nossos corações se aquecerem ao fogo do amor de Deus.
Irmãs, agora já não estamos sujeitos à lei do temor; estamos sob o império da lei do amor, porque deixamos de viver na servidão, para ficarmos vivendo na liberdade dos filhos de Deus. E quem nos libertou foi Jesus, que é a própria verdade; por consequência, sirvamos ao nosso Deus com amor liberal e sincero. Amemos a justiça, amemos a verdade, amemos a verdadeira e a sólida razão, amemos o único repouso, porque tudo isto é Jesus; e então devemos amar a Jesus com todo o afeto das nossas almas. E atrevo-me a dizer que quem não ama a Jesus não é cristão. Um cristão é um homem regenerado; e nós não podemos ser regenerados sem o espírito da nova lei. Ora o espírito da nova lei é a caridade; e quem não tem caridade não é cristão.
Ah! Como o século folga na devassidão e nos banquetes, e nos deliciosos e capitosos vinhos! Nós temos um vinho com o qual nos é permitido embriagar-nos; vinho que nos aquece, mas com um ardor muito espiritual; que nos faz cantar, mas são cânticos de amor divino; que nos dá o esquecimento, mas é do mundo e das vaidades; que nos excita um grande júbilo, mas um júbilo que o mundo não compreende. Bebamos desse vinho, caríssimas irmãs, porque noite e dia não respiraremos senão essência de Jesus, E, vós, particularmente, a quem Ele retirou do século, experimentai o gozo de Jesus na solidão, porque é assim que Ele se comunica com as almas fiéis.
A vós, amadas irmãs, a quem Ele, por Sua infinita misericórdia, libertou milagrosamente das trevas da heresia, a vós é que eu me dirijo. E que palavras poderiam exprimir-vos a ternura que o meu coração sente por vós. Rendei-lhe eternamente as vossas ações de graças! Vede como por toda a cidade o erro se acha espalhado. Deus escolheu dentre vós duas ou três que chamou à sua Santa Igreja; e por isso não sejais ingratas a esse inestimável beneficio. Perseverai nessa ditosa vocação. Vede a pureza, vede a inocência e a candura dessas filhas de Deus com quem conversais. Que diferença dessa verdadeira devoção que elas vos ensinam com toda a humildade e simplicidade para o fausto, para o orgulho e para a falsa piedade da heresia! Perseverai, caríssimas irmãs, não atendais a lágrimas nem a recriminações de vossos pais. Deus vos conceda a graça de experimentardes quanto a santa casa é mais agradável do que a casa paterna! Vede esses temíveis altares: os Sacramentos que neles ministramos não são mistérios nem símbolos, porque já não estamos sujeitos à lei judaica; é a realidade, é à verdade, é a própria carne de Jesus, outrora por nós dilacerada; é o seu sangue vivificador derramado por amor de nós. Gozai das delícias dessa carne de que a heresia se privou para se iludir com a vaidade duma cena imaginaria, etc.
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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume I. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo I, p. 352-369)