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A Virtude da Mortificação

Compre a coleção As 12 Virtudes para cada mês do ano, na Editora Rumo à Santidade
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Mês de Setembro: A Virtude da Mortificação

Mês de Setembro

Breve introdução sobre a Mortificação e o Apóstolo Patrono

Nunca percas de vista esta bela sentença de Santa Teresa:

“Quem julga que Deus admite à sua amizade pessoas que amam a comodidade, engana-se redondamente”

“Os que são de Cristo, crucificaram sua carne com seus vícios e concupiscência”, diz o Apóstolo (Gl 5, 24). Por isso considera como uma dádiva divina toda a ocasião de te mortificares e não deixes passar nenhuma sem te aproveitares dela.

Reprime teus olhos e não os detenhas em coisas que satisfazem unicamente a curiosidade. Evita toda conversação em que se trata unicamente de novidades ou de outras coisas mundanas. Esforça-te sempre em mortificar o paladar: nunca comas e bebas unicamente para contentar tua sensualidade, mas só para sustentar teu corpo. Renuncia voluntariamente aos prazeres lícitos e dize generosamente, quando ouvires falar das alegrias do mundo:

“Meu Deus, só a Vós eu quero e nada mais”

Faze com fervor todas as mortificações externas que a obediência e as circunstâncias permitirem. Se não puderes mortificar teu corpo com instrumentos de penitência, pratica ao menos a paciência nas doenças, suporta alegremente toda incomodidade que consigo traz a mudança do calor e do frio; não te queixes quando te faltar alguma coisa, alegra-te antes quando te faltar até o necessário.

Mas principalmente a mortificação interna é que deves praticar, reprimindo tuas paixões e nunca agindo por amor-próprio, por vaidade, por capricho, ou por outros motivos humanos, mas sempre com a única intenção de agradar a Deus. Por isso, enquanto, possível, deves te privar daquilo que mais te agradar e abraçar o que desagrada a teu amor-próprio. Por exemplo: quererias ver um objeto: renuncia a isso justamente por te sentires levado a contemplá-lo; sentes repugnância por um remédio amargo: toma-o justamente por ser amargo; repugna-te fazer benefícios a uma pessoa que se mostrou ingrata para contigo: faze-o justamente porque tua natureza se rebela contra isso. Quem quer pertencer a Deus, deve se violentar incessantemente e exclamar sem interrupção:

“Quero renunciar a tudo, contanto que agrade a Deus”

Em resumo, portanto:

Pela mortificação interior nos aplicamos a domar as nossas paixões, principalmente a que mais predomina em nós. Não vencer uma paixão dominante é pôr-se em grande perigo de se perder.

Pela mortificação exterior negamos aos sentidos as satisfações que desejam. É necessário, portanto, mortificar:

1. Os olhos, abstendo-nos de ver objetos perigosos.

2. A língua, fugindo das maledicências, palavras injuriosas ou impuras.

3. A boca, evitando todo o excesso no comer e beber, e praticando até algum jejum e abstinência.

4. O ouvido, negando-nos a dar ouvidos a discursos que ferem a modéstia ou a caridade.

5. O tato, usando de precaução quer conosco quer nas relações com outros.

Sumário
I. A sua natureza
II. Da Mortificação Externa
III. Da Mortificação Interna
IV. A Mortificação e o Redentor
V. A Prática da Mortificação
VI. A Prática da Mortificação Externa
VII. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Mês de Setembro: A Virtude da Mortificação. Apóstolo Patrono: São Mateus
Mês de Setembro: A Virtude da Mortificação. Apóstolo Patrono: São Mateus

I. A Natureza da Mortificação

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

Antes do pecado reinava no homem a mais perfeita ordem. Submissa a Deus, a razão era obedecida por todas as potências inferiores, e o coração, naturalmente reto, voltava-se para Deus, amando-O sobre todas as coisas.

Mas o pecado veio perturbar essa bela ordem. Revoltada contra Deus, a razão tomou-se alvo da revolta dos sentidos e das paixões; e toda a pobre natureza humana se acha transtornada e pervertida. Em vez de voltar-se para Deus, volve-se sem cessar para si mesma e pretende viver só para si mesmo; todos os seus instintos, procurando satisfazer-se, arrastam-na longe de Deus, para o mal: é a vontade própria com suas teimosias, a imaginação com suas loucuras, os sentidos com sua embriaguez, as paixões com seus ímpetos.

A natureza só tem por fim a si própria, diz a Imitação; mas a graça age em tudo unicamente para Deus, no qual repousa como em seu fim último (L. III, c. 54).

A alma que quer ser de Deus deve, pois, empreender a sujeição dessa natureza pervertida pelo pecado; não deve segui-la em coisa alguma, mas dominá-la e subjugá-la em tudo, a fim de submetê-la totalmente ao domínio da graça: eis o papel da mortificação. Pela mortificação a alma doma todas as suas potências, todas as suas faculdades, tornando-as aptas para receber o impulso da graça e elevar-se a Deus pela prática da caridade e de todas as virtudes.

Não dizemos que a mortificação deve destruir a natureza, mas domá-la, subjugá-la e submetê-la em tudo. Não julgamos que cada um dos movimentos da natureza seja mau ou culpado em si mesmo. Ela, porém, propende para o mal; deixando-a livre, é sempre de se temer que ela abuse de sua liberdade para seguir seus maus instintos. De resto devemos esforçar-nos por santificar, sobrenaturalizar as menores particularidades da nossa vida e das nossas ações mais indiferentes, como os nossos passatempos, as nossas refeições, o nosso repouso, vivificando-os por um motivo sobrenatural, por uma intenção santa.

Seja-nos permitida uma comparação familiar. Apresentam a um hábil cavaleiro um cavalo fogoso, porém indômito e até manhoso. Não o recusa nem o bate sob o pretexto de que tem graves defeitos; dispõe-se, ao contrário, a domá-lo e fazer dele um animal de sela maravilhoso. Munido de freio sólido, que segura com mão firme, armado de chicote e espora, de que se servirá sem dó, porém com prudência, monta-o resolutamente e acaba por adestrá-lo. O menor salto é rebatido com presteza; porém o cavaleiro prudente não espera que o seu corcel faça primeiro das suas para dirigi-lo e fazer sentir a força da sua mão vigorosa. Vigilante sempre previne os caprichos dele, obriga-o à obediência, esporeando-o se recusa marchar, moderando o seu ardor quando se precipita com impetuosidade. Assim fazendo não destrói nem enfraquece nenhuma das energias dele, mas as disciplina e defende dos seus excessos ou as impede de gastar-se em esforços vãos e desordenados.

Assim a mortificação doma e corrige a nossa natureza, sem enfraquecer as forças ou os recursos que possui, e que poderão ser melhor utilizados para o bem pela caridade e por outras virtudes cristãs.

Mas não pertence já às outras virtudes, à humildade, à temperança, à castidade, etc. reprimir as nossas paixões e todos os maus instintos da nossa natureza? Sim, sem dúvida. Mas essas virtudes só os reprimem enquanto são contrários a tal ou tal bem particular que cada um quer alcançar. Assim a humildade reprime os ímpetos do orgulho, porque são opostos ao respeito devido a Deus e à ordem por Ele estabelecida; a obediência recalca os assaltos da vontade própria, que são contrários às ordens da autoridade legítima; a mansidão modera os acessos de cólera, que ultrapassam os limites da reta razão, etc. Mas a mortificação reprime todos esses movimentos enquanto nascem duma natureza má que ela quer domar; ocupa-se menos do ato defeituoso em si, do que do seu princípio ou da sua raiz, que ela quer sanear para impedi-la de produzir outros frutos envenenados.

Exercendo a repressão já exigida pelas outras virtudes, a mortificação prossegue um fim diferente. E precisamente por causa do seu fim específico que é submeter em tudo a natureza à graça, e para facilitar as outras virtudes o seu trabalho, preparando-lhes faculdades mais dóceis e submissas, a mortificação vai mais longe do que elas na repressão: impõe aos sentidos, às paixões, a todas as nossas faculdades, enfim, privações, sacrifícios que as outras virtudes não exigiriam ao menos diretamente.

Assim a modéstia e a castidade interdirão aos olhos todo olhar imodesto; a mortificação abster-se-á às vezes de contemplar os mais inocentes espetáculos. A temperança e a sobriedade impõem a moderação no beber e no comer e proscrevem todo ato de gulodice e outros atos semelhantes; não contente de guardar as leis da moderação, a mortificação se nutrirá frequentemente de privações e amarguras. Do religioso que se abstivesse apenas dos olhares maus ou perigosos, das palavras livres ou mordazes, das gulodices ou outras sensualidades, dando, — se é possível essa suposição, — toda liberdade aos olhos e à língua, e guardando nos limites do lícito o amor da vida fácil, poder-se-ia dizer que é modesto, sóbrio ou caridoso, mas não que é mortificado.

Citam com razão, como exemplos admiráveis de mortificação: São Luiz de Gonzaga, que evitava até olhar para sua mãe; São Bernardo, que, após um ano de noviciado, não sabia se sua cela era de estuque ou de abóbada; o Santo Cura d’Ars, que se impunha não cheirar uma flor, não beber quando sentia sede, não enxotar uma mosca, não dar aparência de sentir algum mau cheiro, não manifestar jamais desgosto de objeto repugnante, não se queixar de coisa alguma que se referisse a ele, nunca se assustar, não se encostar quando de joelhos. Mas quem descreverá as austeridades de Santo Afonso, dum São Pedro de Alcântara, dum São João da Cruz, que, para reduzirem seu corpo à servidão, o submetiam a um verdadeiro e contínuo martírio, e que em nada seguiam os seus gostos naturais?

Assim adquiriram sobre si mesmos o mais absoluto domínio e puderam repetir em toda a verdade a palavra da Escritura:

Anima mea in manibus meis semper – “Estou sempre em plena posse de minha alma” (SI 118, 109).

Nem todos devem levar a esse ponto a mortificação; mas é necessário entrar nesse caminho para se tornar mortificado. Nem todos podem pretender chegar tão perto dos santos; mas para segui-los mesmo de longe é preciso andar sobre as suas pegadas e pôr-se no caminho que percorreram.

O homem mortificado não obedece às sugestões da natureza, nem escuta os seus desejos, reclamações e queixas, não a deixa agir livremente, mas tolhe todo o seu movimento de independência. Por exemplo: pede ela repouso? Recusá-lo com frequência, ou ao menos, se lho concede, não lhe dá tanto quanto pede nem quanto ela quer, nem como ela quer. Se ela se enfraquece e cede, estimula-a; se se apressa, modera os seus ardores.

A mortificação não se contenta, pois, de reprimir em nós os movimentos desordenados e culpáveis da nossa natureza pervertida, mas a combate e contraria em todas as suas manifestações, para não a deixar independente e livre em nenhuma. Seria, aliás, ilusão pretender abafar todas as reclamações culpadas das paixões ou dos sentidos, se se tratassem favoravelmente todas as que parecem inocentes ou indiferentes. A língua que se não sabe calar mesmo quando permitido, não conterá todas as palavras demasiado livres ou contrárias à caridade. Os olhos que não sabem fechar-se aos espetáculos honestos não evitarão sempre os perigosos. O corpo não habituado a sofrer reclamará imperiosamente gozos que serão a morte da alma.

Também os próprios autores que, pela definição que dão, parecem primeiro restringir a mortificação à repressão das tendências más da natureza, não deixam de acrescentar que é soberanamente útil e até necessário mortificar-se em coisas permitidas, e saber recusar-se não só o que é proibido, mas também o que se poderia ter sem pecado. Assim Alvares da Paz. Este define a mortificação: a separação livre e espontânea que afasta a alma da vida carnal, e pela qual todas as suas potências interiores e exteriores se abstêm das ações proibidas. E mais adiante distingue uma dupla mortificação: uma pela qual nos abstemos do que é proibido, e outra que se recusam também as coisas permitidas. E falando desta última diz:

“Ora, é muito útil recusarmo-nos certas coisas permitidas não só para nos prepararmos, pela prática dos conselhos, uma recompensa mais copiosa, mas ainda a fim de que, habituados a renunciar às coisas permitidas que nos agradem, resistamos mais facilmente ao atrativo dás coisas proibidas”

Também Cassiano diz com muita razão que merecemos menos, renunciando ao que é proibido, do que privando-nos das coisas permitidas e sacrificando-as por amor daquele que permitiu o uso delas à nossa fraqueza. E São Gregório diz ainda:

“Só se abstém fielmente das coisas proibidas quem sabe com prudência se restringir no uso das coisas permitidas”

Rodrigues diz igualmente que a mortificação consiste em reparar a desordem das nossas paixões, isto é, em reprimir em nós as más inclinações e o desregramento do amor-próprio. Mais adiante, porém, tratando da mortificação nas coisas permitidas, depois de mostrar que assim ensinaram e praticaram os santos e os padres do deserto, acrescenta:

“Os santos vão ainda mais longe; não mandam somente que nos habituemos a despojar-nos da nossa vontade nas coisas indiferentes e inocentes, mas aconselham ainda que a mortifiquemos nas coisas que são de necessidade absoluta”

Mas, dirá alguém, como se poderá fazer isso? Para alguém se mortificar precisa se dispensar das suas obrigações? Absolutamente não; não se deve fazer o mal para que venha o bem. Mas como o fazes? Os santos acharam um segredo maravilhoso a esse respeito, que tiraram da doutrina de São Paulo:

“Não façais, não penseis, não digais coisa alguma movidos por vossa vontade e vosso apetite sensível”

Antes da refeição mortifique em vós mesmos o desejo que tendes dela; comei, não para satisfazê-lo, mas para obedecer a Deus, que quer que comais para não morrerdes, e fazei como o abade Isidoro, do qual diz Paládio que chorava indo ao refeitório, e que lá só ia por obediência. Antes do estudo mortificai interiormente o desejo que tendes dele, e estudai depois porque Deus vo-lo manda e não porque sentis prazer. Antes de subirdes ao púlpito, sacerdotes, mortificai a vossa inclinação nesse ponto; pregai e ensinai, não para seguirdes o vosso gosto, mas para obedecerdes e fazerdes a vontade de Deus. Procedei da mesma forma quanto às outras coisas; despojando assim todas as vossas ações do apego que lhes tendes, fazei-as puramente por Deus. Não é justo que elas nos dominem; nós é que devemos dominá-las para as referirmos a Deus com o fim de Lhe agradarmos, segundo as palavras do apóstolo: quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa faça tudo para a glória de Deus.

Santo Afonso, enfim, falando da mortificação interior, diz que o seu fim é reprimir os movimentos desordenados do amor-próprio:

“Todo cuidado duma religiosa deve ser de reprimir os movimentos desordenados do seu amor-próprio: eis o objeto da mortificação interior, com o diz também Santo Agostinho: Regere motus animi. Mas as explicações que fornece depois e os exemplos que aduz mostram claramente que para ele a mortificação perfeita não se limita a reprimir os movimentos desordenados do coração ou dos sentidos, e que a alma verdadeiramente mortificada é aquela que se esforça para abafar em tudo a voz da natureza para não escutar senão a da graça.

‘Uma alma, diz ele, é miserável quando obedece às suas próprias inclinações’

E ainda:

‘É uma falta em todo cristão agir só por satisfação; mas essa falta é bem maior numa religiosa que de maneira toda especial se obrigou à perfeição e à mortificação’

 E de novo:

‘É preciso estender esse sacrifício da vontade própria não só a todas as coisas ilícitas, não só às coisas indiferentes, mas também às ações que parecem virtuosas: penitências, orações, esmolas, numa palavra, a todas não sancionadas pela obediência’

Alhures ainda: Que bela messe de virtudes e de méritos não colhe a alma que procura abafar, já em sua origem, vãos desejos, afeições humanas, rivalidades, curiosidades, gracejos e mil coisas semelhantes! Contradizem-vos, cedei com gosto, contanto que a glória de Deus não exija que repliqueis; aproveite essa bela ocasião de sacrificar o ponto de honra por amor de Jesus Cristo. Recebeis uma carta e estais a abrir o envelope, não a leiais logo para mortificar a vossa pressa. Uma narração desperta vivamente a vossa curiosidade, deixai para ouvir mais tarde o seu desfecho. Estais ansiosos por dizer uma boa palavra, colher uma flor, olhar algum objeto, abstende-vos por amor de Jesus Cristo. Mil atos semelhantes apresentam-se-vos cada dia…”

Enfim, para mortificação exterior: Quando sei recusam ao corpo certos prazeres. lícitos, este não reclama prazeres ilícitos; porém, uma vez farto de satisfações permitidas, não tarda a lançar-se em excessos. O que Santo Afonso exige da mortificação é, pois, domar completamente a natureza para submetê-la em tudo à graça.

A mortificação imporá, pois, o seu freio a todas as nossas potências para abrandá-las e transformar a sua atividade. Daí se distingue: a mortificação externa ou a mortificação dos sentidos, e a mortificação interna que refreia as faculdades mais íntimas da alma, e sem a qual a primeira seria de pouca utilidade, como se dirá mais tarde.

Pela mortificação externa a alma submete os seus instintos às leis da mais severa modéstia; e não contente de recusar-lhes as satisfações duma liberdade funesta, conserva-os presos a uma dura servidão, tirando-lhes até o desejo da revolta. É isso que fazia o apóstolo:

“Castigo o meu corpo, dizia ele, e o reduzo à escravidão, para que me não perca depois de haver pregado aos outros” (1 Cor 9, 27)

Mas é, sobretudo, às potências interiores que a mortificação impõe o seu duro, mas salutar império. A imaginação que, entregue a si própria, pode arrastar a alma a todos os desvarios e a todas as desordens, sente-se detida em suas loucas divagações e obrigada a deixar os seus sonhos desordenados para se prender à imagem da virtude. A memória deve repelir e apagar toda recordação perigosa para se lembrar de, sobretudo dos benefícios de Deus e das provas do seu amor. Cheia de confiança em suas pobres luzes, a inteligência quisera criticar tudo, apreciar tudo, emitir o seu juízo sobre todas as coisas: a mortificação rebate todas essas pretensões, e mesmo no estudo e na procura da verdade força-a a seguir, não os seus desejos ou preferências, mas a luz sobrenatural e os ensinamentos divinos. Tomada da licença, a vontade quisera em tudo escutar os seus gostos e caprichos e não admitir nenhum jugo, mas a mortificação lhe proíbe todo o querer próprio e obriga-a a conformar-se em tudo à vontade divina.

É, enfim, ao coração com o seu egoismo, seus atrativos e suas repugnâncias, suas simpatias e suas antipatias, suas afeições e suas aversões, seus abatimentos e suas exaltações calorosas, com sua embriaguez e suas loucuras de paixões; numa palavra, o coração fonte de todo o mal e foco de pecado, ou sede de todo devotamento e de toda virtude conforme for submisso a Deus ou entregue a seus maus instintos: é a ele, sobretudo que a mortificação deve impor uma disciplina de ferro, interditando-lhe sem piedade toda afeição, todo apego que não seja segundo Deus, em Deus e para Deus.

Do que precede se vê que a mortificação pode ser considerada como uma virtude geral e como uma virtude particular.

Como virtude geral, enquanto reprimem em nós as tendências más combatidas pelas outras virtudes. Do mesmo modo, com efeito, como em todo ato virtuoso que cumpre uma lei divina há um elemento de obediência e assim a obediência é uma virtude geral, assim em todo ato virtuoso que reprime uma tendência má há um elemento de mortificação e assim a mortificação se acha em toda virtude que combate em nós qualquer desordem. Mas assim como a obediência tem o seu objetivo particular que é o preceito, do mesmo modo a mortificação tem seus atos próprios: são as repressões, privações ou atos quaisquer penosos, que a alma se impõe sem a isso ser constrangida por nenhuma outra virtude e com o fim de adquirir domínio perfeito sobre as suas potências, para submetê-las plenamente ao influxo da graça. Assim, para se conservar mais puro, para dominar mais facilmente as paixões, o religioso impõe-se jejuns voluntários, flagela-se, proíbe a seus olhos os espetáculos inocentes. Bem que sejam inspirados pelo cuidado de conservar a castidade, esses atos não são ainda atos de castidade; bem que sejam aconselhados pela prudência, não são tampouco realizados pela prudência; ela aconselha todas essas virtudes e as dirige sem reivindicar-lhes os atos do mesmo modo como a caridade inspira, anima e aperfeiçoa todos os atos de virtude sem tirar-lhes sua natureza própria.

Compreende-se ainda como a mortificação serve eficazmente todas as virtudes e como se pode dizer que ela é o seu soldado generoso. Pelo regime forte que impõe a todas as nossas potências, abranda-as e as habilita a todos os atos virtuosos. Mas há, sobretudo, duas virtudes às quais a mortificação é particularmente útil e necessária: a oração e a castidade.

Compreende-se, enfim, quão justo é o nome de mortificação que se dá à virtude que acabamos de descrever. Matando em nós as tendências viciosas, ela destrói a vida de pecados para substituir-lhe a vida da graça, é a morte do velho homem substituído pelo homem novo, é a verdadeira vida na morte (Rom 6, 6).

Concluamos. É certo que o pecado nos deu uma natureza cheia de instintos maus, e que todos esses instintos devem ser reprimidos energicamente, se não quisermos manchar a alma de mil pecados. Pouco importa que atribuam essas repressões à mortificação considerada como virtude geral, ou que as atribuam às outras virtudes que realmente as exigem: necessário é querer essa repressão de todos os maus instintos e exercê-la.

É certo — e todos concordam — que, para se recusar tudo quanto é proibido, é preciso saber recusar- se às vezes o que em si seria lícito e que para se dominar completamente as paixões e os sentidos, a imaginação e o coração não bastam querer reprimir os seus movimentos desordenados quando produzidos, mas que é necessário esforçar-se para prevenir esses movimentos desordenados e abafar as más tendências que os engendram, impondo-lhes sacrifícios e privações voluntárias: sacrifícios e privações, cuja omissão não lesaria nenhuma virtude. Não há falta nenhuma em contemplar o prado florido, nem em ouvir o canto dos pássaros, nem em dizer uma palavra espirituosa ou inocente gracejo. São Bernardo poderia olhar a abóbada ou o estuque da sua cela; São Luiz de Gonzaga poderia olhar sua mãe sem lesar a modéstia nem outra virtude.

É certo que os santos, não contentes de reprimir toda tendência má, sempre perseguiram a natureza em suas menores manifestações, ao ponto de parecerem mortos a todo o sentimento natural, a tudo quanto não se referia à glória de Deus e ao seu divino beneplácito. Tornaram-se admiráveis modelos de mortificação por essa luta sem reserva, sem paz nem tréguas contra a natureza e seus instintos. Saibamos querer seguir as suas pegadas. Mas contemplemos primeiro os exemplos do santo dos santos, de nosso divino Redentor.

II. Da Mortificação Externa

Os escritos seguintes são de Santo Afonso Maria de Ligório.

Necessidade da Mortificação Externa

A mortificação externa consiste em se fazer e sofrer o que contraria os sentidos exteriores e em se privar daquilo que os lisonjeia. Enquanto ela é necessária para evitar o pecado, é de obrigação absoluta para cada cristão. Se se trata de coisas que licitamente se podem desfrutar, a mortificação não é obrigatória, mas é muito útil e meritória. Contudo deve-se aqui notar que, para aqueles que tendem à perfeição, a mortificação nas coisas lícitas é absolutamente necessária.

Como pobres filhos de Adão, devemos combater até à nossa morte, pois “a carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne” (Gl 5, 17). É próprio dos animais seguir os seus sentidos, enquanto que aos anjos compete cumprir com a vontade de Deus; disso conclui um ilustre escritor que nos tornamos anjos, esforçando-nos por cumprir a vontade de Deus, e irracionais, se procurarmos satisfazer os nossos sentidos. Ou a alma subjuga o corpo, ou o corpo escraviza a alma.

Em vista disso, devemos tratar o nosso corpo como um cavaleiro trata um cavalo bravio, puxando-lhe fortemente a rédea para que não o derrube, ou como o médico que, estando a tratar de um doente, prescreve remédios que lhe são desagradáveis e proíbe-lhe comidas e bebidas nocivas, que ele apetece. Sem dúvida alguma seria cruel um médico que permitisse ao doente deixar os remédios prescritos por serem amargos e tomar outros, nocivos, por lhe agradarem.

Quanto maior não é, pois, a crueldade de um homem sensual, que quer poupar a seu corpo todos os desgostos nesta vida, e expor, assim, sua alma e seu corpo ao perigo de ter que sofrer por toda a eternidade penas imensamente maiores.

Esse falso amor, diz São Bernardo (Apol. ad Guil., c. 8), destrói o verdadeiro amor que devemos ter para com o nosso corpo; uma tal compaixão com o corpo é uma grande crueldade, porque, poupando-se o corpo, mata-se a alma. O mesmo Santo dirige aos mundanos, que zombam dos servos de Deus por mortificarem sua carne, as seguintes palavras:

“Somos em verdade cruéis para com o nosso corpo, afligindo-o com penitências; porém mais cruéis sois vós contra o vosso, satisfazendo a seus apetites nesta vida, pois assim o condenais juntamente com vossa alma a padecer infinitamente mais na eternidade”

Se queremos, portanto, agradar a Deus e alcançar a salvação, devemos corrigir nosso falso gosto: devemos achar satisfação naquilo que a carne detesta e desprezar aquilo que ela apetece. Isso significou Nosso Senhor a São Francisco de Assis, dizendo-lhe:

“Se me desejas ter junto de ti, deves aceitar como amargo o que é doce e como doce o que é amargo”

Não venhas com a objeção que alguns costumam fazer, dizendo que a perfeição não consiste na mortificação do corpo, mas na mortificação da vontade. A isso responde o Pe. Pinamonti: “Se uma videira não dá fruto por estar protegida com uma cerca de espinhos, contudo a cerca conserva os frutos”, pois “onde não há cerca será roubada a feitoria”, diz o Sábio (Ecl36, 27).

São Luís Gonzaga era de saúde muito melindrosa. Apesar disso, era tão assíduo em crucificar seu corpo, que não buscava outra coisa senão mortificação e penitências; como lhe dissessem uma vez que a santidade não consiste nessas coisas, mas na abnegação de sua vontade própria, respondeu mui sabiamente com as palavras do Evangelho:

“Deveis fazer isso e não deixar aquilo” (Mt 23, 23)

Com isso queria dizer que, ainda que seja necessário mortificar sua vontade, não se deve deixar de mortificar o corpo, para refreá-lo e submetê-lo à razão. Dizia o Apóstolo:

“Castigo o meu corpo e o reduzo a servidão” (1 Cor 9, 27)

Sem a mortificação do corpo, é difícil submetê-lo à lei de Deus.

O mundo e o demônio são, em verdade, grandes inimigos de nossa salvação; contudo, o maior de todos é o nosso corpo, porque ele mora conosco.

“O inimigo que mais nos prejudica é aquele que mora conosco em casa”, diz São Bernardo (Med., c. 13)

Os mais perigosos inimigos de uma fortaleza sitiada são aqueles que se acham no seu interior, pois é muito mais difícil se defender contra estes que contra os que estão fora.

Como os mundanos só cuidam em lisonjear seu corpo com prazeres sensuais, as almas que amam a Deus só procuram mortificar sua carne tanto quanto possível. São Pedro de Alcântara assim fala a seu corpo:

“Fica certo que nesta vida não te deixarei descansar; só tribulações serão tua partilha; quando estivermos no céu, gozarás de uma paz que não terá mais fim”

Nesse mesmo espírito procedia Santa Maria Madalena de Pazzi, que, pouco antes de sua morte, podia afirmar que não se lembrava de ter jamais encontrado alegria fora de Deus.

Leiamos a biografia dos Santos, consideremos suas penitências e envergonhemo-nos de ser tão medrosos e comedidos na mortificação de nossa carne.

Mas eu tenho uma saúde muito fraca, me dirás, e meu confessor me proibiu todas as penitências. Pois bem, em tal caso deves obedecer; mas ao menos aceita resignadamente todos os incômodos que teu estado corporal te ocasionar; suporta alegremente todas as penas que a mudança de frio e calor consigo traz. Se não podes mortificar teu corpo com penitências, ao menos renuncia de vez em quando a um prazer lícito. Quando São Francisco de Borja se achava na caça, fechava os olhos no momento em que o falcão se apoderava de sua presa, para se privar do prazer que essa vista lhe causava. São Luis Gonzaga também evitava olhar para as representações a que devia às vezes assistir.

Por que não poderás também tu, alma cristã, praticar semelhantes mortificações? Se negares a teu corpo satisfações lícitas, não ousará ele reclamar outras ilícitas; se, porém, te entregares a todos os prazeres lícitos, te procurarás dentro em breve deleitações ilícitas.

Um grande servo de Deus, o Pe. Vicente Carafa, da Companhia de Jesus, diz que Deus nos concedeu as alegrias deste mundo, não só para que delas gozemos, mas também para que tenhamos ocasião de lhe oferecer um sacrifício, privando-nos delas por Seu amor.

É verdade que algumas inocentes alegrias são mui próprias para auxiliar a nossa fraqueza humana e nos dispor para os exercícios espirituais; contudo, deves estar persuadido que os prazeres dos sentidos por si são venenos para a alma, porque eles a prendem às criaturas; por isso se deve gostar desses prazeres como se usa fazer quando se toma veneno. As plantas venenosas, quando devidamente misturadas e tornadas em pequena quantidade, são às vezes úteis à saúde do corpo; mas são sempre e permanecem veneno. É o que se dá com os prazeres.

Por essa razão, só com grande precaução e moderação é que se pode gozar deles sem apego, e só por necessidade, com a única intenção de se poder servir melhor a Deus.

Além disso, devemos tomar cuidado para que, com o esforço de preservarmos o nosso corpo de doenças, não deixemos desfalecer a nossa alma, que está sempre, doente, não se mortificando a carne.

“As doenças do corpo me causam compaixão, diz São Bernardo (Ep. 315), porém, maior compaixão me causam as doenças da alma, que são mais perigosas e mais para temer”

Oh! Quantas vezes um mal-estar do corpo não nos serve de pretexto para nos concedermos certas liberdades de que não temos nenhuma necessidade!

“Um dia deixamos a oração porque sentimos dor de cabeça, diz Santa Teresa (Cam. de perf., c. 10), no outro dia porque tivemos e, no terreiro dia, para que não nos volte a dor de cabeça”

Salutares efeitos da Mortificação Externa

A mortificação externa é de suma utilidade para o espírito.

1. Antes de tudo ela nos desprende dos prazeres sensuais, que ferem e até muitas vezes matam a alma. “As chagas do amor divino impedem que as chagas da carne nos atormentem”, diz Orígenes.

2. Pela mortificação expiamos os castigos temporais devidos nossos pecados. Se depois de uma dolorosa confissão a culpa do pecado nos é tirada, não deixemos por isso de ficar sujeitos aos castigos temporais. Se não os expiarmos durante a vida presente, teremos de recuperar o que perdemos no purgatório. Mas aí os castigos são imensamente maiores.

“Os que não fizeram penitência por seus pecados, se verão em grandíssimas tribulação” (Ap 2, 22)

Santo Antônio narra que o anjo da guarda deu a escolher a um doente entre o ficar três dias no purgatório e o suportar ainda dois anos a sua doença. O doente escolheu os três dias de purgatório; apenas, porém, se escoara uma hora e já se queixava ele ao anjo que, em vez de deixá-lo por alguns dias nessas penas, já suportava, durante tantos anos. Então respondeu-lhe o anjo: Que dizes? Teu corpo se acha ainda quente em teu leito mortuário e já falas de anos?

Se, pois, tiveres de padecer alguma coisa, alma cristã, dize a ti mesma:

“Isso me deve servir de purgatório; a alma e não o corpo deve sair vencedora!”

3. A mortificação eleva a alma até Deus. Segundo São Francisco de Sales, nunca poderá a alma chegar até Deus sem a mortificação e sujeição de carne. Sobre esse ponto Santa Teresa (Fund., c. 5) nos deixou várias e belas sentença:

“É um grande engano crer que Deus admite a seu trato familiar homens efeminados”

“Vida voluptuosa e oração não se harmonizam”

“Almas que uniam a Deus verdadeiramente não aspiram a descanso corporal”

4. Pela mortificação alcançamos uma grande glória no céu.

“Se os combatentes se privam de todas as coisas que minoram suas forças, diz o Apóstolo (1 Cor 9, 25), e que poderiam impedi-los de alcançar uma coroa corruptível, quanto mais devemos nós nos mortificar para conseguirmos uma coroa inapreciável e eterna”

São João viu todos os bem-aventurados com “palmas nas mãos” (Ap 7, 9). Daí devemos concluir que todos nós, para nos salvar, devemos ser mártires, quer o sejamos pela espada dos tiranos ou pela mortificação.

Devemos, entretanto, pensar que “as penalidades da presente vida não têm proporção alguma com a glória vindoura que se manifestará em nós”. O que aqui é para nós humana tribulação momentânea e ligeira, produz em nós, de um modo maravilhoso no mais alto grau, um peso eterno de glória (2 Cor 4, 17).

Avivemos, portanto, nossa fé! Curta é a nossa peregrinação aqui na terra: nossa morada duradoura é além, onde aquele que na vida mais se mortificou receberá uma glória e alegria maior. São Pedro (1 Pd 2, 5) diz que os bem-aventurados são as pedras vivas com as quais é edificada a Jerusalém celeste. Mas, como canta a Igreja (In dedic. eccl.), essas pedras devem primeiramente ser trabalhadas com o cinzel da mortificação. Tenhamos sempre em vista esse pensamento e se nos tornará fácil todo o esforço e trabalho.

Se alguém soubesse que receberia todos os terrenos que ele percorresse num dia, quão fácil e agradável não lhe pareceria o trabalho dessa caminhada.

Conta-se que um monge planejava trocar sua cela com uma outra que se achava mais próxima da fonte de água. Ao ir, porém, um dia buscar água, ouviu que atrás de si contavam seus passos; virando-se para trás, viu um jovem que lhe disse: Sou um anjo e conto os teus passos, para que nenhum fique sem sua recompensa. Ouvindo isso, não pensou mais o monge em mudar de cela, pelo contrário, teria até desejado que estivesse ainda mais longe, para que pudesse adquirir mais merecimentos.

5. E não são só os bens da vida futura que os cristãos mortificados têm a esperar; eles já possuem nesta vida um bem sumamente precioso na paz e na felicidade que gozam na terra. Ou poderá talvez existir uma coisa mais agradável para uma alma que ama a Deus do que o pensamento de que com sua mortificação faz uma coisa agradável a Deus? Tais almas experimentam na privação de prazeres sensuais e até em seus padecimentos uma grande alegria, não sensual, mas espiritual.

O amor não pode ficar ocioso: quem ama a Deus não pode viver sem Lhe dar contínuas provas de seu amor. Ora, não pode uma alma testemunhar melhor o seu amor para com Deus do que renunciando por Ele as alegrias deste inundo e sacrificando-Lhe seus sofrimentos.

Uma alma que ama a Jesus Cristo nem sequer sente quando se mortifica. “Se se ama não se sente nenhuma pena”, diz Santo Agostinho (In Jo trat. 48). Quem poderá, de fato, ver seu Redentor coberto de chagas, afligido e perseguido, sem abraçar, a seu exemplo, os sofrimentos e até desejá-los? pergunta Santa Teresa (Vida, c. 8). Por isso protestava São Paulo que não aspirava a outra glória e outra alegria que à da cruz de Jesus Cristo:

“Longe de mim o gloriar-me a não ser da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6, 14)

Segundo o mesmo Apóstolo, a diferença que existe entre os que amam a Jesus Cristo e os que não O amam é que estes lisonjeiam a carne, enquanto que aqueles cuidam em mortificá-la e crucificá-la (Gl 5, 24).

6. Pensemos, finalmente, alma cristã, que nossa morte se aproxima depressa e que muito pouco é o que fizemos para o céu. Procuremos, portanto, no futuro, mortificar-nos tanto quanto possível; não deixemos passar ocasião alguma de mortificação, conforme o conselho do Espírito Santo:

“Não deixes passar uma partezinha do bem que te é concedido” (Ecl 14, 14)

Consideremos que cada ocasião de mortificação é um presente de Deus, pelo qual podemos adquirir grandes merecimentos para a vida eterna; ponderemos que não nos será possível amanhã o que hoje podemos, visto que o tempo passado não- volta mais.

III. Da mortificação interna

Da Mortificação do Amor-próprio

Devemos distinguir bem o amor-próprio desordenado do amor-próprio regulado: este nos estimula a tendermos à vida eterna, para a qual Deus nos criou; aquele, porém, nos induz a buscarmos os bens desta vida, com dano para a nossa alma e desprezo de Deus.

“A cidade celeste, diz Santo Agostinho (De civ. Dei, L. 1, c. 1), e edificada pelo amor de Deus, por quem nos desprezamos a nós mesmos; a cidade terrestre é edificada pelo amor a nós mesmos, pelo qual nós desprezamos a Deus”

Por essa razão disse Jesus Cristo:

“Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo” (Mt 16, 24)

Toda a perfeição de uma alma consiste, de fato, nessa abnegação própria; pois, como diz Santo Agostinho (De div. quaest., q. 36), “quanto menos procura o homem satisfazer às suas paixões, tanto mais ama ele a Deus, e se ele nada mais deseja fora de Deus, ama então perfeitamente”.

No estado atual, porém, de nossa natureza corrompida pelo pecado, é impossível permanecer inteiramente isento aos movimentos do amor-próprio; só Jesus Cristo entre os homens, e a Virgem Mãe entre as mulheres, foram inteiramente livres dele; quanto aos outros santos, é certo que todos eles tiveram de combater contra suas más paixões. Por isso, todos os esforços de um cristão devem convergir a reprimir os movimentos desregrados de seu amor-próprio: nisso consiste principalmente a mortificação interna, como ensina Santo Agostinho (Sermo 196), dizendo que a mortificação interna ordena os movimentos da alma.

Oh! Como é digno de compaixão aquele que se deixa governar por suas paixões! Atrozes inimigos de nossa alma são o mundo e o demônio; o mais atroz, porém, segundo São Bernardo, é o nosso amor-próprio, porque esse inimigo mora conosco na mesma casa. Santa Maria Madalena de Pazzi diz:

“O amor-próprio é para a alma o que é para as plantas um verme que as ataca em suas raízes e não só as priva de seus frutos, como também de sua força vital”

E acrescenta:

“O inimigo que mais devemos temer é o amor-próprio; pois ele nos trai, como Judas, com um ósculo. Quem o vencer, terá vencido tudo. Se não o puderes matar com um golpe, mata-o com veneno”

Portanto, deves orar ao Senhor sem interrupção, como o Sábio (Ecl 23, 6):

“Ó Senhor, não me abandones ao ímpeto de minhas loucas paixões, que me querem privar de teu santo temor e até de minha razão”

“A vida do homem sobre a terra é uma guerra continua” (Jó 7, 1)

Quem, porém, na guerra enfrenta o inimigo, deve ter sempre as armas nas mãos para se defender; se se para de combater, está-se perdido. Ainda que tenhamos alcançado muitas vitórias, não podemos cruzar os braços, visto que nossas paixões, apesar de todas as suas derrotas, nunca serão inteiramente aniquiladas. Parecem-se com a má erva, diz São Bernardo, que torna sempre a crescer, por mais que tenha sido cortada; mesmo quando se julga que foi exterminada por completo, não tarda a reaparecer.

Por isso, no combate com as nossas paixões só podemos conseguir que elas não nos ataquem tantas vezes e tão impetuosamente e que as possamos vencer mais facilmente.

A um monge que se queixava de não ter conseguido ainda extirpar umas paixões, contra as quais já combatia há oito anos, deu-lhe o Abade Teodoro a seguinte resposta:

“Ó meu irmão, tu te queixas de uma guerra de oito anos, e eu já vivo há bem sessenta anos no deserto, e, durante todo esse tempo, não se passou um dia sem que eu não fosse atormentado por uma paixão”

As paixões, portanto, nos hão de incomodar sempre; contudo, como nota São Gregório (Mor., l. 6, c. 16), “é coisa muito diversa ver esses animais ferozes andar em redor de nós e ouvi-los uivar, que té-los em nosso coração e permitir-lhes que nos devorem”.

Nosso coração é um jardim, no qual crescem continuamente ervas más e prejudiciais; devemos, pois, ter sempre na mão a enxada da mortificação, para remover toda essa cizânia, porque doutro modo nossa alma se parecerá em breve com um matagal de cardos e espinhos. “Vence-te a li mesmo” era a divisa de Santo Inácio de Loyola. Essa exortação tinha-a o santo continuamente na boca, e em todas as alocuções aos membros de sua Ordem ele a aduzia:

“Vencei ao amor-próprio, quebrai vossa vontade própria, lhes dizia, pois o motivo principal por que só poucos homens que praticam a oração mental se tornam santos, está nisso que só poucos cuidam em se vencer a si mesmos”

“De cem pessoas que praticara a oração, são palavras suas, mais de noventa seguem a sua própria cabeça”

Por isso o santo liga maior importância a um único ato de abnegação própria do que a uma oração de uma hora, cheia de consolação espiritual.

“Que adianta a uma fortaleza ter todas as suas portas fechadas, diz o Abade Gilbert (In Cant. s. 26), se o inimigo interno, a fome, põe todos os habitantes em desespero?”

Ele quis dizer:

Que aproveita mortificar os sentidos externos e praticar muitos exercícios de piedade, se se conserva no coração uma paixão, se não se quer renunciar à sua própria vontade, alimentando no seu interior a ambição, a vingança ou outros inimigos que devastam tudo?

São Francisco de Borja diz que a oração introduz o amor divino no nosso coração, mas que a mortificação do amor-próprio lhe prepara o caminho, removendo a terra que impede ao amor a entrada em nosso coração. Deves tirar toda a terra que se acha na vasilha que queres encher de água, pois, do contrário, em vez de água terás só barro.

Quanto à relação que existe entre a mortificação interna e a oração, nos deixou o Pe. Baltasar Álvarez a importante sentença:

“Oração sem mortificação ou é engano ou dura pouco”

Segundo Santo Inácio, uma alma mortificada se une mais intimamente com Deus em uma oração de um quarto de hora, que uma imortificada em uma oração de uma hora. Se esse santo ouvia que se louvava alguma pessoa por ela rezar muito, dizia logo:

“É um sinal de que ela é muito mortificada”

Alguns cristãos praticam muitos atos de piedade, recebem muitas vezes a sagrada comunhão, jejuam, empregam muito tempo na oração, etc., mas deixam de combater certos movimentos de paixão, certos sentimentos de vingança, apatias, curiosidades, inclinações perigosas, etc.; não são capazes de suportar contrariedades, de se separar de certas pessoas, de submeter sua vontade à obediência e à vontade de Deus. Que progressos poderão fazer tais almas, dignas de lástima, no caminho da perfeição? Conservam sempre as mesmas faltas e acham-se sempre fora do caminho direito, segundo Santo Agostinho: “Correm bem, diz n Santo, mas fora do caminho” (In ps. 31, 4); lisonjeiam-se de correr bem por continuarem a praticar suas devoções, mas permanecem sempre fora do caminho da perfeição, porque este consiste na abnegação própria, como ensina Tomás de Kempis:

“Adiantar-te-ás na prática do bem, à medida da violência que empregares contra ti mesmo” (I Imitação c. 26)

Não quero reprovar, nem por sombra, a oração vocal, as penitências e os outros exercícios espirituais: mas deves praticá-las com a única intenção de alcançar a vitória sobre tuas paixões. Todos os exercícios de piedade não são senão meios para se alcançar a virtude; por isso devemos pedir sempre a Deus, na santa comunhão, na meditação, na visita ao Santíssimo Sacramento e nos outros exercícios de piedade, a graça de nos tornarmos humildes, mortificados, obedientes e conformados com Sua santa vontade.

A satisfação do amor-próprio é uma falta para cada cristão; é porém, uma falta muito maior para aquele que recebeu mais graças e, por isso, está obrigado a tender com maior zelo à perfeição.

“Por meio da abnegação própria, diz São Lactâncio, Deus chama os homens para a vida eterna, por meio da satisfação do amor-próprio o demônio os chama para a morte eterna”

Mesmo quando praticamos coisas santas, devemos fazê-las sem apego, de tal modo que, se nossa empresa não der resultado ou for proibida pela obediência, não nos cause isso perturbação. Todo o apego desordenado a nós mesmos nos impede a união com Deus. Por isso devemos estar resolvidos a combater nossas paixões e a não nos deixar arrastar por elas.

Tanto a mortificação externa como a interna é necessária para a perfeição, mas com a diferença de que devemos praticar a mortificação externa com medida, e a interna sem medida e com zelo infatigável. Para que serve a mortificação dos sentidos exteriores sem a mortificação das paixões do coração?

“Que aproveita emagrecer o corpo com um jejum rigoroso, diz São Jerônimo, se entumecido pela soberba não se pode suportar uma palavra ofensiva, uma resposta negativa? Que adianta abster-se do vinho, e embriagar-se de furor por causa de uma contrariedade ou contradição?”

Se nos entregarmos com zelo à mortificação de nosso amor-próprio, poderemos nos santificar em pouco tempo, sem que tenhamos a temer a ruína da nossa saúde, ou o orgulho, porque só Deus será testemunha de nossa mortificação.

Se nós abafarmos já no nascimento aqueles vãos desejos, aquelas inclinações, aquela sentimentalidade, aquela curiosidade, numa palavra, todos aqueles movimentos provenientes do amor-próprio, que bela colheita de virtudes e merecimentos não faremos então!

Se, pois, te contradisserem, alma cristã, cede imediatamente, a não ser que a glória de Deus exija outra coisa; oferece a Jesus Cristo esse sacrifício de abnegação própria. Se receberes uma carta, reprime a tua curiosidade; espera um pouco e não a abras logo. Se na leitura de um livro estás desejosa de saber o fim de uma história, refreia tua curiosidade e deixa a conclusão para depois. Advém-te o desejo de dizer um chiste, de apanhar uma flor, de ver este ou aquele objeto, renuncia a isso por amor de Jesus Cristo.

Por tais exercícios de virtude se oferecem muitas ocasiões durante o dia. São Leonardo de Porto Maurício conta que uma serva de Deus praticou uma vez oito atos de mortificação enquanto comia um ovo, pelo que alcançou oito graças e outros tantos títulos de glória, como lhe foi revelado mais tarde. São Dosíteo atingiu em pouco tempo, por tais atos de mortificação interna, a um alto grau de perfeição. Apesar de ser moço, não podia nem jejuar nem praticar os outros atos de piedade com a comunidade, em vista de suas doenças. Alguns monges se admiravam como podia ele viver tão unido a Deus, sem a prática desses atos, e perguntaram-lhe, por isso, que virtude praticava em particular. O Santo respondeu que punha todo o seu esforço em mortificar em tudo as inclinações de seu coração.

São José de Calazans costumava dizer:

“O dia que se passa sem uma mortificação é um dia perdido”

Nosso Senhor mesmo, para nos mostrar a necessidade da mortificação, quis levar uma vida toda mortificada, uma vida sem consolação sensível alguma, uma vida cheia de dores e opróbrios, de tal forma que Isaías o chamou “o homem das dores” (Is 53, 3).

O divino Salvador podia remir o mundo entre honras e alegrias; quis, porém, fazê-lo só entre dores e desprezos.

“Foi-lhe proposto o gozo, diz o Apóstolo (Hb 12, 2), mas, para nos dar o exemplo, escolheu a cruz”

“Percorrei a vida toda de Jesus, diz São Bernardo, sempre o encontrareis, sofrendo na cruz”

Nosso Senhor mesmo revelou a Santa Catarina de Bolonha que, já no seio materno, começou Ele a padecer as dores de Sua paixão. Para Seu nascimento escolheu uma estação, um lugar, uma hora que eram os mais próprios para Lhe causarem sofrimentos; além disso, escolheu para Si um modo de vida o mais pobre, desconhecido, desprezado; finalmente, quis sujeitar-Se à morte mais dolorosa, degradante e amarga que poderia haver. Santa Catarina de Sena diz:

“Como uma mãe, para curar seu filho doente, toma um remédio amargo, assim Jesus Cristo quis beber, durante sua vida terrestre, o cálice de todas as dores, para nos salvar a nós, pobres doentes”

Da Mortificação da Vontade Própria

Nada é mais prejudicial para aqueles que tendem à perfeição do que contentar a sua vontade própria.

“Faze que os homens não tenham mais vontade própria, diz São Bernardo (Sermo 3, temp. pasch.), e não haverá mais inferno para eles”

Segundo São Pedro Damião, a vontade própria destrói todas as virtudes.

“Como a vontade de Deus é a fonte de todo o bem, diz Santo Anselmo (De similit., o. 8), assim a vontade do homem é a origem de todo o mal”

Como poderia ter um bom fim aquele que se entregasse a um preceptor insensato? Um tal preceptor insensato é, porém, a vontade própria. “Todo aquele que se constitui a si mesmo por mestre e segue o que lhe dita sua vontade própria é um louco”, diz São Bernardo (Epist. 87). Santo Antão, Abade, exprime o mesmo pensamento, dizendo que nossa vontade própria é um vinho inebriante, que faz com que não conheçamos nem o valor da virtude, nem a fealdade do vício.

O demônio tornou-se o que é só por sua vontade própria, nota Santo Agostinho (Conf., l. 7, c. 3). Por isso serve-se ele, na guerra contra as almas piedosas, principalmente de sua vontade própria, para precipitá-las na ruína. Cassiano conta (Vit. Pat., 1. 5, Iibell. 10, n. 62) que o santo Abade Aquiles respondeu a um de seus discípulos, que lhe perguntara de que armas os demônios se serviam para combater as almas consagradas a Deus:

“Contra os grandes deste mundo servem-se eles da soberba; contra os comerciantes, da ambição; contra jovens, da impureza; contra aqueles, porém, que se entregam à piedade, empregam como arma a mais poderosa a sua vontade própria; com essa arma os assaltam e muitas vezes os fazem sucumbir”

O Abade Pastor costumava até dizer:

“Se seguimos a nossa vontade própria, os demônios nem sequer nos combatem mais; pois, em tal caso, nossa vontade própria ocupa o lugar dos demônios e mesmo dos mais péssimos que existem”

Pelo contrário, sem a nossa vontade própria, ninguém nos pode separar de Deus, nem os homens na terra, nem os demônios no inferno.

Por isso o Espírito Santo admoesta a cada um de nós:

“Não vás atrás de tuas concupiscências e aparta-te de tua própria vontade” (Ecl 18, 30)

O maior valor de uma ação consiste em que ela seja feita por obediência e o maior defeito em que seja o resultado da vontade própria. Do que conclui Trilêmio que o demônio nada odeia tanto como a obediência. Santa Teresa, compenetrada da mesma verdade, diz:

“O demônio sabe que sobre a obediência repousa a salvação de nossa alma, e por isso se esforça tanto para pôr-lhe obstáculos”

São Filipe Néri costumava inculcar a seus penitentes antes de tudo a abnegação de sua própria vontade, e dizia, apontando para a testa: “Em quatro dedos de largura está toda a santidade”, isto é, ela está toda na mortificação da vontade própria. São Jerônimo escreve:

“Tanto ajuntas à virtude quanto subtrais à tua vontade própria”

E o Espírito Santo declarou, pela boca de Samuel, que é uma espécie de idolatria seguir a vontade própria, com desprezo da obediência (1 Rs 15, 23).

Por isso os penitentes que, confiados em si mesmos, desprezam os conselhos de seu confessor e seguem as sugestões de sua vontade própria, cometem, por assim dizer, um pecado de idolatria, pois eles adoram sua vontade própria como se fosse seu deus. Diante de Deus a renúncia à vontade própria é mais meritória do que a renúncia a todos os bens do mundo, dizia Santa Coleta.

Deve-se notar que a renúncia à vontade própria não é só então necessária quando se trata de coisas más ou indiferentes, mas também em todos aqueles casos em que uma boa obra em si, como a oração, esmola, etc., é contra a obediência. Cassiano chega até a dizer que a desobediência que cometemos praticando boas obras, contra a vontade de nossos superiores, em geral, é mais prejudicial que qualquer outra desobediência, porque custa-nos mais purificar-nos de faltas que têm a aparência de virtude. Essas almas que querem se santificar a seu modo serão aquelas que no dia do juízo hão de dizer a Jesus Cristo:

“Senhor, por que jejuamos e fizemos penitência e não olhaste pará nós?” (Is 58, 3)

E lhes será respondido que por suas obras não mereceram recompensa, porque as praticavam para satisfazer sua inclinação própria e não para cumprir com a vontade de Deus:

“Vede, no dia de vosso jejum se encontrava a vossa vontade”

“Oh! Que grande mal é a vontade própria, exclama São Bernardo, pois que ela faz que as melhores obras deixem de o ser e até se tornem más, porque não correspondem à obediência” (In Cant. s. 71)

E a prova mais forte do agrado que causam a Deus as nossas obras é se foram feitas por obediência. Mesmo às coisas santas nos devemos dedicar sem apego à nossa vontade própria.

“Eu desejo só pouca coisa, dizia São Francisco de Sales, e esse pouco eu o desejo muito pouco”

Ele queria dizer que não era sua vontade própria que o levava a querer o pouco que desejava, mas unicamente a vontade de Deus, estando ele pronto a deixar tudo, logo que soubesse que isso não era conforme à vontade de Deus.

Oh! Que doce paz não goza aquele que nada mais deseja senão o que a obediência dele exige! São Doroteo, que pusera sua vontade inteira ao serviço da obediência, gozava de uma paz inalterável. Temendo, porém, uma cilada do demônio, perguntou ao Abade João:

“Dizei-me, pai, donde provém que eu, na vida que sigo, sinto uma paz que não permite desejar nada mais no mundo?”

“Meu filho, respondeu-lhe o Abade, essa paz é o fruto da obediência” (S. Doroth. Doclr., 5)

De fato, que poderá existir de mais tranquilizador para aquele que ama a Deus do que o pensamento de que ele faz a vontade de Deus em todas as ações que pratica? Com razão pode se julgar feliz e exclamar, com o profeta: “Felizes somos, ó Israel, porque as coisas que agradam a Deus nos são manifestas” (Br 4, 4); sou sobremaneira feliz, porque eu sei que cumpro com a vontade de Deus em tudo o que pratico por obediência, “oh! Que doçura nas palavras: Vontade de Deus”, exclamava Santa Madalena de Pazzi. São Lourenço Justiniano escreve:

“Aquele que renuncia à sua própria vontade, arroja de si uma pesada carga” (Hom. de S. Bened.)

Isso experimentam principalmente aqueles que vivem em família ou estão ao serviço de outros. Se eles se atém à sua vontade própria, vivem em uma perturbação contínua e têm muitas vezes um inferno em seu coração.

Ouçamos o que Santa Maria Madalena de Pazzi disse uma vez em um êxtase sobre o dano que causa às almas piedosas a vontade própria:

“Vejo diante de mim uma multidão de almas, entre as quais uma que, durante a santa comunhão, está profundamente recolhida, mas muitas vezes não passa uma hora sem que ela se exaspere se alguma coisa não corre conforme seu desejo. Vejo uma outra, toda inflamada no amor de Deus durante a Santa Missa, mas quando se chama a sua atenção para alguma falta sua, não quer acreditar que tenha essa falta e mostra-se cheia de vaidade e amor-próprio. Vejo uma outra, que parece querer igualar a um Santo Antão na aspereza de vida, mas quando a obediência lhe proíbe essa austeridade, opõe-se a isso e não quer sujeitar-se. Uma outra é, no refeitório, mortificada e séria; mas compraz-se em sua mortificação e deseja passar por mais santa que as outras; se a tratam com atenção, julga ser demasiada em vista de sua pessoa, mas se lhe falta alguma coisa, pensa que é menosprezada. Uma outra se esforça seriamente para ostentar a sua sabedoria, que se julga que ela quer superar um Santo Agostinho; doutro lado, observa-se em seus discursos uma certa reserva, para ser tida em conta de perfeita, etc. Uma outra, quando se trata de praticar a caridade com o próximo, está gostosamente: pronta a renunciar a todas as comodidades para auxiliar a seu semelhante; mas depois ela quer que lhe agradeçam e que todos a louvem”

Volvamos, entretanto, nossos olhos para nós mesmos, alma cristã. Se queres te santificar e gozar de uma paz inalterável, procura, quantas vezes puderes, mortificar tua vontade própria; nada faças por satisfação própria, mas tudo para contentar a Deus; para isso renuncia a todos os vãos desejos e a todas as inclinações desregradas. Os mundanos se esforçam quanto podem para contentar sua vontade própria; os santos, pelo contrário, para mortificá-la, e procuram ocasião para isso. Santo André Avelino, como se diz no Breviário, fez o voto de se opor sempre à sua vontade própria. Quanto a ti, propõe-te ao menos praticar cotidianamente um certo número de atos de abnegação própria. Não te entristeças se teus pais ou superiores ou teu confessor te negam alguma coisa ou te impõem outra que contraria a teu amor-próprio; podes estar certo que, em tais casos, adquires mais merecimentos por tua obediência que praticando por própria vontade muitos atos de penitência e exercícios de piedade.

Concluo com as palavras que o Pe. Torres escreveu a uma pessoa piedosa, para animá-la a renunciar-se a si mesma e a todas as coisas criadas, para amar unicamente a Deus:

“Pois que o Senhor vos deu uma boa ocasião para padecerdes e para vos excederdes no desapego, procurai também aumentar o amor do vosso coração para com Ele, esse amor, do qual se diz que é forte como a morte. Oh! Possa esse amor vos desprender de todas as criaturas, de todas as atenções humanas, de tudo que é apreciado pelo mundo, de vossas inclinações, de todo o vosso ser, para que nada vos impeça de prender-vos a vosso amado Salvador com todos os vossos pensamentos, desejos e inclinações. Por ele deve suspirar o vosso coração, só a Ele prender-se vossa vontade, só com Ele ocupar-se o vosso espírito. Se vossa mão trabalha, se vosso pé dá um passo, fazei tudo isso por vosso muito amado Jesus e em união com Ele… Para alcançar esse amor, deveis renunciar, cotidianamente, diante de Jesus crucificado, tudo pelo que sentis ainda apego: honras, comodidades, consolações, parentes. Deveis protestar que não aspirais a nenhuma outra honra do que à ignomínia de Jesus Cristo, a nenhuma outro tesouro que ao seu amor, a nenhuma outra comodidade que à sua cruz, a nenhum outro objeto que a Ele só, que é o vosso muito amado esposo. Se, por exemplo, vos dirigis ao jardim ou olhais para o céu, deveis muitas vezes convidar a todas as criaturas, com a voz de vosso coração, a amarem a vosso amado Jesus. Eu desejo que fujais de qualquer conversa que não exale o odor de vosso Salvador, que abandoneis qualquer ação que não pode servir para glorificar a vosso esposo divino”

IV. A Mortificação e o Redentor

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

A mortificação tem por fim restabelecer em nós a ordem perturbada pelo pecado e abrandar todas as nossas potências para submetê-las plenamente à ação da graça. Mata o velho homem, o homem do pecado, para fazer viver em seu lugar o homem novo, o homem de justiça e santidade. Ora, Jesus Cristo é precisamente esse homem novo, esse homem de justiça e santidade que devemos fazer viver em nós por sua graça. Jesus Cristo era a ordem, a justiça, a santidade essencial. À sua vontade, plenamente submissa a Deus, obedeciam docilmente todas as suas faculdades e todos os seus sentidos, tanto internos como externos; em tudo a sua vida era divina. A mortificação, pois, não tinha nele nenhuma razão de ser; nada havia a mortificar lá onde tudo era vida verdadeira, sobrenatural e divina.

O R. P. Bouchage descreve magnificamente essa santidade de Jesus Cristo; citemos essa bela passagem:

“Homem infeliz sou eu, quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7, 24)

Não se pode pensar nessa lamentação sem se comover: tanto mais que temos cem vezes mais razão do que São Paulo de gemer pelas revoltas da natureza desordenada. Nosso Senhor não conheceu essas desordens e combates; o seu corpo imaculado, calmo e forte como a sua alma, vivia em uma ordem perfeita. Jamais a menor desordem; jamais essas imaginações que espantam a virtude, esses desejos que queimam as asas da inocência, essas apreensões desregradas que envenenam a vida. Em nosso Senhor o espírito voltado para o céu contemplava com segurança a plena verdade e desprezava as artimanhas sofísticas da objeção; o coração insensível a toda alegria falsa ou estéril não se abria senão aos raios da pura e divina beleza; os sentidos imaculados e dóceis não conheciam a impura revolta; a vontade invariável e amorosamente fixa no dever cumpria as ordens divinas sem tristeza nem desfalecimentos; tudo, numa palavra, nesse modelo adorável da santidade humana, andava em ordem perfeitíssima. Quem conceberá tão feliz estado? Quem poderá imaginar a serenidade duma vida em que corpo e alma são assim regidos sem constrangimento pelo beneplácito de Deus? E que cristão não desejaria tal estado de coisas? Ah! Se o nosso corpo não lutasse contra o nosso espírito, se o nosso espírito não lutasse contra a fé, se o nosso coração não lutasse contra Deus, Deus em nós viveria e a nossa vida seria uma espécie de bem-aventurança celeste.

Passemos em revista todas as potências de Jesus Cristo, todas as suas faculdades humanas, todas as suas paixões, estudemos os seus prazeres, as suas tristezas, os seus desejos, o seu coração, mesmo a sua cólera, e veremos em tudo uma ordem, uma tranquilidade, uma sujeição tais que ficamos pasmos. Olhai do presépio à cruz; que domínio tinha ele de si mesmo! Jamais uma queixa exagerada, um movimento de ódio, um sopro de orgulho, em toda parte a resignação, a constância, a paz; em seus passos, em suas palavras diante dos juízos, no meio dos amigos, sempre se sente que a razão, a sabedoria e a verdade são os únicos moveis da sua vida, de todas as suas ações. Que espetáculo!

O ouro não pode roubar a Jesus um só olhar de complacência; os louvores nunca o impressionaram o insulto deixou-o sempre calmo. Ousaria pensar que a curiosidade o dissipou uma só vez ousaria dizer que uma só vez a sua imaginação foi perturbada por imagens tolas e vãs? Era como morto para tudo que não era Deus nem para Deus. Eis o nosso Modelo: comparemo-nos a ele, vejamos se lhe parecemos. Ah! Um nada nos enfatua ou nos abate. O nosso orgulho é tão vivo, a nossa sensualidade tão alerta, a nossa I imaginação tão livre, que caímos a cada instante.

Essa santidade sublime de Jesus Cristo é o modelo que devemos procurar reproduzir em nós. Ele a possuía sem combate, porque não tinha a vencer nenhuma resistência, nenhuma oposição; nós, porém, só chegaremos a ela por uma luta enérgica contra nós mesmos, por uma mortificação constante e generosa. O bom Mestre quer, entretanto, também aqui, sustentar a nossa coragem e dirigir os nossos esforços pelas privações e sacrifícios que se impõe livremente.

Ele gozava a visão da Essência divina. A divina beatitude não inundava só a sua alma, mas redundava em seu corpo e O glorificava, tomando-O impassível e incorruptível. Mas, como ensina o Doutor Angélico, para expiar os nossos pecados, para nos facilitar a fé em sua encarnação e dar-nos o exemplo da paciência nos sofrimentos, digamos ainda, para nos animar a lutar contra nossa natureza rebelde, enfim, e, sobretudo para nos mostrar o seu amor e cativar o nosso Jesus quis sofrer. Mantinha, pois, na parte superior da sua alma, pelo poder da sua vontade divina, os efeitos da visão beatífica, sem os deixar difundirem- se pelo corpo nem pelas potências sensíveis.

Sem provar a menor perturbação na parte superior da sua alma sempre arrebatada em Deus, com uma natureza sensível que, em extrema delicada, repugnava ao sofrimento, Jesus Cristo, por uma livre escolha da sua vontade, lança-se num oceano de amarguras. Não só não segue os seus gostos naturais: Christus non sibi placuit, mas contraria-os em tudo. Não só recusa a seu corpo e aos seus sentidos os gozos que a beatitude da alma devia neles transbordar, mas satura-se de sofrimento. Suportará o calor e o frio, a fome e a sede; e na sua sede dar-lhe-ão fel e vinagre. Todos os seus sentidos terão seu martírio particular. E enquanto a sua carne inocente é atormentada de mil maneiras pelas fadigas e privações, e finalmente imolada nos mais cruéis suplícios, entrega o seu coração às angústias do temor e às depressões da tristeza, satura-se de amarguras, de desprezos e de opróbrios; a sua vida é uma longa e dolorosa agonia.

É Ele, pois, o modelo que devemos procurar reproduzir em nós com fervor. Saberemos impor às nossas faculdades rebeldes os sacrifícios que Ele impunha a seus sentidos perfeitamente submissos; e se pudéssemos, por uma mortificação generosa, submeter tudo em nós à ação da graça, como em Jesus Cristo, tudo seria submisso ao impulso da vontade divina. É assim que nos aproximaremos desse ideal de toda justiça e santidade.

V. A Prática da Mortificação

O homem de boa vontade, que quer observar a sua Regra e corresponder aos desejos de Jesus Cristo, no começo do mês de setembro, ou, melhor ainda, à aproximação desse mês, perguntar-se-á, por um sério exame, a que ponto já chegou em relação à mortificação. É preciso que se decida a lutar sempre mais generosamente contra si mesmo e que organize sabiamente essa luta para que ela, evitando todo exagero, todo excesso, seja precisa e enérgica, de modo a ser deveras eficaz. Deve, pois, estudar com lealdade para descobrir os pontos fracos da sua alma; se ele não se conhece, sobretudo se não quer ver e confessarem-se os instintos maus que nele dominam e que são particularmente funestos, como poderá atacá-los vigorosamente? Nesse caso a luta será nula e sem resultado. Examine-se, pois, sinceramente depois de implorado o auxílio divino. Quando tiver descoberto as tendências más que nele predominam e as circunstâncias particulares em que se manifestam habitualmente, decidir-se-á a concentrar os seus esforços para esse lado. Esteja resolvido a vigiar-se atentamente para surpreender, já ao nascer, os movimentos da sua má natureza, e para reprimi-los logo e sem piedade. Não se limitará a essa repressão. Determinar-se-á ainda com generosidade com as devidas autorizações, as mortificações interiores e exteriores que oporá voluntariamente a suas más tendências. Precisará, quanto possível, o número desses atos e os momentos em que os porá e a sanção com que punirá as infidelidades.

Fará dessa luta interna a grande preocupação dos seus dias. Prossegui-la-á nas orações, nos exercícios de piedade, no trabalho, numa palavra, sempre e em toda parte.

Na oração animar-se-á sempre mais ao combate; esforçar-se-á por compreender sempre melhor o que deve combater em si e a maneira eficaz de travar esse combate; pedirá, enfim, os socorros necessários.
Considerará que se não pode servir a dois senhores ao mesmo tempo, e que a vida da graça não pode harmonizar-se com a vida da natureza. Contemplará as devastações hediondas da mortificação e as preciosas vantagens da imortificação; a escravidão vergonhosa da alma imortificada e a paz deliciosa que a alma mortificada encontra na união com Deus. Considerará, sobretudo, a Jesus Cristo, contrariando em tudo a sua natureza tão delicada e saturando-a constantemente de dor e amarguras; e para pagar amor com amor a Jesus, decidir-se-á a abraçar generosamente a vida de mortificação e a destruir absolutamente tudo o que a impedir de ser toda de Jesus, seu bom Mestre. Pedirá com ardor as luzes e as forças necessárias para ser fiel, e fará em seu coração todos os atos de renúncia que a graça lhe inspirar.

Ato e resolução. — Jesus, devo viver a vossa vida divina, e, reproduzindo em mim a imagem fiel das vossas virtudes, devo ser um outro vós mesmo. Ah! Meu Deus, a minha natureza pervertida sente repugnância dessa vida divina, e tudo em mim me afasta de vós e me lança na vida de pecado. Não posso, pois, pertencer-vos, Jesus, senão domando as minhas potências e reprimindo os seus maus instintos para submetê-los inteiramente à vossa graça. Jesus, a vossa natureza era a inocência e a pureza, e não obstante, por meu amor, a contrariastes e fizestes sofrer. Por amor de vós e para a vós me assemelhar, quero lutar contra mim mesmo e domar por uma mortificação generosa: o meu espírito, interditando-lhe todo pensamento estranho a vós; a minha vontade, sujeitando-a a obediência perfeita; o meu coração, arrancando-lhe toda fibra de afeto que não seja vós; o meu corpo e os meus sentidos, pregando-os à cruz convosco; quero que tudo em mim obedeça à lei do vosso amor. Quero especialmente reprimir tal desordem, tal tendência, tal apego que me afasta de vós e contraria a vossa vida em mim; Jesus dai-me vossa força e vosso amor; ó Maria, sustentai meus braços nessa luta contra mim mesmo, afim de que Jesus viva em mim.

No correr do dia o religioso fervoroso terá cuidado de renovar de tempo em tempo esse ato e essa resolução. Multiplicará também as súplicas ardentes a Jesus e Maria, para obter o espírito de mortificação. Esse será ainda, com o amor e a perseverança, o objeto principal das suas súplicas nos exercícios de piedade.

Durante o trabalho procurará nunca se deixar dirigir por motivo natural. Purificando sempre a sua intenção, protestará não querer senão a obediência e a vontade de Deus; e se tiver algum lazer, escolherá de preferência a ocupação contrária a seus gostos.

Quanto à prática da mortificação, terá a peito aceitar com submissão perfeita e até com alegria as mortificações ou contrariedades que a Providência lhe enviar pelos superiores, pelos confrades, em seu ministério, etc. Será fiel às práticas recomendadas pela Regra ou pelos piedosos costumes da comunidade.

Renovará cada dia e guardará lealmente as suas resoluções, cumprindo todos os atos que se tiver prescrito.

Por exames sérios dirigirá, enfim, a sua conduta, pedirá perdão das suas infidelidades e as expiará por uma penitência sincera.

VI. Práticas da Mortificação Externa

Acolhamos os conselhos práticos de Santo Afonso Maria de Ligório.

A mortificação externa é pouco praticada porque é pouco compreendida. Muitos julgam que ela consiste em se trazer um hábito de penitência, em se flagelar rudemente, em dormir na terra nua, em jejuar rigorosamente, em uma palavra, em se martirizar a cada instante e de todo o modo possível. Como, porém, seus trabalhos ou sua fraca saúde não lhes permitem tais penitências, ou então porque seus superiores os desviam disso, julgam que a mortificação externa não é para eles. Enganam-se, porém, muito. Aquelas penitências extraordinárias podem ser praticadas por poucos cristãos, chamados por Deus para um tal modo de vida. Mas todos nós devemos manter o nosso corpo em rigoroso regime, porque somos pecadores. E, para isso, cada um de nós tem os meios. Podemos praticar a mortificação externa no uso de todos os nossos sentidos, em todas as nossas ações, em todos o passos e condições de nossa vida.

Para isso basta abraçar aquilo que é difícil à nossa natureza. Por exemplo, de manhã, levantar-se a uma hora fixa, entregando-se com pontualidade à oração, assistir ao Santo Sacrifício da Missa, renunciar a um prazer proibido ou a uma leitura perigosa, obedecer prontamente às ordens dos pais ou superiores, cumprir principalmente com fidelidade os deveres e os trabalhos cotidianos, suportar com paciência tribulações e sofrimentos: são, essas coisas, todas, mortificações que, praticadas com pura intenção, são muito agradáveis a Deus e mui meritórias para o céu.

Falaremos aqui, alma cristã, de várias mortificações pequenas a que te podes sujeitar sem perigo para tua saúde e com sumo proveito para tua alma.

Mortificação da Vista

As primeiras setas, que ferem uma alma casta e às vezes a matam, entram pelos olhos. Por meio dos olhos entram no espírito os maus pensamentos.

“Não se deseja o que não se vê”, diz São Francisco de Sales

Não leias, por isso, nunca livros proibidos ou perigosos. Renuncia, de vez em quando, ao prazer de ver coisas extraordinárias, ainda que sejam inteiramente decorosas.

Segundo São Jerônimo (Ep. ad Fur.), é o rosto o espelho da alma e os olhos castos dão testemunho da castidade do coração.

Mortificação do Ouvido

Evita ouvir conversas inconvenientes ou difamações, e até mesmo conversas mundanas, sem necessidade; pois elas, pelo menos, enchem nossa cabeça com uma multidão de pensamentos e imaginações que nos distraem e perturbam mais tarde nas nossas orações e exercícios de piedade. Se assistires a conversas inúteis, procura quanto possível dar-lhes outra direção, propondo, por exemplo, uma importante questão. Se isso não der resultado, procura retirar-te, ou, ao menos, cala-te e baixa os olhos para mostrar que não achas gosto em tais conversas.

Mortificação do Olfato

Renuncia a todos os vãos perfumes, sejam quais forem; suporta antes, de boa vontade, o mau cheiro que reina em geral nos quartos dos doentes. Imita o exemplo dos santos que, animados pelo espírito de caridade e mortificação, sentiam tanto gosto no ar corrompido das enfermarias, como se estivessem em jardins de flores odoríferas.

Mortificação do Tato

Quanto ao tato, esforça-te por evitar qualquer falta, pois cada falta neste sentido contém um perigo de morte eterna para a alma. Emprega toda a modéstia e cuidado não só a respeito dos outros, mas também de ti mesmo, para conservar a bela joia da pureza. Procura, quanto possível, refrear pela mortificação esse sentido.

São João da Cruz dizia que se alguém ensinasse que a mortificação do tato não é necessária, não se lhe deveria dar crédito, ainda que operasse milagres. Jesus Cristo mesmo disse uma vez à Madre Maria de Jesus, carmelita:

“O mundo precipitou-se no abismo, por causa do gozo, e não da mortificação”

Se não temos a coragem de crucificar a nossa carne com penitências, ao menos esforcemo-nos por suportar com paciência as pequenas contrariedades que Deus mesmo nos envia, como doenças, calor, frio, etc. Digamos com São Bernardo (Medit., c. 15)

“O desprezador de Deus deve ser esmagado; ele merece a morte: deve ser crucificado”

Sim, meu Deus, é justo que quem Vos desprezou seja castigado; eu mereço a morte eterna; seja eu, pois, crucificado neste mundo, para que não sofra eternamente no outro mundo.

Mortificação do Paladar

Quanto à mortificação do paladar, será bom desenvolver mais a fundo a necessidade, como a maneira, de nos mortificarmos nesse sentido.

1. Santo André Avelino diz que quem deseja alcançar a perfeição deve começar com uma séria mortificação do gosto. Antes dele já o afirmara São Gregório (Mor., 1. 30, c. 26):

“Para se poder dispor para o combate espiritual, deve-se reprimir a gula”

O comer, porém, satisfaz necessariamente ao paladar: não nos será, pois, lícito comer coisa alguma? Certamente devemos comer: Deus mesmo quer que, por esse meio, conservemos a vida do corpo para o servirmos enquanto nos permite ficar no mundo. Devemos, porém, cuidar de nosso corpo do mesmo modo, diz o Pe. Vicente Carafa, como o faria um rei poderoso com um animal que ele, com as próprias mãos, tivesse de almofaçar mais vezes durante o dia; seguramente cumpriria o seu dever: mas, como? Contrariado e desgostoso e o mais depressa possível.

“Deve-se comer para viver, diz São Francisco de Sales, e não viver para comer”

Parece, contudo, que muitos vivem só para comer, como os irracionais. O homem assemelha-se ao animal, diz São Bernardo, e deixa de ser espiritual e racional se ele gosta da comida como o animal. Assim assemelhou-se aos animais o infeliz Adão, comendo do fruto proibido. Se os animais tivessem tido o uso da razão, acrescenta o mesmo Santo (In Cant., s. 35), ao verem Adão se esquecer de Deus e de sua salvação eterna por causa do miserável desejo de uma fruta, certamente haveriam de exclamar:

“Vede, Adão se tornou um animal, como nós!”

Isso levou Santa Catarina de Sena a dizer:

“É impossível que aquele que se não mortifica no comer, conserve a inocência, visto que Adão a perdeu em razão de seu gosto de comer”

Como é triste ver homens “cujo Deus é o ventre” (Fl 3, 19).

Tomemos cuidado para que não sejamos subjugados por esse vício animal. É verdade que nos devemos alimentar para conservação da vida, diz Santo Agostinho; mas devem-se tomar os alimentos como os remédios, isto é, só tanto quanto necessário e nada mais. A intemperança no comer prejudica a alma e o corpo. Quanto ao corpo, é fora de dúvida que grande número de doenças provém desse vício; apoplexia, dor de cabeça, dores de estômago e outros males provêm muitas vezes do muito comer. As doenças do corpo, porém, são o menor mal; um mal muito pior são as doenças da alma que disso se originam.

Primeiramente obscurece esse vício o entendimento, como ensina Santo Tomás, e o torna imprestável para os exercícios espirituais, particularmente para a oração. Como o jejum dispõe a alma para a meditação de Deus e dos bens eternos, assim a intemperança a retrai disso. Segundo São João Crisóstomo, aquele que enche o estômago com comidas é semelhante a um navio muito carregado, que apenas se pode mover do lugar; ele se acha em grande perigo de afundar, se uma tempestade de tentações lhe advém.

Além disso, quem concede toda a liberdade a seu paladar, facilmente estenderá a mesma liberdade aos outros sentidos; pois, se o recolhimento de espirito desapareceu, facilmente se cometem ainda outras faltas por palavras e obras. O pior é que, pela intemperança no comer e beber, expõe-se a castidade a um grande perigo. “Excessiva saciedade produz lascívia”, diz São Jerônimo (Adv. Jovn., 1. 2). E Cassiano afirma que é simplesmente impossível ficar livre de tentações impuras, enchendo-se o estômago com comidas.

Os santos, justamente porque queriam conservar a castidade, eram tão rigorosos na mortificação do gosto.

“Se o demônio é vencido nas tentações à intemperança, diz o Doutor Angélico, não continua a nos tentar à impureza”

Os que cuidam em mortificar o paladar fazem contínuos progressos na vida espiritual. Adquirem mais facilidade em mortificar os outros sentidos e em praticar as outras virtudes. Pelo jejum, assim se exprime a Santa Igreja em suas orações, concede o Senhor à nossa alma a força de superar os vícios, de se elevar acima das coisas terrenas, de praticar a virtude e adquirir merecimentos infinitos (Praef. Quadrag.).

Os homens sensuais objetam que Deus criou os alimentos para que nos utilizemos deles. Mas os cristãos fervorosos são da opinião do venerável Pe. Vicente Carafa, que diz, como notamos acima, que Deus nos deu as coisas deste mundo não só para nosso gozo, mas também para que tivéssemos ocasião de Lhe fazer um sacrifício. Quem é dado à gulodice e não se esforça por se mortificar nesse ponto, nunca fará um notável progresso na vida interior. Regularmente se come muitas vezes durante o dia; quem, pois, não procura mortificar o desejo de comer, cometerá cotidianamente muitas faltas.

2. Vejamos agora o modo como devemos mortificar o nosso paladar.

a) Quanto à qualidade das comidas, diz São Boaventura que não se devem escolher comidas esquisitas, mas contentar-se com pratos simples. Segundo o mesmo Santo, é sinal de alguém estar muito atrasado na vida espiritual não ficar contente com as comidas que se lhes apresentem e desejar outras que agradam mais ao paladar, ou requerer que sejam preparadas de um modo particular. Mui diversamente procede quem é mortificado: contenta-se com o que se lhe dá e se diferentes pratos são trazidos, certamente escolherá aqueles que menos satisfazem ao paladar, contanto que não lhe façam mal.

É muito recomendável privar-se, por mortificação, de temperos desnecessários, que só servem para lisonjear o paladar. O tempero de que usavam os santos era a cinza e o absinto. Não exijo de ti, alma cristã, tais mortificações, nem tampouco muitos jejuns extraordinários. Como não vives unicamente para ti, em uma solidão, mas na sociedade, com outros homens, deves geralmente evitar tudo o que dá na vista, segundo o conselho de Cassiano, porque isso é perigoso para a humildade.

“Quando se está à mesa em companhia dos outros, dizia São Filipe Néri, deve-se comer de tudo”

Por isso dizia aos membros de sua Congregação:

“Fugi da singularidade como de uma fonte de orgulho de espírito”

De resto, quem é animado pelo espirito de mortificação, acha facilmente meio de se mortificar sem que se note externamente. São João Clímaco comia de tudo o que se lhe servia, mas provava apenas cada prato, e, assim, praticava a mortificação sem perigo para a sua humildade.

Não sou, de forma alguma, contrário a que jejues com todo o rigor em certos dias particulares, como na sexta-feira ou no sábado ou nas vésperas das festas de Nosso Senhor ou em dias semelhantes, pois isso costumam fazer os cristãos verdadeiramente piedosos. Se, porém, não possuis tanta piedade ou se tuas enfermidades não te permitem guardar rigorosos jejuns, deves ao menos te contentar com o que te servirem o não te queixar das comidas.

b) Quanto à quantidade das comidas, diz São Boaventura:

“Não deves comer mais, nem mais vezes do que é necessário para sustentar e não para agravar teu corpo”

Por isso é uma regra, para todos os que querem levar uma vida devota, não comer nunca até à saciedade, como São Jerônimo aconselhava a Eustoquium, escrevendo-lhe:

“Sê sóbria no comer e nunca enchas o estômago”

Alguns jejuam num dia e comem demais no dia seguinte; é melhor, segundo São Jerônimo, tomar regularmente a alimentação necessária, do que comer demasiadamente depois do jejum. Com razão dizia um Padre do deserto:

“Quem come mais vezes, tendo, apesar disso, sempre fome, receberá uma recompensa maior do que aquele que come raras vezes, mas até à saciedade”

Se alguém quer reduzir seu sustento à justa medida, convém que o faça pouco a pouco, até que conheça pela experiência até onde pode ir na mortificação sem se causar sensível dano.

Para se livrar, porém, de toda a dúvida e inquietação a respeito do jejum e das privações, deve-se sujeitar ao parecer de seu diretor espiritual. Segundo São Bento e São Bernardo, as mortificações que praticamos, sem a permissão de nosso diretor espiritual, são antes atos de uma temeridade condenável do que obras meritórias. Contudo, todos devem tomar como regra o comer pouco à noite, mesmo quando lhes parecer que necessitam de mais; a fome de noite é, muitas vezes, só aparente e se passa um pouco só da justa medida, sente-se muito incômodo na manhã seguinte: sente-se dor de cabeça, dores de estômago, está-se indisposto e até incapaz de qualquer trabalho espiritual.

Quanto à medida que se deve guardar no beber, sem perigo algum para tua saúde, podes te impor a mortificação de nada beberes fora da refeição, a não ser no caso que devas ceder a um especial impulso da natureza, pára não te causares algum dano, como pode acontecer no verão. São Lourenço Justiniano, porém, nunca bebia coisa alguma fora da refeição, mesmo nos dias de maior calor, e quando se lhe perguntava como podia suportar a sede, respondia:

“Como poderei suportar as chamas do purgatório, se não puder suportar agora esta privação?”

Referindo-se ao vinho, diz a Sagrada Escritura:

“Não dês vinho aos reis” (Pr 31, 4)

Sob essa expressão de reis não se entendem os que reinam sobre nações, mas todos os homens que domam suas paixões e as submetem à razão. Infelizes daqueles que são dados ao vício da embriaguez, diz a Sagrada Escritura (Pr 23, 29). E por quê? Porque o vinho torna o homem luxurioso (Pr 20, 1). Por isso escreveu São Jerônimo à virgem Eustoquium:

“Se quiseres permanecer pura, como deve ser uma esposa de Jesus Cristo, evita o vinho como veneno: vinho e mocidade são duas iscas que inflamam o desejo para os prazeres proibidos” (Ep. 22 ad Eust.)

De tudo isso devemos deduzir que aqueles que não possuem virtude ou saúde suficiente para renunciar por completo ao vinho, devem ao menos servir-se dele com grande sobriedade, para não serem atormentados por mui fortes tentações impuras.

c) Sobre a questão quando e como se deve comer, São Boaventura nos ensina o seguinte: Primeiro, não se deve comer fora de hora, isto é, fora da hora da refeição comum. Um penitente de São Filipe Néri tinha esse defeito. O Santo o corrigiu com as palavras:

“Meu filho, se não te emendares dessa falta, nunca chegarás a ter uma vida espiritual”

Segundo, nunca se deve comer desregradamente, isto é, com avidez, por exemplo, enchendo a boca demais, com tal pressa, que antes de se engolir um bocado já se leva outro à boca. “Não sejas glutão em banquete algum” (Ecl 37, 22), diz-nos o Espírito Santo. Alem disso, devemos tomar os alimentos com a boa intenção de conservar as forças do corpo, para podermos servir ao Senhor.

A justa medida no comer exclui também um jejum imoderado, pelo qual se torna incapaz de cumprir com seus deveres de estado. Cometem muitas vezes essa falta os principiantes; levados por aquele zelo sensível que Deus costuma conceder-lhes no princípio, para animá-los no caminho da perfeição, impõem-se privações e jejuns excessivos, que têm por resultado transtornar-lhes a saúde e fazê-los abandonar tudo. O patrão que entrega seu cavalo a um criado para que o trate, certamente o repreenderá não só se nada der ao cavalo, como se der demais, pois o dono não se poderá utilizar dele quando quiser.

“Uma temperança constante e regrada, diz São Francisco de Sales, é melhor que um rigoroso jejum de vez em quando, ao qual se faz seguir uma falta de mortificação” (Filotéia p. 3, c. 23)

Um tal jejum também nos expõe ao perigo de nos julgarmos mais piedosas do que aqueles que não nos imitam no jejum. De um lado, pois, devemos nos precaver contra um zelo indiscreto, e, de outra parte, não nos esquecer do que diz um grande mestre na vida espiritual, a saber, que o espírito raramente nos leva a excedermo-nos na mortificação, ao passo que o corpo muitas vezes nos induz a uma falsa compaixão e faz que o eximamos daquilo que o desagrada.

X. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Eis, por fim, algumas orações de Santo Afonso para crescermos no espírito de Mortificação.

Oração para pedir o espírito de mortificação

Amadíssimo Redentor meu, tenho vergonha de aparecer diante de Vós, vendo-me tão preso aos prazeres terrenos. Em toda a vossa vida, não pensastes senão em sofrer por mim; e eu não pensei até aqui senão em me satisfazer, esquecendo-me dos Vossos sofrimentos e do amor que me tendes. Ó meu Jesus, concedei-me o dom do Vosso santo amor, a fim de que me decida a abraçar todas as penas para Vos agradar. Dai-me a fôrça de recusar a mim mesmo todas as coisas que não são do Vosso agrado, e aceitar tudo o que repugna ao meu amor-próprio, as dores, perseguições, perda dos meus parentes, da minha saúde, da minha reputação, e todas as cruzes que me enviardes. Aceito tudo o que no presente me vem da Vossa mão, todos os males futuros, e sobretudo os sofrimentos da minha morte. Concedei-me a graça de viver unicamente para Vos agradar, e morrer fazendo-Vos de todo o coração o sacrifício da minha vida. Amo-Vos, ó meu soberano bem, e espero amar-Vos eternamente.

Oração a Maria

Amo-vos, ó Mãe de Jesus, que me obtivestes, pela vossa poderosa intercessão, tempo para fazer penitência!

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(OMER C.SS.R., Padre Saint. Escola da Perfeição Cristã para Seculares e Religiosos: Obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja. Editora Vozes, 1955, p. 233-250)

(AZEVEDO C.SS.R., Padre Oscar das Chagas. As Doze Virtudes para cada Mês do Ano. Editora Vozes, p. 172-191)

(OMER C.SS.R., Padre Saint. As Mais Belas Orações de Santo Afonso: Edição atualizada e acrescida de novos exercícios e orações. Editora Vozes, 1961, p. 310-311)