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A Pré-História Bíblica: Os setenta povos. Babel

Lição 1: Os Setenta Povos

Após o dilúvio, o texto bíblico apresenta em Gn 10 uma tabela de 70 povos, e, em 11,1-9, o episódio da torre de Babel. Examinemos cada trecho separadamente.

Quem lê Gn 10, talvez se sinta enfastiado por aí só encontrar listas de nomes, que representam os descendentes de Noé e de seus filhos Sem, Cam e Jafé. Todavia, analisando melhor o conteúdo de tal capítulo, o leitor descobre aí também uma profunda mensagem religiosa. Queira ler Gn 10,1-32.

1. Tentemos identificar os nomes apresentados… Verificamos então que

– os filhos de Jafé correspondem aos povos da Ásia Menor e das ilhas do Mediterrâneo, estendendo-se até o litoral da Espanha;

– os filhos de Cam ocupam as regiões do Sul: Egito, Etiópia, Arábia,
Canaã;

– os filhos de Sem habitam a Mesopotâmia e a Arábia.

A lista de 70 nomes deve compreender todos os povos que o autor sagrado julgava descender de Noé (70 é o número da plenitude, na simbologia antiga); algumas populações, como a dos amalecitas e a dos moabitas, não estão aí incluídas porque o autor as julgava de origem mais recente. Mais precisamente, podemos dizer que a tabela de Gn 10 exprime os conhecimentos que, a respeito do mundo habitado, podia ter um israelita da época de Salomão (séc. X a.C.) ou dos séc. VIII/VII a.C. Tal documento não pretende indicar a origem das raças, como se estas tivessem começado a se formar após o dilúvio a partir dos filhos de Noé: Jafé seria o pai da raça branca; Cam, o da raça negra; e Sem, o da raça amarela. Na verdade, as raças foram-se configurando aos poucos a partir da população humana primitiva, por efeito das circunstâncias de clima, trabalho, alimentação… como também por ação do fenômeno chamado “mutacionismo”. A Bíblia nada afirma a respeito da origem das mesmas; cf.
Módulo II da 4a Etapa deste curso.

2. E qual seria a mensagem religiosa de Gn 10? Distingamos dois pontos:

1) Unidade de origem de todos os povos. A ordem de crescer e multiplicar-se, dada pelo Senhor a Noé logo após o dilúvio (cf. 9, 1.7), se cumprira; isto era condição para que o homem exercesse o seu domínio sobre a terra (Gn 1,28), à imagem e semelhança do domínio de Deus (Gn 1,26). Todavia – quer notar o autor – essa dispersão dos homens não acarretou desunião ou antagonismo para a humanidade; todos os homens provêm do mesmo tronco e formam uma imensa família, como, aliás, nota também São Paulo em At 17,26.

Sem dúvida, na época mesma em que o autor compilava os nomes da sua tabela, Israel experimentara e experimentava ameaças por parte de povos vizinhos: os filisteus, os hititas, os amorreus, os jebuseus, os cananeus (cf. 1Sm; Nm 13,28s); além destes, os egípcios, os assírios e babilónicos constituíam permanente perigo para a subsistência de Israel. Ora nada disto transparece em Gn 10; aqui só se exprime a certeza da origem comum e da fraternidade de todos os homens. Na literatura de outros povos antigos não se encontra atitude semelhante: os estrangeiros costumam ser aí considerados bárbaros e objeto de desprezo.

2) A afirmação da unidade de origem de todos os povos significa que todos são chamados à salvação. Verdade é que essa salvação há de vir através de Abraão e da sua linhagem; é o que indica a tabela de Gn 11,10-26, que continua a listagem dos descendentes de Sem, de modo a chegar a Abraão (cf. 11,26). Todavia a ênfase dada aos semitas e a Abraão em toda a história a partir de Gn 12 ainda não se faz notar em Gn 10; Israel, em suas origens, aparece como um pequeno povo em meio aos demais povos (cf. Gn 10,22; 11,11); não são as suas armas nem a sua habilidade política que o fazem grande, mas unicamente o beneplácito e a escolha de Deus; Abraão foi chamado gratuitamente, sem ter merecido a sua vocação (cf. Gl 3,6-9; Rm 4,1-12).

Eis o significado religioso da tabela de Gn 10.

Lição 2: Gn 11,1-9 – exame do texto

Este episódio não tenciona explicar a origem das línguas, mas é portador de profunda doutrina teológica.

Examinemos, primeiramente, o que diz o texto sagrado. Ler Gn 11,1-9…

“A terra inteira” em Gn 11,1, por certo, não designa todo o globo, mas apenas a porção de terra que interessava à história da salvação.

“Uma só língua”, segundo os orientais, designava a unidade de cultura, religião, costumes – e também de idioma – existente em determinada região. Os antigos reis assírios e babilônios afirmavam “ter reduzido tal pais a uma só língua ou ter reduzido os homens a uma só boca”; queriam significar, com isto, que haviam imposto a este ou aquele povo conquistado a cultura, a religião, a mentalidade (principalmente) – e também a linguagem – do povo vencedor, extinguindo particularidades nacionais.

Em conseqüência, devemos dizer que Gn 11,1 nos coloca diante de uma população que professava a mesma mentalidade e a mesma cultura (sendo a unidade de idioma um aspecto apenas dessa uniformidade).

Tais homens conceberam o projeto de construir uma torre cujo cume chegasse até o céu; queriam também tornar o seu nome conhecido e famoso; cf. 11,3s.

Essa torre muito alta há de ser entendida à semelhança das torres babilónicas (ziggurats), que as escavações têm posto a descoberto: tinha a forma de uma pirâmide a patamares (três, quatro, cinco ou sete degraus ou patamares) à imitação de uma montanha. Eram monumentos religiosos ou templos pagãos. Os antigos babilônios, oriundos de regiões montanhosas, concebiam a terra como uma grande montanha e, em conseqüência, julgavam que os deuses habitavam nos cumes dos montes; por isto colocavam no último andar das suas pirâmides a habitação da Divindade ou o santuário dedicado ao Deus da cidade. A mais famosa dessas torres, na cidade mesma da Babilônia, era chamada “E-temen-an- ki” (= casa do fundamento do Céu e da terra), dedicada ao Deus Manduque, que não era senão o poder político da Babilônia divinizado. -Assim se entende que o empreendimento dos homens de Gn 11,1-9 era predominantemente religioso pagão.

Mais: tais homens queriam também criar para si um nome famoso, que os mantivesse unidos. Isto significa, em outros termos, que queriam formar um poderoso centro político e cultural, todo impregnado do culto de um ídolo; queriam constituir, longe do verdadeiro Deus, um reduto político e religioso que tivesse domínio universal; o símbolo desse poderio seria a torre muito alta ou o templo pagão.

O texto, a seguir, narra o desbaratamento de tal iniciativa. ”O Senhor resolveu confundir a linguagem daqueles homens soberbos, de modo que não entendessem mais a língua uns dos outros” (11,7). – Isto não quer dizer que o Senhor tenha realizado o milagre de multiplicar línguas instantaneamente, mas, à luz de quanto foi dito atrás, significa que o Senhor permitiu que a soberba daqueles homens afastados de Deus se voltasse contra eles mesmos: começaram a se desentender; os interesses pessoais foram prevalecendo sobre os interesses comunitários, de tal modo que não conseguiram continuar a sua obra e tiveram que se dispersar; esta dispersão acarretou, sem dúvida, a multiplicação dos idiomas como conseqüência remota da desintegração interior daquele grupo de homens apóstatas. A unidade inicial, carecendo de fundamento em Deus, foi ilusória: cedeu logo ao esfacelamento do grupo em parcelas alheias umas ás outras.

Por fim, o autor nota que à cidade inacabada se deu o nome de Babel ou Babilônia, ”pois foi lá que o Senhor confundiu a linguagem da terra inteira” (v. 2) . Não é necessário que, na base dessa indicação, identifiquemos a cidade de Gn 11 com a famosa capital da Babilônia. O autor sagrado muito provavelmente quis atribuir à cidade de Gn 11, que era símbolo do orgulho, o nome de Babilônia, pois esta, na história sagrada, se tornou o tipo do poderio deste mundo que se faz grande e insolente contra Deus (cf. Jr 51,20-58; Ap 18,21-19,5).

Procuremos agora o significado do episódio analisado.

Lição 3: A mensagem de Gn 11,1-9

1. Pode-se crer que o episódio da torre de Babel constitui um bloco literário redigido independentemente de sua moldura atual e nesta inserido pelo autor sagrado. De fato, ele interrompe as genealogias (cf. 10,1-32 e 11,10-32), intercalando-se entre a tabela geral dos descendentes de Sem e a lista particular que leva de Sem a Abraão. O episódio aí colocado significa que o mal desencadeado pelo primeiro pecado, reafirmado pelo fratricídio, punido pelo dilúvio, se vai alastrando sempre mais, de modo a explicar por que Deus quis chamar Abraão e com ele constituir um povo à parte (Gn 12).

2. Além disto, cabe a Gn 11,1-9 uma função paralela à de Gn 3: o episódio do pecado original mostra como na raiz da história universal está o pecado ou a soberba. Analogamente, o episódio de Gn 11,1-9 mostra como na raiz da história de cada povo concreto está também o pecado ou a soberba: os homens em Sinear quiseram ser poderosos como Deus, revoltando-se contra Deus e por isto foram desbaratados; ora a desagregação do gênero humano, a origem das nações egoístas, como as conhece a história, se devem a um pecado; não correspondem ao plano ideal traçado por Deus, quer dizer o autor sagrado. Mas, assim como após a culpa original o Senhor reanimou as esperanças do gênero humano (cf. Gn 3,15s), assim após o episódio de Babel o Senhor prometeu reunir os homens desagregados pela idolatria e o vício, chamando-os ã adoração do único Deus, o Deus revelado a Abraão (cf. Gn 12,3).

3. Um terceiro ponto se deduz ainda do episódio de Babel.

Os povoa antigos tinham consciência de que a diversidade de línguas, fator de divisão entre os homens, é uma desgraça ou mesmo o castigo de um pecado. Assim, conforme os persas, a multiplicidade provém do Deus mau Arimã, que introduziu cisão entre os habitantes do globo, ensinando-lhes trinta línguas. Uma lenda hindu conta que os homens certa vez quiseram chegar até o céu subindo por uma árvore tão alta que o atingia; todavia a árvore foi esfacelada e seus ramos espalhados pela superfície da terra; tal árvore, para os hindus, significava a unidade do gênero humano; assim unidos, os homens se sentiam tão fortes que se quiseram igualar à Divindade; esta, em conseqüência, desbaratou os habitantes do globo. Os sumeros, movidos pelo mesmo sentimento, faziam entrar a unidade de língua na descrição da passada idade do ouro.

Ora também nos livros do Antigo Testamento a volta dos povos à unidade de uma só língua e uma só religião faz parte dos bens messiânicos. É o que promete Isaías: “Naquele dia haverá cinco cidades na terra do Egito que falarão a língua de Canaã e que prestarão juramento ao Senhor dos exércitos” (Is 19,18). A língua de Canaã, no caso, é o hebraico; a adesão ao idioma hebraico implicará, para o Egito, adesão à religião de Israel (assim como a divisão das línguas, em Gn 11, fora fator de idolatria). É de notar também o texto de Sf 3,9:

“Naquele tempo darei aos povos lábios puros, a fim de que invoquem todos o nome do Senhor e O sirvam de comum acordo”.

Ora na plenitude dos tempos Deus se dignou responder aos sentimentos dos povos antigos e de Israel, mandando o Redentor ao mundo. Como se sabe, a missão terrestre de Jesus foi consumada por uma multiplicação de línguas; conforme At 2, no dia de Pentecostes o Espírito Santo comunicou aos Apóstolos o dom de falar línguas diversas para congregar numa só grande família – a Igreja – os homens até então divididos. Em Babel desagregaram-se os afetos dos homens e, em conseqüência, as línguas se multiplicaram, surgindo grupos ou nações hostis entre si; ao contrário, em Pentecostes os grupos nacionais foram reunidos pelas línguas multiplicadas; estas ocasionaram a unidade de sentimentos nos ouvintes, congregando-os num reino universal, que é o Reino de Deus iniciado na Igreja. A alma nova dos homens suscitada pelas línguas de Pentecostes faz que as barreiras antigas de culturas, idiomas e interesses já não sejam empecilho a que todos na Igreja se sintam irmãos unidos num só ideal: amar e servir a Deus – o que é realmente reinar.


Para ulterior aprofundamento, ver Módulo 39 deste Curso (bibliografia).

Perguntas sobre os setentas povos e Babel

1) Qual o significado religioso da tabela dos povos em Gn 10?
2) O episódio de Babel indica a origem das línguas da humanidade?
3) Qual a mensagem religiosa do episódio de Babel?
4) Queira relacionar entre si Babel e Pentecostes,

Caro cursista, aqui termina seu Curso Bíblico. Frutifique em sua vida como a semente lançada em terra boa e generosa! Que Ele continue a lhe falar!

Pe. Estêvão Bettencourt O.S.B.