Meditação para a Quarta-feira da Septuagésima
SUMARIO
Prosseguiremos as nossas meditações no Serviço de Deus, e veremos:
1.° Que todas as criaturas nos convidam a servir a Deus;
2.° Que elas nos oferecem os meios para isso.
— Tomaremos depois a resolução:
1.° De não nos comprazermos nas criaturas, mas só em Deus, que devemos ver em tudo;
2.° De nos servirmos de todas as coisas e de todos os acontecimentos terra como de outros tantos degraus para nos elevarmos a Deus, pela adoração e pelo amor da Sua Providência, da Sua sabedoria, da Sua paciência, da Sua bondade.
O nosso ramalhete espiritual será estas duas palavras dos santos:
“De que me servirá isto para Deus, para a eternidade?” – Quid hoc ad Deum? Quid hoc ad aeternitatem?
Meditação para o Dia
Adoremos o Criador fazendo todo o universo para o homem, e o homem para Deus. Bendigamo-lO por este plano admirável, que ata em um só feixe todo o conjunto da criação com o Criador, e repitamos no íntimo dos nossos corações, com um profundo sentimento de reconhecimento e de amor: Tudo o que existe, não existe senão para mim, e eu não existo senão para Deus.
PRIMEIRO PONTO
Todas as criaturas nos convidam a servir a Deus
As delícias, do paraíso e os tormentos do inferno a isto nos convidam, um pela esperança, outro pelo temor. Maria, os anjos e os santos a isto nos exortam com os seus exemplos (1). O céu, que está por cima das nossas cabeças, chama-nos por milhares de vozes:
“Quão desprezível é a terra a quem olha para mais alto!” – Quam sordet tellus, cum caelo aspicio
Dos céus, que me narram a glória de Deus, dirijo a minha vista para a terra: e lá todas as coisas terrestres me clamam igualmente a seu modo:
Não vos embaraceis conosco, elevai os vossos corações e os vossos espíritos para Aquele que nos criou para vós
Essa casa, em que habitais, clama-vos:
Amai a Deus, que vos deu as pedras de que se compõem as minhas paredes.
Esses móveis para o vosso uso, dizem-vos:
Amai a Deus, que ordenou que a terra produzisse a madeira de que somos feitos
O vestido, que vos cobre, diz-vos:
Amai a Deus, que forneceu a matéria de que fui tecido
As iguarias da vossa mesa, dizem-vos:
Amai a Deus, que criou esses animais, esses legumes, esses frutos de que vos alimentais
O sol, que vos alumia durante o dia, a lua e as estrelas, que vos guiam durante a noite, o fogo que vos aquece, a água que vos refrigera, o ar que respirais, a flor que alegra a vossa vista ou deleita o vosso olfato, clamam-vos:
“Elevai os corações” – Sursum corda
Os acontecimentos deste mundo falam-nos do mesmo modo: se são prósperos, convidam-vos a dizer: graças a Deus, que assim os dirigiu. Se são adversos, convidam-vos a aproveitar-vos deles, para crescer em conformidade com a vontade de Deus, em paciência, em humildade, em desapego, em santos desejos do céu, em oração, essa suprema consolação das almas aflitas, e a adquirir desta sorte abundantes méritos por cada ato de paciência, um florão de mais para a vossa corôa por cada vitória sobre vós mesmos. Finalmente, nada há, até o pecado, que não deva a seu modo elevar-nos a Deus por uma humildade cheia de confiança, por uma oração fervorosa como a do publicano, uma firme resolução de ter uma vida melhor em reparação do passado. Assim tudo contribui para bem dos que amam a Deus, diz São Paulo (2), até os pecados, acrescenta Santo Agostinho (3); e podemos ainda acrescentar: Até os pecados de outrem, porque hão de dar-nos ocasião para louvar e imitar a paciência de Deus, a Sua bondade, a Sua misericórdia, e para Lhe rogar pela conversão dos pobres pecadores.
Ouvimos nós esta voz, que sai de todas as partes da criação para nos convidar a amar e a servir a Deus? Os santos sabiam muito bem ouvi-la, e aproveitaram-se dela para se conservarem sempre recolhidos com Deus e animarem-se a ser perfeitos.
SEGUNDO PONTO
Todas as criaturas nos oferecem os meios de servir a Deus
Peçamos este segredo aos santos. Todas as criaturas eram para eles como outros tantos degraus, pelos quais se elevavam a Deus (4), como outros tantos espelhos, em que se refletiam aos olhos de sua fé as perfeições divinas, como outros tantos focos de amor em que o seu coração se abrasava sempre para com Deus, Sem se deterem jamais nas coisas criadas, passavam delas para Deus, como para o primeiro princípio e para o fim essencial de quanto existe, e por isso subiam todos os dias de virtude em virtude. Sigamos o seu exemplo. Vendo o céu, exclamem os nossos corações (5):
Louvado seja o Senhor, cuja eterna misericórdia fez para mim todas estas maravilhas!
Vendo a terra, as suas searas, os seus prados, os seus frutos e as suas flores, repitamos:
Louvado seja o Deus de amor, cuja eterna misericórdia fez para mim todas estas coisas!
Testemunhas de todos os acontecimentos do mundo, elevemo-nos no amor da Providência, que dirige tudo com intuitos cheios de sabedoria e de benevolência para com os escolhidos. Vendo até ps pecados da terra, elevemo-nos ao amor da paciência divina, que suporta em silêncio tantos ultrajes. Ditoso o que se serve assim de tudo para se elevar a Deus; mas desgraçado o que detendo-se na criatura, põe nela o seu fim, a sua consolação, a sua felicidade, e não olha para Deus senão de passagem, como uma coisa acessória na vida. Ele desconhece o destino das criaturas; e em vez de se elevar por elas a Deus, faz delas instrumentos de pecado e de condenação, que absorvem quase todos os seus pensamentos, cativam e corrompem o seu coração. Não cai eu nesta desordem?
Resoluções e ramalhete espiritual como acima
Referências:
(1) Quod isti et istae, cur non ego?
(2) Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum (Rm 8, 28)
(3) Etiam peccata
(4) Omnia creatura scala ad Deum
(5) Confitemini Domino quoniam bonus, quoniam in aeternum misericordia ejus (Sl 85, 1)
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(HAMON, Monsenhor André Jean Marie. Meditações para todos os dias do ano: Para uso dos Sacerdotes, Religiosos e dos Fiéis. Livraria Chardron, de Lélo & Irmão – Porto, 1904, Tomo II, p. 30-33)