Meditação para a Quinta-feira da Septuagésima
SUMARIO
Consideraremos na nossa oração como se deve servir a Deus pelo uso das criaturas; e veremos como, para isto, convêm usar:
1.º Das coisas necessárias à vida;
2.° Das coisas não necessárias.
— Tomaremos depois a resolução:
1.° De não olharmos tudo o que nos acontece, e tudo o que temos a fazer, senão como meios de nos santificarmos;
2.° De nada desejarmos na terra senão a vontade de Deus e de preferirmos em todas as coisas o que melhor nos conduz ao nosso fim, que é a salvação.
O nosso ramalhete espiritual será, como ontem:
“De que me servirá isto para Deus, para a eternidade?” – Quid hoc ad Deum? Quid hoc ad aeternitatem?
Meditação para o Dia
Adoremos a Deus como o fim essencial de todas as coisas, como o delicioso centro para que devem convergir todos os nossos pensamentos e afetos, todos os nossos projetos e atos. Tributemos-Lhe com este intuito todos os nossos respeitos.
PRIMEIRO PONTO
Como usar das coisas necessárias à vida
As coisas necessárias à vida são o dormir, o comer, o vestir, a habitação, os numerosos cuidados que o corpo requer, e o descanso, que a nossa fraqueza não pode dispensar. O homem, mundano põe os seus gozos nestas coisas desprezíveis e miseráveis. Dormir bem, comer bem, ter bons vestidos e uma boa casa, não precisar de nada, divertir-se e nada fazer, é, na sua opinião, a suprema felicidade, e de boa vontade se entregaria a ela para a eternidade. Mas o verdadeiro cristão pensa de muito diferente modo. Sente-se humilhado de estar sujeito a tantas necessidades, condenado a fingir-se morto durante esta grande parte de sua existência, que ele dá ao sono; a fingir-se animal multas vezes no dia, ruminando como a besta e apropriando-se, como ela, os alimentos; a esconder-se debaixo dos vestidos por uma vergonha muito legitima de si mesmo; e ter por sua habituação e seu bem-estar mais simples tantas precisões, para que é mister fazer contribuir os produtos da terra, a lã dos animais, e os braços de milhares de operários; finalmente, a nada fazer durante um tempo considerável de sua vida, porque de outra forma o espírito e o corpo sucumbiriam à fadiga. Se ele satisfaz estas tristes necessidades, não é senão gemendo e observando as três regras dos santos:
Recebei, agradecei, temei – Accipe, redde, time
1.° Recebei, recebei o puramente necessário, nunca coisa alguma mais; recebei, não para satisfazer o vosso corpo e tendo em vista o prazer, mas somente com a mira em obedecer a Deus, que assim o quer. Recebei com um espírito humilhado e resignado, que se sujeita à necessidade da sua condição em atenção à vontade de Deus, que é o seu único amor.
2.° Agradecei, recebendo o necessário, agradecei a Deus, que vo-lo dá em maior quantidade e mais vantajosas condições do que a muitos outros. Se este necessário apraz ao vosso gosto e aos vossos sentidos, agradecei a Deus, que vos amima e vos trata muito melhor do que mereceis; se não torna a aparecer-vos, agradecei ainda a Deus, que vos dá ocasião para vos mortificardes e adquirirdes méritos.
3.° Temei, temei de apegar o vosso coração à criatura, temei de receber mais do que o necessário, e sacrificai generosamente a Deus o supérfluo. Temei que o corpo entorpeça a alma; temei que muito saciado se não revolte (1).
Por meio destas santas regras desaparecerão a moleza, a intemperança, a perda do tempo, o prazer recebido pela única razão do prazer; por meio delas, todos os apetites desordenados terão um freio, todas as despesas inúteis serão diminuídas, e os desejos serão moderados. Quantas coisas de que posso abster-me! (2) dirão consigo; daí se formará um rico cabedal para a caridade; e o espírito de sacrifício, entrando em todo o procedimento, elevará a alma à santidade. Gemamos diante de Deus por termos seguido tão pouco estas santas regras, e proponhamo-nos conformar com elas para o futuro o nosso procedimento.
SEGUNDO PONTO
Como usar das coisas não necessárias da vida
Entendemos por coisas não necessárias, mais ou menos gozos que poderíamos alcançar, mais ou menos riquezas que poderíamos juntar, mais ou menos reputação, e glória que poderíamos adquirir, certo modo de vida, certas ocupações, certos passatempos, como jogos, visitas e outras coisas semelhantes.
A regra que devemos seguir neste ponto, é perguntarmos a nós mesmos: De que me servirá isto para Deus, para a eternidade? (3) Se é útil para este fim, devemos aceitá-lo com amor; se é prejudicial ou contrário, devemos rejeitá-lo com horror. Se não é em si nem inútil nem prejudicial, devemos olhá-lo com indiferença, não desejar antes uma coisa do que outra, antes a saúde do que a doença, antes a riqueza do que a pobreza, antes a honra do que o desprezo, antes a vida dilatada do que a vida curta. No uso das coisas criadas, aquelas que nos conduzirem com mais segurança ao nosso fim são a unica preferência legitima. Por conseguinte, como os exercícios de piedade bem feitos, uma profunda devoção na oração, uma meditação habitual, uma ocupação útil e moderada, me aproximarão mais de Deus, quero a isto aplicar-me. Como o pecado, as imperfeições voluntárias, as ocasiões perigosas, as ligações muito naturais, a distração, o excessivo desejo de ser bem sucedido, o trato demasiado com o mundo, me afastariam de Deus, a isso renuncio. Se encontrar no meu caminho coisas indiferentes, sacrificá-las-ei, e desde então se tornarão uteis à minha salvação. Ah! Porque não tenho ou seguido estas regras? Como teria vivido muito melhor!
Resoluções e ramalhete espiritual como acima
Referências:
(1) Qui delicate… nutrit servum suum, postea sentiet eum contumacem (Pr 29, 21)
(2) Quam multis non indigeo!
(3) Quid hoc ad Deum? Quid ad aeternitatem?
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(HAMON, Monsenhor André Jean Marie. Meditações para todos os dias do ano: Para uso dos Sacerdotes, Religiosos e dos Fiéis. Livraria Chardron, de Lélo & Irmão – Porto, 1904, Tomo II, p. 33-37)