Cum dilexisset suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos – “Como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13, 1)
Sumário. Posto que o Senhor é todo-poderoso, pode-se todavia dizer que foi vencido pelo amor. O amor levou-O a não só morrer por nós, pregado num patíbulo infame, como a instituir ainda o Santíssimo Sacramento, onde se dá a cada um sem reserva, sem interesse próprio e sempre. Mas se um Deus se dá a nós de tal modo, é de toda a justiça que nós também lhe façamos semelhante oferta; protestando que queremos servi-Lo em todas as coisas e sempre, sem aspirarmos à recompensa e unicamente para Lhe agradarmos e Lhe darmos gosto no tempo e na eternidade.
I. Nosso Deus é todo-poderoso: quem O poderá jamais vencer e subjugar? Todavia, diz São Bernardo, foi vencido e subjugado pelo seu amor para com os homens: Triumphat de Deo amor. Com efeito, o amor levou-O, não só a morrer condenado a um patíbulo infame; mas ainda a instituir o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, no qual se dá a nós sem reserva, sem interesse próprio e sempre.
Sem reserva: Totum tibi dedit, nihil sibi reliquit. Deu-se todo, não se reservou nada — diz São Crisóstomo. E São Francisco de Sales acrescenta: “Se um príncipe enviasse a um pobre algumas iguarias de sua mesa, não haveria nisto um sinal bem distinto de afeição? Que se diria, se lhe enviasse um banquete completo? Que seria enfim, se lhe desse para sustento alguma coisa de sua própria substância? Ora, Jesus, na santa comunhão, nos dá para sustento, não só uma parte de sua substância, mas o seu corpo inteiro: Accipite et comedite: hoc est corpus meum (1) — “Tomai e comei: isto é o meu corpo”. E com o corpo dá-nos também a sua alma e a sua divindade, de modo que, na palavra do Concilio de Trento, Jesus neste dom derramou todos os tesouros de seu amor para com os homens.
Nem foi Jesus levado à tamanha liberalidade por qualquer interesse próprio; porquanto, como observa São Paulo, instituiu este sacramento na mesma noite em que foi entregue: In qua nocte tradebatur (2), portanto, no mesmo tempo que os homens preparavam os açoites, os espinhos e a cruz para o fazerem morrer. Instituiu-o, além disso, sabendo a que insultos iria expô-lo este seu invento amoroso; pois que já previa que a maior parte dos homens não O quereriam reconhecer neste grande sacramento e que mesmo os que reconhecessem a sua divina presença pagar-lhe-iam o amor com irreverências e sacrilégios.
Finalmente, na santíssima Eucaristia Jesus se dá a nós sem cessar, não somente quanto à identidade de sua substância, mas também quanto ao tempo e a todos os lugares do universo; cumprindo assim à risca a sua divina promessa de fazer-se nosso companheiro perpétuo: Ecce ego vobiscum sum usque ad consummationem saeculi (3) — “Eis que estou convosco até à consumação do mundo”. É pois com razão que Santo Tomás chama a Eucaristia: sacramento do amor, penhor do amor; e São Bernardo: amor dos amores.
II. Se na santíssima Eucaristia Jesus Cristo se dá a nós sem reserva, sem interesse próprio e sem cessar, é de toda a justiça que nós também lhe façamos semelhante oferta: protestando que queremos servi-Lo em todas as coisas e para sempre, sem aspiração à recompensa; mas unicamente para Lhe agradarmos e Lhe dar gosto no tempo e na eternidade: Dilectus meus mihi, et ego illi (4) — “Meu amado é para mim e eu para Ele”.
Redentor meu amabilíssimo, eu me ofereço e entrego todo a Vós, com minha vontade e liberdade. Meu Jesus, de hoje por diante não quero ser meu; quero ser vosso e todo vosso. A Vós consagro todos os meus sentidos, afim de que me sirvam unicamente para Vos dar gosto. Que satisfação maior se pode ter, dizia São Pedro de Alcântara, do que em Vos dar gosto a Vós, ó Deus amabilíssimo, amantíssimo e gratíssimo? Consagro-Vos todas as minhas faculdades e quero que sejam todas vossas. Quero que a memória me sirva tão somente para me recordar dos vossos benefícios e do vosso amor; o entendimento para pensar unicamente em Vós, que sempre pensais em meu bem; a minha vontade para Vos amar unicamente a Vós meu Deus, meu tudo, e para querer somente o que Vós quereis. — Meu dulcíssimo Salvador, consagro e sacrifico-Vos hoje tudo o que tenho e tudo o que sou: os meus sentidos, os meus pensamentos, os meus afetos, os meus desejos, as minhas satisfações e inclinações, a minha liberdade; numa palavra, deposito em vossas mãos todo o meu corpo e toda a minha alma.
Aceitai, ó Majestade infinita, o sacrifício que de si mesmo Vos faz o pecador mais ingrato que até hoje tenha existido na terra, mas hoje se oferece e se consagra todo a Vós. Ó meu Senhor, disponde de mim segundo a vossa vontade. Vinde, ó fogo devorador, ó amor divino, e destruí em mim tudo o que é meu e desagrade a vossos olhos puríssimos, afim de que daqui em diante eu seja todo vosso e viva unicamente para cumprir não somente os vossos mandamentos e conselhos, mas também todos os vossos santos desejos e o que Vos dê maior satisfação. — Ó Maria Santíssima! Apresentai com as vossas mãos esta minha oferta à Santíssima Trindade e fazei que aceite e me conceda a graça de Lhe ser fiel até à morte.
Referências:
(1) Mt 26, 26
(2) 1 Cor 11, 23
(3) Mt 28, 20
(4) Ct 2, 16
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 126-129)