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São João na Ressurreição

Capítulo 9: São João na Ressurreição

I

As memórias de João nos transportam em seguida a três dias mais tarde. O discípulo retirara-se para uma casa em Jerusalém, talvez sua própria casa, como o insinua São Lucas, na qual hospedara a mãe de Deus, e que Nicéforo e outros historiadores dizem estar situada na colina de Sion. Pedro ali se achava com ele, acabrunhado pelos remorsos (1).

Foi ali que chegou à João a primeira notícia de um fato maravilhoso. No domingo pela manhã, entra precipitadamente uma mulher. Era Maria Madalena que corre e diz:

“Levaram o Senhor do sepulcro e não sei onde o puseram” – Cucurrit ergo Maria Magdalene, et venit ad Simonem Petrum et ad alium discipulum quem amabat Jesus, et dicit illis: Tulerunt Dominum de monumento, et nescimus ubi pouerunt eum (Jo 20, 2)

Que foi? Que veio esta mulher contar? E o que tinha visto?

Pela manhã algumas mulheres da Galileia, entre as quais o Evangelho cita Maria, mãe de Tiago o Menor ou o Justo; Salomé, mãe de João; Joanna, mulher de Chusa, da casa de Herodes, muito cedo se haviam dirigido ao sepulcro de Jesus. Era o sepulcro situado no centro de um jardim sobre a encosta da montanha do Calvário, e cavado no rochedo como se veem ainda os túmulos das Patriarcas e dos Reis de Judá. Essa gruta sepulcral e esse jardim eram de um Judeu distinto, José de Arimateia, que, auxiliado por Nicodemos, ali depositara o corpo do divino Mestre, depois de tê-lO perfumado e envolvido em tiras, como era costume no Oriente. Mas esse embalsamamento rápido, preparado às pressas na véspera de um sábado, era insuficiente. A fim, pois, de concluir o trabalho de piedade suprema, as santas mulheres para lá se dirigiam antes mesmo do amanhecer, levando consigo vasos cheios de aromas, inquietas, porém, perguntando-se entre si, quem levantaria a pedra que fechava o sepulcro.

Madalena, a mais viva, as precedera. Era ainda noite quando chegou só ao jardim, perto da gruta; e seu primeiro movimento fora correr à entrada do santo lugar, onde repousava o corpo do Mestre adorado… A pedra tinha sido tirada! (2) A vista disso, Madalena se perturba, pensa primeiro em um roubo, em uma profanação; não ousa penetrar naquela escuridão; e, sem esperar as outras, desvairada, fora de si, corre à casa de Simão Pedro e João para dizer-lhes seus receios:

“Levaram o Senhor do sepulcro, e não sei onde O puseram”

Receios do amor, que crê tudo perdido, no momento mesmo em que está prestes a achar tudo de novo! A emoção passa do coração de Madalena para o de São João. Não se trata ainda de ressurreição: nem se pensa nisso. Somente às primeiras palavras de Madalena inconsolável, os dois discípulos se comovem. Mas só João nos pode pintar sua aflição e seus cuidados:

“Pedro e João, o discípulo que Jesus amava, saíram e vieram ao sepulcro. Corriam ambos juntos, mas aquele outro discípulo correu mais do que Pedro; e chegou primeiro ao sepulcro.

Ali, inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, porém, não entrou, chegou então Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro, e viu os lençóis postos no chão.

O sudário que estivera sobre a cabeça de Jesus não posto com os lençóis, mas dobrado num lugar à parte.

Entrou então o discípulo que chegara primeiro, e viu e acreditou.

Porque ainda não entendiam a Escritura pela qual ele devia ressurgir dos mortos”

Exiit ergo Petrus, et ille alius discipulus, et venerant ad monumentum.

Currebant autem duo simul, et ille alius discipulus praecurrit citiús Petro, et venit primus ad monumentum.

Et cum se inclinasset, vidit posita linteamina; non tamen introivit.

Venit ergo Simon Petrus sequens eum, et introivit in monumentum, et vidit linteamina posita.

Et sudarium, quod fuerat super caput ejus, non cum linteaminibus positum, sed separatim involutum in unum locum.

Tunc ergo introivit et ille discipulus qui venerat primus ad monumentum; et vidit et credidit.

Nondum enim sciebant Scripturam, quia oportebat eum a mortuis resurgere (Jo 20, 3)

Um narrador tão exato, é, como se vê, ao mesmo tempo a testemunha mais próxima, o primeiro informado, o mais fielmente instruído, e que primeiro acredita na ressurreição. «Ele viu e acreditou», conta de si mesmo. E quem o fazia crer? A Escritura primeiro, as promessas formais do Salvador, as quais, como parece insinuá-lo, lhe eram mais familiares do que aos outros irmãos? Nondun enim sciebant. Depois, como conta, o sudário que envolvia a cabeça magoada do Mestre, dobrado cuidadosamente, e as tiras desprendidas do corpo e postas no chão, afastavam a suposição de um rapto clandestino. Ele então acreditou por outras razões ainda: razões superiores que são as intuições súbitas e certas do coração. O coração é sempre o primeiro nas veredas de Deus; Pedro ainda está em caminho, e João já veio, viu e acreditou. Assim é bem verdade que para crer, o caminho mais curto é amar.

João tinha voltado com Pedro (3). Era alto dia então, e estavam juntos na mesma casa, hesitantes entre o temor e a esperança, quando viram de novo Madalena vir a eles, não era mais a mesma mulher; a face radiante, suas palavras eram de fogo. Guardou-as João, e, com que encanto no-las repete fielmente! Madalena conservava-se chorando perto do monumento que não havia abandonado, não podendo desprender-se desse lugar tão cheio de tristes e doces recordações; quando, clareando o dia, inclina-se para o interior da gruta. De súbito, duas formas vestidas de branco aparecem: são dois anjos, consolam-na docemente e lhe dizem: Mulher, porque choras? Madalena só tem um pensamento; reclama o Mestre: Não sei onde o puseram, diz ela. Mas, voltando-se, vê alguém atrás. É o Senhor que a espera; todavia, no meio das lágrimas, ela não O reconhece, toma-O pelo jardineiro e a Ele também pergunta por seu Mestre. Era quanto bastava para pôr-lhe à prova a constância. Ele não lhe diz senão uma palavra: Maria! mas a esse nome de honra, seu nome de reabilitada, Madalena O reconhece: é o Mestre: Rabboni! Nada mais diz, e lança-se-Lhe aos pés para adorá-lO.

Mas o Senhor glorificado exige um culto de outra espécie: Não me toques, diz Ele, porque ainda não subi a meu Pai.

«Não me toques: Noli. É para poupar teu coração que te imponho este sacrifício. Como poderias ainda ficar sobre a terra, se eu te deixasse beijar meus pés?» (P. Olivaint, Retraite de 1866, t. II, 73)

Depois à era do Cristo invisível ia suceder a do Cristo visível; até agora podíamos derramar nossas lágrimas e nossos perfumes a Seus pés. Breve não mais poderemos. Sem dúvida, a Eucaristia dar-nos-á a doçura dessa união divina.

Sem dúvida, quando subir a seu Pai, ainda O reconheceremos, O acharemos na fração do pão. Mas o sacramento que nos dá a presença do Mestre, não nos dá Sua visão, que só teremos no céu; Jesus faz por isso Madalena levantar os olhos ao céu para onde vai Ele subir; e manda-a contar a seus irmãos tudo o que acaba de ver (Jo 20, 11-18).

João tivera a primeira intuição do mistério. Madalena teve-a depois: mas que transições delicadas entre estes dois testemunhos! O de João é mais espontâneo, o de Madalena mais ansioso. Para um basta um olhar e logo crê; o outro necessita de palavras e aparições. Ambos se apressam e correm: todo o amor tem asas. Mas João só precisa aparecer um instante; Madalena deve se demorar algum tempo no túmulo. João adivinha; Madalena procura. Mas quando se ama a Jesus, não se procura muito tempo, e ambos O encontram no seio de seu triunfo, como o haviam seguido até o lugar de seu suplício.

Eis o despertar que Deus reserva aqueles que Lhe são fiéis. Há sempre duas cabeças sobre as quais Jesus Cristo não cessa de estender no mundo, os dois braços de Sua cruz ensanguentada ou gloriosa: é o arrependimento e a inocência: é Madalena, é João. A uma Ele perdoa muito; o outro é o discípulo predileto. Ambos têm a seu lado um lugar privilegiado nas horas memoráveis da existência. Somente, o arrependimento permanece mais baixo a seus pés, que beija com humildade, ao passo que a inocência repousa sobre o coração.

Para a fé do futuro, não bastava aquele duplo testemunho: João nos devia ainda outro. Os que duvidam são mais numerosos do que os que creem: os apóstolos duvidavam. Por mais que Madalena lhes desse todos os sinais, todas as provas do milagre, que suas companheiras confirmassem seus depoimentos, só eram «sonhos de mulher em delírio» (4); e homens, acusados de inventar uma ressurreição, nem ao menos queriam acreditar naquela que lhes era anunciada, demonstrada.

Os homens não conseguiram inspirar mais fé que as mulheres. Simão Pedro fora primeiramente convencido por uma aparição pessoal de Jesus da qual falam o Evangelho de São Lucas e as Epístolas de São Paulo. Este mesmo apóstolo menciona outra aparição a Tiago, o Menor. Os discípulos de Emaús tinham reconhecido o Senhor pela fração do pão. Eram fatos isolados. Os que ouviam essas narrações admiravam-se, ficavam emocionados, mas não se rendiam. Deus queria que o milagre não obtivesse facilmente o apoio dos homens, mesmo dos melhores, para que ficasse bem patente que lhes tinha como que forçado a convicção pelo brilho da evidência.

João, compenetrado desta evidência, narra o fato contraditoriamente, opondo à fé de João e de Madalena a pertinaz incredulidade de Tomé. Não é mais agora uma aparição pessoal, é aos apóstolos reunidos num mesmo lugar que Jesus se manifesta. Não é mais João que crê, é Dídimo, é aquele que só quis convencer-se diante de uma prova palpável, e que tendo-a com efeito apalpado com o dedo, acaba caindo de joelhos diante de seu Senhor e seu Deus (Jo 22, 24ss).

Tais eram as mais vivas reminiscências de São João.

«E nós também, devia ele exclamar mais tarde, no começo de suas Epístolas, o que vos anunciamos, o Verbo da vida que era no princípio no Pai, nós ouvimo-lO, vimo-lO, vimos com nossos próprios olhos e tocamo-lO com nossas mãos»

Ó João, nós acreditamos, porque não só vistes, ouvistes e tocastes, mas nos fazeis ver, ouvir e tocar o que contais; e a marca ficou imortal em vosso livro, assim como se conservou sempre jovem em vosso coração.

II

“Vai anuncia a meus irmãos que os precederei na Galileia”

O Senhor dirigira estas palavras à Madalena no dia de sua ressurreição. São Mateus e São Marcos dão a perceber a entrevista; mas só São João a conta. Foi ali, na Galileia, na própria pátria, que ele viu coroar-se a vida ressuscitada do vencedor da morte.

O cenáculo e o sepulcro já estavam longe. Os apóstolos voltaram para o lago, cheios de temor e de esperança, outra vez pescadores de peixe, depois de terem sido consagrados pescadores de homens (5).

Um dia, pois, estavam pescando. João e Tiago ali se achavam com Pedro, Tomé, Natanael e dois outros discípulos. A noite de trabalho tinha sido má, e os pescadores voltavam sem ter apanhado nada, quando, de manhã, no momento de encostar à praia, viram alguém que os esperava e que cumprimentando-os com ares de conhecido:

“Filhos, disse-lhes, tendes alguma coisa de comer?” – Dixit ergo eis Jesu: Pueri, numquid pulmentarium habetis? (Jo 21, 5)

Depois, o desconhecido indica-lhes outro lado para lançar a rede, e logo fazem uma pesca milagrosa.

João deleita-se com essa narrativa. Revê com alegria o lago, não longe dali talvez, a casa, a barca e os utensílios de pesca. Nomeia ainda os amigos mais fiéis. Reconhece-se logo a mão, a linguagem, o olhar do filho de pescador. Tem o olhar exercitado que calcula as distâncias no ar e até o fundo da água; sabe de que lado foi atirada a rede; sabe que a rede é de arrastão como as dos pescadores do Oceano, nos dias de pesca abundante; a seus olhos, o milagre consistiu principalmente no fato de que a rede devia romper-se forçosamente, e, no entanto resistiu até o fim (6).

Mas quem fez esse milagre? Quem é o desconhecido tão poderoso e tão bom? Quem o reconhecerá? É o Senhor, exclama um discípulo que o reconheceu com um simples olhar; e esse discípulo é João. Depois, como para melhor explicar, acrescenta que era o discípulo predileto de Jesus (7). Aqueles que se amam e se parecem, diz o venerável Beda, se reconhecem sem esforço pela simples simpatia e semelhança (8).

«O que!, dizia Santo Agostinho, amas e não vês? Então o amor não faz ver? Persevera no amor, e eu não enganarei. Porque purifiquei teu coração; e porque purifiquei senão para te fazer ver?» (S. Aug. in Joan Tract. XXI, col. 1573)

— E Santo Ambrósio acrescenta, «foi a virgindade que primeiro reconheceu aquele corpo virginal. Bem-aventurados os corações puros, porque verão a Deus»Decebat reverâ ut Virginitas virginale corpus priùs agnosceret.

O amor teve a sua recompensa. Nesse mesmo dia Jesus Cristo confiara a Pedro o seu rebanho.

«É o dever do amor, diz Santo Agostinho, apascentar o rebanho do Senhor» – Sit amoris officium pascere Dominicum gregem (Ap. S. Thomas, 2ª, 2æ, q. 185, a. 2)

Ele prometera-lhe a cruz, profetizando-lhe um suplício igual ao seu: Tu me sequere. Andarás sob as minhas pisadas! Quanto ao destino de João, nada dizia o Senhor.

«Pedro, diz São João Crisóstomo, que até então participara com o discípulo dos bons assim como dos maus dias, quisera também fazer o amigo participar dos bens que lhe eram prometidos» – Quia magna ei prædixerat Dominus, et orbem terrarum commiserat, et martyrium prænuntiaverat, et amorem testatus est ampliorem, volens et Joannem communicatorem accipere dixit: «Hic autem quid? Nonne eadem nobiscum veniet via?» (São João Crisóstomo in Joan Homil. LXXXVIII)

Voltando-se, pois, e vendo aquele que o Mestre tinha deixado apoiar-se em seu seio, Pedro perguntou:

“E deste, Senhor, que será?”

Inseparáveis na vida, deveremos por ventura ser separados na morte? Estaremos juntos na glória? Que sorte reservais a essa cabeça tão cara? E se eu que vos reneguei, tornei-me o pastor de vosso rebanho, o que será deste que lhe foi sempre fiel?

Foi então que o Senhor deu aquela resposta misteriosa, porém decisiva, que fazia adivinhar o destino de João:

«Se eu quero que ele fique assim, até que eu venha, que tens tu com isso? Não me podes seguir sem que ele esteja a teu lado? Quid ad te? Tu me sequere»

Foi a última palavra em particular, pessoal, dita aos dois grandes apóstolos. Ela atingia, com efeito, ao termo de sua vida, ao dia em que o Senhor devia vir como Ele dizia: à Pedro na Via Appia para pedir-lhe que fosse morrer no Janiculo; à João nas visões de Patmos, e mais tarde em Éfeso para transportá-lo ao seio da Divindade que tantas vezes lhe aparecera. O papel dos dois apóstolos estava marcado bem distintamente por essas palavras. Pedro ia começar, à frente da Igreja, aqueles combates nos quais os irmãos deviam todos, como Jesus, triunfar pela morte; enquanto João, único sobrevivente da família apostólica, devia conservar de pé, no meio dos povos, até os confins dos séculos, o sinal da caridade, da qual está escrito que não deve sucumbir: Charitas numquàm excidit.

Uma refeição em comum, à beira do lago, consagrou esta solene visita de Jesus. E Santo Agostinho observa que foi numa refeição que o Senhor pela primeira vez manifestou Sua glória. Uma outra refeição, a Ceia, fora a revelação de Seu amor. Qual era o símbolo desta última refeição do Ressuscitado com a qual o discípulo termina seu Evangelho, senão o grande banquete da Beatitude para o qual nos convidava o Esposo das núpcias eternas? (9).

Um dos mais antigos Padres, Clemente de Alexandria, acrescenta que Jesus Cristo, nos dias que seguiram à Sua ressurreição, conferira outro dom ao discípulo predileto, o de uma ciência eminente que faria dele a águia dos Evangelistas (10). Será uma tradição? Ou simplesmente uma explicação da transcendência do talento de São João? Não sabemos que palavras foram trocadas entre o Mestre glorioso e o discípulo que O seguira até a cruz. Mas se as suas conversas não chegaram até nós, não achamos o reflexo no santo Evangelho?

Assim João foi a testemunha mais importante, como o historiador mais completo da ressurreição. Ao passo que nos outros, o divino Ressuscitado só faz atravessar rapidamente o horizonte, como um magnífico meteoro; no Evangelho de São João é um sol radiante do meio-dia. Ele vê, fala, ama, é uma existência inteira que começa na terra, para findar-se no céu.

E que existência! Compassiva e boa como deve ser a de um homem, poderosa e transfigurada, digna só de um Deus! Primeiramente que ternura! Que familiaridade! Que surpresas encantadoras! Que palavras de Pai nessas despedidas sem fim que precedem a partida! Como suas delícias são mesmo de estar no meio dos homens! Ele não os pode deixar; reúne-se a eles por toda a parte: no cenáculo, à beira da água, no meio do trabalho, à hora da refeição, no caminho da cidade. Por que estais tristes? pergunta a uns. Não vos assusteis, não tenhais medo de nada, diz a outros. Paz vos seja dada! A paz esteja convosco! Não são mais seus servos, o nome mesmo de amigos não o exprime bem; são seus filhos de agora em diante, seus filhinhos, seus pequenos: Meninos, não tendes nada para comer? O excesso de condescendência chega a tal ponto que se poderia recear fosse comprometer o respeito: Tomé apalpa as cicatrizes de minhas mãos, aproxima-te, põe teu dedo na chaga de meu lado. E depois, quando o vê de joelhos, levantando-o com ternura:

“És feliz em crer porque viste. Bem-aventurados os que não viram e creram” – Dixit ei Jeus: Quia vidisti, Thoma, credidisti. Beati qui non viderunt et crediderunt (Jo 20, 27-29)

Como outrora José, quando achara os irmãos, ele não quer nem mesmo lembrar-se que o abandonaram. Entre todos os fiéis, há uma pecadora: é a esta mulher que Jesus aparecera primeiro: Ó Maria! — Ó meu bom Mestre! Entre os doze apóstolos, há um renegado; Jesus aparece à Pedro antes dos outros: Apparuit Simoni! É em sua barca que entra, é a sua pesca que ele favorece. Nem se fala mais na apostasia. E quando Pedro, lembrando-se da sua ingratidão, fica confuso de uma tal clemência, é então que Deus o convida a ser o pastor de seu povo: Pedro, amas-me? Amas-me? E tendo feito repetir ao apóstolo três vezes culpado, o tríplice protesto de fidelidade, em duas palavras dá-lhe o que possui de melhor: seu rebanho e a sua cruz, o apostolado supremo com o sacrifício, a coroa de pontífice, deixando ver por cima a coroa do martírio que não mais sairá da sucessão de São Pedro: Alius cinget te.

Assim, no Evangelho de São João, é a alma de Jesus que palpita. Mas se ele sentiu tremer e transbordar a vida do seio do Filho do Homem, viu também completar-se a obra definitiva do poder de Deus.

É primeiro a paz firmada entre o céu e a terra, e sua aliança escrita nessas chagas gloriosas que Jesus mediador vai levar para o Pai:

“A paz seja convosco? A paz seja convosco! E tendo dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado” –Venit Jesus et stetit in medio, et dixit eis: Pax vobis. Et cum hoc dixisset, ostendit eis manus et latus.

É a constituição hierárquica da Igreja, constituição pastoral, como convinha a uma lei de graça: Pedro, apascenta minhas ovelhas, apascenta meus cordeiros.

É enfim, a lei da renovação, da nova criação, por um sopro de vida derramado sobre o mundo. Essa é a profunda significação do que fez Jesus, quando, na última despedida, soprando sobre os apóstolos, deu-lhes o poder de nos abrir o céu:

“Recebei o Espírito Santo e perdoai os pecados” – Haec cum dixisset, insufflavit, et dixit eis: Accipite Spiritum sanctum. Quorum remiseritis peccata, remittuntur eis, et quorum retinueritis, retenta sunt (Jo 20, 22)

Assim apareceu a João o Senhor glorioso. Tal é a imagem perfeita que Ele deixou de si: haverá alguma coisa mais viva, mais digna do Homem e mais digna de Deus?

Só restava ao Mestre subir para seu Pai, a fim de nos preparar o lugar, conforme sua promessa. Um dia, João e os outros viram-no elevar-se tranquilamente do cume de uma montanha; e estendendo-lhe as mãos e os olhos, suspicientes in caelum, não cessaram de segui-lo nesta contemplação e silenciosa adoração, até que uma nuvem de glória o ocultou a seus olhos, e Ele entrou no seio da eternidade.

Aqui termina o que se chama propriamente o Evangelho. Aqui se encerra para nós o período divino aberto durante trinta e três anos na história dos homens.

Foi ali nessa montanha, nessa contemplação que pela última vez, vemos São João em presença de Jesus. A partir deste instante, ele entrava numa vida nova, menos visivelmente unida à divindade, porém, mais pessoal talvez, mais ativa, mais forte. Havia recebido todas as instruções do Mestre: chegara o momento de fazer sua obra e agir em seu lugar.


Referências:

(1) O Evangelho assim o supõe: Maria Madalena acha João e Simão Pedro juntos no mesmo lugar (XX, 2) São Boaventura acrescenta em suas Meditações: «Bateram à porta. As santas mulheres estremeceram. João chegou-se à porta, e olhando, reconheceu Pedro, e disse: «É Pedro!» Nossa Senhora respondeu: «Abre a porta!» Pedro respeitosamente entrou soluçando e chorando, e caíram todos em pranto; e não podiam dizer palavra, tão grande dor sentiam.»

(Medit. sur la vie de J. — C., ch. LXXXIV).

(2) Uná autem sabbati, Maria Magdalene venit mane, cum adhuc tenebrae essent, ad monumentum, et vidit fapidem sublutum à monumento. (Jo 20, 1)

(3) Abierunt ergo iterúm discipuli ad semetipsos (Jo 20, 10)

(4) Et visa sunt antè illos sicut deramentum verba ista (Lc 24, 11)

(5) Non ii fuere prohibiti arte suà, licità scilicet atque conces à, victum necessarium sibi quaerere, sui apostolatus integritate servatá. si quando undé viverent illud non haberent in Joan, Tract. CXXH, col. 810.

(6) Estas reflexões são de M. l’abbé Deramey, Deramey, Défense du quatrième Evangile, p. 21 et 286.

(7) Dixit ergò discipulus ille quem diligebat Jesus Petro: Dominus est. (Jo 21, 7)

(8) Solent simelis, ideòque amantes se invicem ex quâdam sympathia et vultûs, gestuumque similitudine agnoscere. (Bed, in Joan)

(9) S. Aug. in Joan. Tract. CXXIV, cap. XXI, col. 1965 et seq

(10) Clemens Alexandr. in Sexto Instil, libro. Apud Euseb. Hist. Eccl. lib, II, cap. I. p. 38

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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 145-159)