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Remorso do condenado por causa do bem que perdeu

Desespero (pintura de Vitoria Duarte)
Desespero (pintura de Vitoria Duarte)

Perditio tua, Israel; tantummodo in me auxilium tuum – “A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio” (Os 13, 9)

Sumário. O que mais atormenta o réprobo no inferno é o ver que perdeu o céu e o Bem supremo, que é Deus; e perdeu-O não por qualquer acidente ou por malevolência d´outrem, mas por sua própria culpa. Meu irmão, se no passado nós também tivemos a insensatez de renunciar por malícia própria ao paraíso, remediemo-lo enquanto houver tempo, antes que tenhamos de chorar eternamente a nossa desgraça. Talvez seja este o último apelo que Deus nos dirige.

I. O tormento mais feroz do réprobo será reconhecer o grande bem que perdeu. Segundo São João Crisóstomo, os réprobos sentirão mais aflição pela perda do paraíso que pelos tormentos do inferno: Plus coelo torquentur, quam gehenna. — Refere-se que a infeliz Isabel, rainha de Inglaterra, disse:

“Conceda-me Deus quarenta anos de reinado e renuncio ao paraíso.”

Teve a infeliz esses quarenta anos de reinado; mas que dirá agora, que a sua alma saiu deste mundo? Sem dúvida já não pensa da mesma forma. Como não deve estar aflita e desesperada, ao pensar que, por quarenta anos de reinado, passados em temores e angústias, perdeu para sempre o reino celestial?

Mas, o que por toda a eternidade afligirá mais o réprobo será reconhecer que perdeu o céu e o soberano bem que é Deus, e que o perdeu não por algum mau acidente, nem pela malevolência d´outrem, mas por sua própria culpa. Verá que foi criado para o paraíso, verá que Deus lhe pôs na mão a escolha entre a vida e a morte eterna: Ante hominem vita et mors… quod placuerit ei dabitur illi (1). Verá, pois, que esteve na sua mão, se quisera, o tornar-se eternamente feliz. Mas verá igualmente que de seu motuproprio se quis precipitar nesse abismo de suplícios, de onde nunca poderá sair e de onde ninguém o procurará livrar.

Verá então o miserável que muitas pessoas de seu conhecimento, que passaram pelos mesmos, quiçá por maiores perigos de pecar, chegaram à salvação, ou porque se souberam conter recomendando-se a Deus, ou, se caíram, souberam levantar-se a tempo e dar-se a Deus. Ele, porém, por não ter querido pôr um termo a suas desordens, veio a acabar tão deploravelmente no inferno, nesse mar de tormentos, sem esperança de poder remediar a sua desgraça. Oh, que cruel remorso! Oh, que desespero lancinante!

II. Meu irmão, se no passado foste tão insensato para querer sacrificar o paraíso e Deus a uma indigna satisfação, procura quanto antes aplicar o remédio, agora que ainda é tempo. Não sejas obstinado em teu desvairamento. Receia ir chorar um dia a tua desgraça na eternidade.

— Quem sabe se a presente consideração não será o último apelo que Deus te dirige? Se desde já não mudares de vida, quem sabe se no primeiro pecado mortal que venhas a cometer, o Senhor não te abandonará para te condenar em seguida a sofrer eternamente entre essa multidão de insensatos, que estão agora no inferno e lá confessam seu erro, mas confessam-no desesperados, vendo que a sua desgraça é irremediável. Quando o demônio te tentar de novo ao pecado, lembra-te do inferno e recorre a Deus e à Santíssima Virgem. O pensamento do inferno te livrará do inferno: Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis (2) — “Lembra-te de teus novíssimos e nunca jamais pecarás”.

Ah! Meu Bem supremo, quantas vezes Vos perdi por um nada e quantas vezes mereci perder-Vos para sempre! Tranquiliza-me, porém, a palavra de vosso Profeta: Laetetur cor quaerentium Dominum (3) — “Alegre-se o coração dos que buscam o Senhor”. Não devo, pois, perder a esperança de Vos tornar a encontrar, ó meu Deus, se Vos procurar com coração sincero. Ó Senhor, neste momento suspiro mais pela vossa graça que por qualquer outro bem. Consinto em ser privado de tudo, até da vida, mas não em ver-me privado de vosso amor. Amo-Vos, ó Jesus meu Deus, sobre todas as coisas e por isso que Vos amo me arrependo de Vos ter ofendido.

Ó meu Deus, perdido por mim e desprezado, perdoai-me já e fazei que Vos encontre sem demora, porque nunca mais Vos quero perder. Se me receberdes novamente em vosso amor, quero renunciar a tudo e amar só a Vós: assim o espero de vossa misericórdia. — Padre Eterno, atendei-me pelo amor de Jesus Cristo. Perdoai-me e concedei-me a graça de nunca mais me separar de Vós, porque, se viesse a perder-Vos de novo por própria culpa, devia com razão recear que me abandonásseis.

— Ó Maria, ó reconciliadora dos pecadores, reconciliai-me com Deus. Guardai-me debaixo de vossa proteção, a fim de que nunca mais chegue a perder meu Deus.

Referências:

(1) Eclo 15, 18
(2) Eclo 7, 40
(3) Sl 140, 3

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 209-212)