I
A vasta coligação do mal e do erro, que acabamos de descrever, pedia um testemunho brilhante da verdade cristã e da santidade de Deus. Foi então que João escreveu seu Evangelho.
O que primitivamente se chamava um Evangelho, não era um livro, era uma palavra. Jesus Cristo tinha ensinado. Seus apóstolos fizeram como Ele: não escreveram, pregaram. A palavra, inspirada diretamente por Deus, provada pelos milagres, derivada de lembrança de fonte fresca e pura, devia ser suficiente para a fundação do reino de Deus. Era este o sopro do qual dizia a Escritura, que renovaria a face da terra. Era um sopro de fogo; mas apenas um sopro.
Esta palavra, no entanto, não tardaram muito em escrevê-la. Uns expuseram primeiro a doutrina conforme a necessidade dos tempos: foi o fim das Epístolas. Outros redigiram a vida mesma de Jesus: é o que conhecemos e veneramos particularmente com o nome de Evangelho.
Se procuramos a razão e o caráter próprio das três primeiras narrativas, chamadas sinóticas, notaremos primeiro que foram feitas ao jeito das três grandes famílias de povos entre os quais se dividiam a supremacia dos espíritos e o império das coisas.
O Evangelho de São Mateus foi escrito para os Judeus, na Judeia, por um judeu e conforme os costumes da nação judaica. Foi redigido na língua desse povo, e consta que o texto conhecido sob o nome de Evangelho dos Hebreus, não é senão o de São Mateus na sua primeira forma (1).
O Evangelho de São Marcos foi escrito em Roma, para os Romanos e sob as vistas de São Pedro, durante a sua estada nessa grande cidade, mãe e soberana das outras (2).
O Evangelho de São Lucas era inteiramente grego em seu fim, origem e destino. Nascido em Antioquia, cidade de língua e costumes gregos, companheiro de São Paulo e historiador de suas excursões pela Ásia, Lucas, o letrado, parecia ser o evangelista predestinado à população helênica, da qual Paulo, seu mestre, era o apóstolo.
Assim, o Filho de Deus tinha iluminado como que por três raios de sua divina face, as três grandes famílias da antiga civilização, do mesmo modo que consagrara as três línguas, fazendo-as servir na inscrição da cruz (3).
São João não ignorava estas histórias autênticas da vida de seu mestre. Clemente de Alexandria, Eusébio e São Jerônimo dizem que ele as havia lido; e ele próprio o insinua na primeira epístola, quando declara que, nada ensina aos fiéis, que estes já não tenham podido aprender em outro lugar (4).
Mas depois da redação das três narrativas sinóticas, o ponto de vista da exposição assim como da moral cristã mudara. Não era mais necessário citar as profecias, para convencer aos Judeus que a sinagoga estava morta. Jerusalém caíra em poder de Tito, e lia-se a vontade de Deus em caracteres ardentes sobre as cinzas fumegantes do santuário destruído. O mosaísmo, apesar de ainda poderoso, não estava mais só em causa: o gnosticismo era a liça obrigatória a que se devia chamar a doutrina e a história. O que convinha principalmente fazer sobressair na pessoa de Jesus, não era mais o Messias de um Israel hoje vencido e disperso; era o Deus que o universo ia adorar; não um deus qualquer de segunda ou terceira ordem, intermediário entre o mundo e seu autor, mas o próprio Autor do mundo. Ora, para isto bastava fazer vir à luz a parte mais profunda do ensino do Cristo, contanto que ainda vivesse algum de seus discípulos, que a tivesse recolhido fielmente, e que a pudesse transmitir.
João, filho de Zebedeu, outrora discípulo, amigo, confidente do Salvador, tornado hoje o apóstolo da Yonia, colocado bem no foco da heresia, era o mais apto para combater a mentira, como o mais instruído na verdade, pois que repousara sobre o próprio coração do Verbo.
A história de seu Mestre estava-lhe bem presente ao espírito. Penetrara-lhe na alma fiel tão profundamente que não era mais possível sair. Quanto maior e mais cara é uma lembrança, mais se grava e vive no coração que a recebeu: qual não devia ser, portanto, a vitalidade da lembrança de Jesus Cristo na memória de São João!
Depois, Jesus Cristo em pessoa prometera aos apóstolos, que o Espírito Santo lhes viria rememorar tudo o que dissera e tudo o que fizera, tal qual o fogo que faz aparecer uma escrita invisível:
“O Espírito Santo, o Paráclito, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar tudo o que vos tenho dito” – Paracletus autem Spiritus sanctus docebit omnia, et suggeret vobis omnia quaecumque dixero vobis (Jo 14, 26)
São João, que relata essa promessa profética, devia vê-la realizada completamente em si mesmo.
«Considerando, diz Clemente de Alexandria, que os outros evangelistas se haviam aplicado em fazer sobressair o lado humano do Homem-Deus, João, cedendo as instancias de amigos, inspirado pelo Espírito divino, compôs por sua vez, o Evangelho do Espírito». Clemente, acrescenta Eusébio, estava disso informado por «bispos mais antigos do que ele» (5)
Assim o apóstolo fora solicitado para escrever. Seu livro devia ser oriundo da necessidade urgente da Igreja cristã e do pedido dos irmãos. Clemente o indicou, São Jerônimo o explica:
«O apóstolo João, diz ele, aquele a quem Jesus Cristo amou mais do que aos outros, escreveu o seu Evangelho, a pedido dos bispos da Ásia, contra Cerinto e outros heréticos, especialmente contra o erro dos ebonitas que começavam a espalhar-se, e que pretendiam que o Cristo não existira antes de Maria» (6)
Mas, quem eram estes amigos a que se refere São Clemente; quem são estes bispos que São Jerônimo menciona, a cujo pedido o discípulo querido escreveu o seu Evangelho?
Há pouco mais de um século, o sábio Muratori descobriu na biblioteca Ambrosiana, em Milão, um fragmento de um manuscrito, que esclarece de maneira precisa a história da composição do Evangelho de São João. Será de Caio, sacerdote da Igreja de Roma o curioso fragmento? Dever-se-á atribuí-lo a Hegesippo? Será apenas uma tradução do grego, ou será mesmo o originário texto achado em Milão? Seja qual for a diversidade das opiniões, duas coisas estão unanimemente admitidas. Em primeiro lugar, o fragmento nos veio certamente da Igreja de Roma. Em segundo lugar, sua data não pode retroceder do 11º século; e tudo lhe garante esta autenticidade e autoridade (7).
A lembrança de Jesus Cristo era ainda então uma lembrança contemporânea. Ora, eis como, nesta preciosa passagem, se acha confirmado e desenvolvido o que São Jerônimo e Clemente nos disseram de seu autor.
«O quarto Evangelho é do discípulo João. Aqueles que haviam sido discípulos com ele, e os bispos da Ásia sob sua jurisdição, instando para que escrevesse, João lhes disse:
‘Jejuai comigo durante três dias, e em seguida nos comunicaremos uns aos outros o que for a nós revelado’
Durante a noite, foi revelado a André, um dos apóstolos, que João devia escrever tudo só, em seu nome, mas com aprovação de todos os outros irmãos» (8)
Os discípulos, ou pelo menos alguns, como Santo André, o apóstolo da Acaia, eram, portanto, vivos ainda quando João escreveu. Por outro lado, Jerusalém já não existia; pois que o evangelista só fala no passado referindo-se à existência desses lugares, que não eram então mais que um monte de cinzas.
É, portanto, de depois da ruína desta desgraçada cidade, e de antes da morte de André e dos discípulos, isto é, mais ou menos entre o ano 70 e 80 da encarnação, que se deve datar a redação do Evangelho. Essa é, com efeito, a data atribuída ao santo livro, pelas inscrições dos manuscritos mais antigos. Fixam-na perto do 40° ano da ascensão. Além disso, desde esse tempo já as doutrinas gnósticas, citadas por São Paulo, estavam bastante espalhadas para tornar necessária uma refutação, como a que lhe opõe o Evangelho de São João. Não se pode, pois, aceitar a opinião gratuita que faz escrever o apóstolo na idade de noventa anos, nos limites extremos de sua longa existência (9).
Quanto ao lugar onde foi redigido o Evangelho, pelo livro mesmo se verifica que, conquanto os fatos contados se passem na Palestina, no entanto não foi ele escrito nesse país. É em terra estranha e para estrangeiros que se precisa explicar os nomes mais elementares da língua e do país, como o de Messias e Rabi. É só a estrangeiros que se deve informar da antiga inimizade entre Samaritanos e Judeus, do costume do embalsamamento e das abluções. Se São João explica estas e muitas outras coisas semelhantes, é porque compõe seu livro longe da Judeia; escreve-o em Éfeso (10).
Tudo indica esta cidade. É expressamente designado por Irineu, o discípulo de João, que melhor o devia saber, porque viveu no mesmo lugar e quase no mesmo tempo:
«João, o discípulo do Senhor, João, que repousou sobre o peito de Jesus, escreveu seu Evangelho na cidade de Éfeso, na Ásia» (11)
Os mais antigos manuscritos da versão siríaca e da versão copta designam essa cidade.
Diz-se mesmo que durante, muito tempo, foi ali conservado o manuscrito original do apóstolo; e Pedro, o mártir, bispo de Alexandria, ainda invocava sua autoridade decisiva no começo do IV° século.
«O manuscrito, diz ele, o autógrafo de João, o evangelista, foi até hoje, pela graça de Deus, conservado na Igreja de Éfeso, e ainda é ali venerado pelos fiéis» (12)
O fragmento de Muratori diz que o apóstolo começou a história, por instigação dos bispos seus irmãos, a fim de resumir os testemunhos dos últimos sobreviventes entre os discípulos de Jesus. Clemente e São Jerônimo contam a mesma coisa. Ora, não é a este caráter de coletividade que se devem atribuir certas formas de linguagem do evangelista, exprimindo-se no plural, como que para nos indicar que nos fala por todos? Nós vimos sua glória. E na primeira epístola: O que nós vimos, o que nós ouvimos do Verbo de vida, o que nós tocamos, nós vo-lo anunciamos, para que tenhais sociedade conosco.
Particularidade digna ainda de nota! O mesmo fragmento diz, que o principal instigador desta redação do Evangelho de São João, foi o apóstolo Santo André (13). Ora, é André o primeiro dos discípulos de Jesus que São João faz aparecer a seu lado, na escola do divino Mestre, como se, fazendo um apelo às recordações em comum, quisesse colocar o quadro autêntico desses princípios sob uma dupla garantia (14).
Os discípulos e os bispos contemporâneos de João, tendo à frente Santo André, não deviam somente lhe inspirar o Evangelho, deviam também aprová-lo, diz a passagem citada, recognocentibus cunctis. Temos ainda sob nossas vistas o texto dessa aprovação, acha se formulado no último versículo do livro de São João. Como o reconhecem os melhores intérpretes, este versículo final não é mais do escritor inspirado. João deixou a pena, cedendo-a aos discípulos; estes leram o Evangelho que acabava de redigir; tendo-o examinado, verificado, registrado, reconhecido autêntico, todos juntos o aprovam, referendam e dão-lhe sua sanção nestes termos:
“O discípulo João, foi o que prestou testemunho e que escreveu isto, e nós sabemos que seu testemunho é verdadeiro” – Hic est discipulos ille qui testimonium perhibet de his, et scripsit haec; et scimus quia verum est testimonium ejus (Jo 21, 23)
Diante da apreciação de texto tão formal, tão inteiramente conforme a tradição, tão bem esclarecido por ela, não deveria terminar qualquer discussão sobre a autenticidade do livro? Não parece que Deus queria, que a Sua mais divina história trouxesse como que inscrita sobre a fronte o nome do autor; e que nenhuma garantia faltasse a este livro, que ia tornar-se um sinal de contradição entre o erro sem desculpas e a verdade invencível?
Narrativa lendária assevera que ao começar João o seu Evangelho, proclamando a geração eterna do Cristo por estas sublimes palavras: No princípio era o Verbo, viu-se num céu límpido o fulgor de um relâmpago, e ecoou ao longe o estrondo de um trovão. Esta passagem é uma alusão ao nome que o Senhor dera a João quando ele o chamara «filho do trovão» e é também o emblema da força e do brilho daquela palavra descida do alto dos céus.
Outra tradição muito chegada à história é a lembrança do jejum com o qual o evangelista chamou em socorro a inspiração celeste (15). Um livro desta ordem não se faz com pensamentos humanos. São necessários o pensamento e o ditado de Deus. É preciso a oração com o sacrifício, e foi no meio de indescritíveis gemidos que o Espírito Santo fez ressoar a maior palavra que a terra jamais escutara.
II
Colocado pela inspiração em outro ponto de vista que os primeiros evangelistas, João queria primeiramente completar o seu testemunho, depois, pôr os fatos mais em ordem e, enfim, fazer sobressair melhor a divindade do Senhor. Desta tríplice intenção devia aparecer um livro idêntico no fundo ao dos seus predecessores, mas distinto no fim, na forma e na disposição. Ali está a razão do caráter especial do Evangelho de São João.
Tendo lido as histórias escritas antes da sua, como observa São Jerônimo, o apóstolo notou certas omissões (16). Apesar de inspirados como ele, e colhendo informações em fontes seguras, os três primeiros escritores não tinham sido, como ele, testemunhas da vida inteira que contavam. Mateus só fora o sétimo chamado à honra do apostolado; Marcos não era dos doze; Lucas era estranho ao colégio apostólico. Também suas narrativas necessitavam ser completadas sobre três pontos.
Primeiramente, quanto aos princípios da vida pública de Jesus, as primeiras entrevistas do Mestre e dos discípulos; as relações de João Batista com o divino Messias, coisas estas que o evangelista devia tão bem conhecer.
Em segundo lugar, quanto às diferentes estadas de Jesus em Jerusalém, e toda aquela vida na Judeia, cheia dos maiores milagres e dos mais sublimes discursos, que haviam tido por cenário o pórtico do templo, a casa de Betânia, o cenáculo.
Enfim, quanto a vida ressuscitada, cujas manifestações tão decisivas para a fé, rapidamente indicadas por São Mateus e São Marcos, estavam longe de ser mais explícitas no Evangelho de São Lucas.
A João, pois, competia narrar esses fatos; foi um dos fins principais do livro. No entanto, seria exagerado dizer, como Eusébio, que esse, tinha sido o fim único do autor. Esta hipótese, além de rebaixar o seu Evangelho ao papel de simples suplemento, não se poderia conciliar com a unidade inimitável que o distingue. Mas o apóstolo não desprezou essa parte, como claramente revela a leitura. O que os outros disseram, João cala; o que desenvolvem, ele abrevia; o que se leu algures, supõe conhecido; o que falta, ele supre. Assim, sua narrativa coloca-se ao lado, porém, fora dos predecessores. É intencionalmente que não os segue; mas não lhes é oposto por isso; e, se deixa em geral de seguir-lhes os passos, no entanto, encontra-se frequentemente, para que se veja que todos quatro seguiram o mesmo caminho, aquele por onde Jesus passou e fez resplandecer a luz de Sua face divina.
Em segundo lugar, a ordem dos fatos e a cronologia não estavam indicados nos Evangelhos precedentes. Muito mais preocupados em ensinarem uma doutrina, do que em escreverem uma história com desenvolvimento regular e sucessivo, e dominados pelo hábito do ensino oral, os sinóticos tinham procurado na coordenação dos fatos, antes a instrução dos leitores e o resultado do discurso, do que a marcha exata do tempo.
João preencheu essa lacuna. São Lucas declara que já havia pensado em pôr em ordem os fatos da história de Jesus. Mas, foi São João quem o fez. Quatro Páscoas, algumas outras festas do ano religioso, claramente indicadas cada uma em seu lugar, balizam o caminho do historiador, marcando a data dos acontecimentos principais da vida do divino Mestre. Todos os sincronismos que se fizeram do Evangelho partiram destes pontos esclarecidos por São João.
Assim a vida divina retomava o seu lugar positivo no tempo; o ideal por essência movia-se no seio da realidade a mais bem determinada. O Evangelho reputado o mais espiritualista tornava-se igualmente aquele que melhor acusava o caráter exato e histórico; João limitava o leito onde a narração, até então mal fixada, ia correr agora entre margens certas.
O próprio apóstolo indicava um terceiro fim, e que era o principal, de seu trabalho:
“Estas coisas foram escritas, dizia o evangelista, a fim de que acrediteis que o Cristo é filho de Deus, e que assim tenhais a vida em seu nome” – Haec autem scripta sunt credatis quia Jesus est Christus Filius Dei, et ut credentes vitam habeatis ia nomine ejus (Jo 20, 31)
Portanto, do que se trata nesta obra, não era unicamente de completá-la e pô-la em ordem, mas sim de provar a divindade de Jesus.
Não era essa, sem dúvida, uma crença e uma doutrina pessoais de São João. Antes dele já os três evangelistas a tinham formulado. A divindade do Cristo manifestava-se igualmente em todas as epístolas de São Paulo. Quem escreveu esta definição: O Cristo que é o Deus bendito por todos os séculos, não foi São João, mas São Paulo (17). E João, endereçando seu Evangelho às nações, cuidava de prevenir aos prezados amigos, de que não era nenhum inovador, e que seu ensinamento era o mesmo que eles tinham ouvido, desde o princípio.
Somente, o que os outros evangelistas apenas enunciavam, São João desenvolve. Tinham verificado a divindade de Cristo, São João a demonstra. Tinham-na feito sobressair na narrativa de sua vida, São João dá-lhe todo o brilho em seus discursos. Os outros tinham feito dela o fundo de sua história, São João torna-a uma tese formalmente enunciada, e sempre seguida; e desde então, tudo converge para esse centro de seus pensamentos. Entre os milagres de Jesus, prefere aqueles que melhor provam essa tese, conforme o explica: Scripta ut credatis. Entre as palavras de Jesus, insiste sobre aquelas que estabeleciam mais claramente a Sua divindade. Tais como as discussões com os fariseus, tão bem desenvolvidas por São João. O caráter histórico do livro nada perdia com isso; mas o caráter dogmático e apologético assim se fazia melhor sentir; e João deste modo atingia o fim primordial de sua obra, que era opor uma refutação indireta, porém formal, às incredulidades do tempo e do futuro.
III
Do tríplice fim que se propusera o evangelista devia originar a primeira grandeza do livro. Além disso, as circunstâncias de tempo, lugar e mormente o talento do autor, determinaram-lhe o espírito e linguagem. Assim a obra fora marcada com um caráter único cuja excelência é inexprimível, mas do qual tudo explica a distinta supereminência.
Primeiramente, João se encontrava pelo seu apostolado, em presença das escolas gnósticas: disto se ressente o Evangelho. Obrigado a dirigir-se às filosofias não desprezou, no entanto, as altas especulações que os sábios da Ásia pretendiam achar na ciência; e João, o evangelista, foi ao mesmo tempo o que antiguidade chamava «João, o teólogo». Daí a profundeza dogmática do livro. Não é mais o evangelho do cumprimento da antiga profecia; não é mais apenas a narrativa dos acontecimentos de uma vida teândrica: é o Evangelho da ideia, mas da ideia viva numa história fiel.
Em segundo lugar, vimos que as palavras de Deus, repetidas por São João, foram quase todas pronunciadas na Judeia e em Jerusalém. Não se fala a doutores e aos principais de um povo, como a pescadores de um lago. Na Galileia, diante de um auditório rústico, numa barca, numa praia, sobre a relva de uma colina, para os pequenos e os pobres, as parábolas familiares, simples conversas, convinham mais à bondade condescendente de Jesus, assim como à sua sabedoria. Na Judeia, sob os pórticos do templo de Jerusalém, aos iniciados da lei, aos prosélitos vindos de todas as sinagogas, aos estrangeiros chegados de todas as cidades cultas, era necessário, sobre um mesmo fundo de doutrina, outras palavras. Ali, Jesus de Nazaré fora o profeta prometido a Israel, e seus benefícios bastavam para provar a sua missão. Aqui, era um doutor, um Mestre, como o chamava constantemente São João, rabbi, magister, e seus discursos revelam-lhe a divindade. Ora, estas palavras de Jesus, citadas por São João, eram tais, que os próprios inimigos confessavam que jamais homem nenhum falara como este.
E é esta uma nova causa da elevação do Evangelho de São João. A transcendência do ensinamento de Jesus aos doutores passou no livro que dele se fez eco, e forma, relativamente aos outros Evangelhos, um de seus traços distintos.
«Os outros Evangelistas assim como os animais que lhes servem de atributo, andam sobre a terra, diz Santo Agostinho; São João é a águia, ele voa»
O caráter do apóstolo, o que nos conta de sua vida, o que vimos do seu contato íntimo com a alma do Mestre, igualmente em grande parte influenciam e inspiram a singularidade de seu livro.
Orígenes escrevia:
«O Evangelho de São João é como a flor dos Evangelhos. Só podia penetrar a tal profundeza aquele cuja cabeça repousou sobre o peito de Jesus, e a quem Jesus dera Maria por mãe. Só o amigo tão íntimo de Jesus e de Maria, o discípulo tratado pelo Mestre como um outro eu, era capaz de ter os pensamentos e sentimentos que este livro resume» (18)
«Bebia em segredo naquela fonte divina» disse Santo Agostinho (19), referindo-se à Ceia.
«João, escreveu um outro, é um galho enxertado em árvore divina da qual dá os frutos: procede-lhe o Evangelho da união entre o seu coração e o coração de Deus» (20)
Depois, se é verdade que pelo estilo se conhece o homem, que homem poderia melhor pintar Jesus Cristo, como o Verbo Todo-Poderoso e o manso Cordeiro de Deus, a não ser o gênio ardente, e ao mesmo tempo meditativo, do filho do trovão, do discípulo predileto? Eis porque a grandeza e a bondade de Jesus, a sublimidade e ternura, todas as feições do Salvador, se refletem no seu Evangelho como na mais cristalina água. Das narrativas evangélicas, é a sua a mais admirável, a mais comovente e a mais simples. Vemos se reproduzirem todos os fatos que descreve; faz realmente reviver Jesus Cristo diante de nós. Milagre de candura, assim como de sublimidade, toma o voo para a luz eterna, porém, sempre amparado pelo sopro do amor.
Ainda mais, São João era virgem. Que a crítica sem alma faça ou não faça caso deste elemento moral nas coisas humanas, todos deverão concordar que é uma força intelectual indispensável nas coisas divinas. É principalmente, neste assunto que a penetração do olhar do espírito depende de sua pureza:
«Bem-aventurados os corações puros, porque verão Deus»
Não tinha o próprio Platão exigido do discípulo da sabedoria a pureza moral, que permite ao espírito voar livre e continuamente para a luz? O olhar da alma, como o do corpo, tem maior ou menor alcance.
«Há, diz muito bem Orígenes, diferentes formas sob as quais o Verbo se revela a seus discípulos, conformando-se ao grau de luz de cada um, conforme os graus de seus progressos na santidade. Se Ele se manifestou na montanha da Transfiguração sob uma forma mais sublime do que aquela com a qual apareceu aos que, tendo permanecido em baixo, não podiam atingir o alto, a razão é porque os que ficaram em baixo não tinham os olhos capazes de contemplar a glória e a divindade do Verbo transfigurado» (21)
São João foi levado por sua santidade a essas luminosas alturas.
Também quando os Padres exaltam o gênio de João, é, primeiramente, à sua virgindade que atribuem toda a honra.
«O evangelista era virgem, escreve Santo Ambrósio, e não me admira que pudesse, melhor do que outros, exprimir os mistérios divinos, porque a virgindade lhe abria o santuário dos segredos celestes»
O estilo do Evangelho recebeu essas inspirações, ressentiu-se dessas influências. E o estilo espontâneo onde o pensamento é tudo. A expressão jorra naturalmente, sem afetação, movida apenas pelo pensamento, vertendo-se no discurso como o ouro em fusão, sob o fogo do Espírito Santo. Daí, esses voos rápidos que são como o bater de asas da águia dos evangelistas; daí também, às vezes, a extravagância de linguagem que admira e encanta no estilo de São João. A plenitude do Espírito, ao descer do céu, achando na palavra humana vaso muito estreito para poder contê-la, faz-lhe violência e transborda. As formas ordinárias de linguagem são destruídas; o pensamento entra em luta com a expressão; e além do primeiro sentido aparecem sentidos novos e profundos que prolongam indefinidamente a clareza das palavras. A esta explicação São Dionísio de Alexandria acrescentava uma razão histórica e humana. Ele não duvida de que o contato com as escolas de Éfeso e a convivência habitual dos gregos, tenham polido aquele pescador.
«Nele nada de impróprio, de inconveniente, diz ele, nada de rasteiro. Dir-se-ia que não só recebeu o dom de tudo ver, mas de exprimi-lo bem» (22)
Todavia, os hebraísmos, as formas siríacas, as locuções caldaicas, traem neste grego o hábito de outra língua e de outro país. Reconhece-se o Galileu no Efésio, e as duas pátrias de João fazem-se bem distinguir só por seu estilo. O conhecimento perfeito que tem do judaísmo mostra que a ele pertencia por direito de nascença; mas a maneira um tanto livre com que são apreciados os seus compatriotas prova que rompeu com a Sinagoga. O estilo sentencioso, cortado e ritmado da frase procede claramente do elemento hebraico, ao passo que a distinção suprema de sua linguagem faz logo reconhecer a nova gente entre a qual termina os dias. Quanto às repetições que lhe são habituais, Michaelis vê nisso um sinal de grande velhice no escritor sagrado (23).
É assim que por toda a parte o livro revela o autor, e o autor explica o livro. Disse com razão um crítico:
«Se na falta de documentos históricos, tivesse que se descobrir, por meras verossimilhanças, o verdadeiro autor do quarto Evangelho, os sábios se decidiriam logo por São João, de tal modo o caráter desse apóstolo e as circunstâncias de sua vida se percebem claramente em sua obra» (24)
É o mais belo trabalho que a terra possuiu e que jamais possuirá, mesmo entre aqueles nascidos da inspiração de Deus.
«Por um fenômeno único, justamente, observou alguém, as repetições contínuas, as formas familiares, o tom estrangeiro, a inexperiência na arte de escrever, e mesmo a incorreção que caracterizam este estilo, fazem ainda mais sobressair a sua sublimidade» (25)
Outra razão não há a não ser a regra suprema do estilo e da eloquência.
«Quanto mais uma palavra se assemelha a um pensamento, um pensamento a uma alma, uma alma a Deus, mais belo é tudo isso»
Ora, que beleza sem igual não devia brilhar num livro onde a palavra é a imagem do pensamento e da alma de um Deus?
«A mão de um anjo o escreveu», como dizia Herder. Antes dele, Santo Agostinho dizia também:
João começava a ser um anjo: «Caeperat esse angelus!» (26)
O Evangelho de São João termina pela confissão de sua impossibilidade de tudo dizer e de atingir a esse fundo inesgotável de grandeza, virtudes e graças que é Jesus Cristo:
“Ainda há muitas coisas que fez Jesus; as quais se se escrevessem uma por uma, creio que nem no mundo todo poderiam caber os livros que se teriam de escrever” – Sunt autem et alia multa quae fecit Jesus, quæ si scribantur per singula, nec ipsum arbitror mundum capere posse eos qui scribendi sunt libros (Jo 21, 25)
João confessava-se perturbado pelo sentimento do inefável que é a revelação fatal de nossos limites, sentimento doloroso muitas vezes, mesmo em presença das grandes coisas humanas, mas que é o desespero inevitável do homem diante das coisas de Deus.
Referências:
(1) Pupias, apud, Euseb. Hist. Eccl. III, XXXIX.
(2) V. Euseb. Hist. Eccl. III, XXIX ; VI, XIV.
Papias, ibid. Clemens Alex. ; ap. Euseb. III, XXIV
(3) Parece ser o pensamento de Santo Irineu, quando diz: Neque autem plura numero quâm hæe quatuor sunt Evangelia, quoniam enim quatuor regiones mundi sunt, etc. (S. Iren, adv. Hœr. III, II, n. 8).
(4) Non scripsi vobis quase ignorantibus veritatem, etc. (1Jo 2, 21)
(5) Joannes omnium postremus, cum videret in aliorum Evangeliis ea quae ad corpus Christi pertinent tradita esse, ipse divino afflatus Spiritu, spiritale Evangelium familiarium suorum rogatu concripsit (Clemens Alex., apud Euseb. Hist Eccl. VI, XIV)
(6) Joannes apostulos, quem Jesus amavit plurimum, novissimus omnium scripsit Evangelium, rogatus ab Asiae Episcopis, adversus Cerinthum aliosque haeretico et maximé tune Ebionitarum dogma consurgens qui asserunt Christum antè Mariam non fuisse (São Jerônimo, De Viris illustr., c. IX)
(7) O cânon dito de Muratori traz essa data. Com efeito, o autor diz que o Pastor Hermas foi escrito muito recentemente (nuperrimè conscriptus). Ora, este livro é endereçado ao Papa Clemente I no fim do 1º século.
(8) Eis a cópia exata da parte deste fragmento relativa a São João, com as restituições de Wieseler:
«…Quid ergò mirum si Joannes tàm constanter singulo etiam in epistolis suis proferat dicens in semeipsu (semetipso): Quae vidimus oculis nostris et auribus audivimus, et manus nostrae palpaverunt, haec scripsimus. Sic enim non solum visurem (visorem), sed et auditorem, sed et scriptorem omnium mirabilium Dominus (Domini) perordinem profitetur»
(9) V. Introduction aux livres du Nouveau Testament, par le Dr. Reithmayr, trad. de M. Valroger, t. I, p. 98
(10) A outra opinião, que dá a redação do trabalho como feito em Patmos, durante o exílio, não tem a mesma antiguidade nem a mesma solidez (Synops. S. Script., S. Athanas., t. II, p. 202)
Do mesmo modo Dorothea (Blib. Max. Patrum., t. III, 421) e Suidas.
(11) São Ireneu, Adv. Haeres., t. III, c. I
(12) Pedro, mártir, bispo de Alex, segundo o Chranicon Alex, p. II; édit. Dindort, Bonn 1832
(13) Aedem nocte revelateum est Andrea ex apostolis, etc. (Ap. Muratori. Vide suprá)
(14) Jo 1, 36. Ver mais acima cap. I
(15) Et Ecclesiastica narrat historia: Quum a fratribus cogeretur ut scriberet itá facturum se respondisse, si indicto jejunio in commune omnes Deum precarentur. Quo expleto, revelatione saturatus, in illud precaemium caelo veniens erupit: in principio, etc. (São Jerônimo, Comm. In Math. Proteg.)
Item cânon Muratori, ut suprá.
(16) Cum legisset Matthaei, Marci et Lucae volumma, probaverit quidem textum historiae, et vera eos dixisse firmaverit, sed unius tantúm anni historiam texuisse, etc. (São Jerônimo, De Scriptor, eccl.)
(17) Christus, qui et super omnia Deus benedictus in saecula (Rm 9, 5)
(18) Origen. In Joan., t. II, 6, A.
«Audeamus dicere primitias Scripturarum omnium Evangelium esse, Evangeliorum veró primitias Evangelium à Joanne traditum. Cujus senum percipere nemo potest, nisi qui suprá pectus Jesu recubuerit, vel acceperit à Jesu Mariam»
(19) Ex illo pectore in secreto hibebat (Santo Agostinho, Tract. XXXVIII in Joan)
(20) Ascenditi Joannes de conjunctione duorum pectorum: insita arbor in alterá facit fructum arboris alterius in quá plantatur (Intr. Opp. S. Hier., t. V. App. P. 884)
(21) Origen. Contrá Cels. IV, 16; Édit. Delarue, t. I, 511.
(22) Evangelium et epistola non modo emendaté quod ad Graecum sermonem attinet, verúm etiam cum summa elegantia, tum in verbis, tum in argumentationibus et in tota orationis compositione praescripta sunt. Utroque enim praeditus erat Evangelistes, sermone nimirum ac scientia, cúm haec duo ipsi Dominus concessísset, scientiam simul et eloquentiam (Dionys. Alex., apud Euseb. Hist. Eccl. Lib. VII, c. XXV)
(23) Michaelis. Introd. au N. T., t. III, p. 394-396
(24) Reithmayr, Introd. au N. T. t. II, p. 92
(25) B. Berger de Xivrey, Étude sur le texte et le style du Nouveau Testament, p. 3
(26) S. August, in Joan. t. Ill, p. 2; Tract. CXXIV. p. 288
Voltar para o Índice da Biografia do Apóstolo São João, de Mons. Baunard
(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 262-282)