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Filhos de Deus não se nasce, torna-se!

nascimento filho deus
No lado esquerdo: Sapientia aedifleavit sibi domum, excidit columnas septem – “A Sabedoria edificou sua casa, talhou sete colunas” (Pv 9, 1). Do lado direito: Rursum dimisit columbam ex area. At illa venit ad eum – “

Por Pe. Ignace de La Potterie

A Igreja celebrou há pouco com o Santo Natal o nascimento no tempo do Unigênito eterno Filho de Deus.

Segundo uma teologia cada vez mais difusa, com a encarnação do Filho derivaria de maneira automática a atribuição imediata da filiação divina a cada homem. No sentido que todo homem, que o saiba ou não, que o aceite ou não, vive já radicalmente em Cristo. Segundo esta teologia, Cristo, ainda antes de ser o chefe da Igreja, é o chefe de toda a criação. Todo homem lhe pertence antes mesmo de ser alcançado e transformado pelo Seu Espírito.

Esta concepção pretende encontrar um aval na afirmação de São Tomás de Aquino segundo o qual “considerando a generalidade dos homens, por todo o tempo do mundo, Cristo é o chefe de todos os homens, mas segundo graus diversos” (Summa theologiae III, 8,3) retomada da constituição pastoral Gaudium et spes do último Concílio:

“Com a encarnação o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo homem” (22)

Mas se fossem retiradas da frase da Summa theologiae e da frase da Gaudium et spes os incisos “segundo graus diversos” e “de algum modo” não se respeitariam todos os dados da fé católica.

E de fato o mesmo Concílio na constituição dogmática Lumen gentium (13), seguindo fielmente a Tradição, distingue claramente entre a chamada de todos os homens à salvação e a pertença em ato dos crentes à comunhão de Jesus Cristo. Segundo o método próprio de toda a revelação bíblica.

Se, com a encarnação do Verbo, a filiação divina fosse atribuída imediatamente a cada homem, o mistério da escolha ou eleição e portanto a fé, o batismo e a Igreja não teriam mais algum papel constitutivo para a salvação: a missão da Igreja no mundo seria apenas a de fazer todos os homens do mundo tomarem consciência desta salvação já presente no profundo de cada um. Em suma, cada homem, na virtude da encarnação do Verbo, conquistaria automaticamente, mesmo se inconscientemente, “a existência em Cristo” recebendo assim, em virtude da sua transcendência como pessoa humana, os efeitos salvíficos da redenção operada por Jesus Cristo. Seria um “cristão anônimo”.

Já Erik Peterson, o famoso estudioso alemão convertido do luteranismo ao catolicismo, no seu ensaio de 1933 Die Kirche aus Juden und Heiden (A Igreja composta por Judeus e Gentios), comentando os capítulos de 9 a 11 da carta de São Paulo aos Romanos, explicava que não pode existir um cristianismo reduzido à ordem meramente natural, no qual os efeitos da redenção operada por Jesus Cristo seriam transmitidos geneticamente, por via hereditária, a cada homem, pelo único critério de compartilhar com o Verbo encarnado a natureza humana.

A filiação divina não é o êxito automático garantido pela pertença ao gênero humano. A filiação divina é sempre um dom gratuito da graça, não pode prescindir da graça doada gratuitamente no batismo e reconhecida e acolhida na fé.

Um trecho de São Leão Magno, lido na liturgia do Advento, esclarece com precisão a relação entre a encarnação e o batismo:

“Se Aquele, que é o único livre do pecado, não tivesse unido a Si a nossa natureza humana, toda a natureza humana teria permanecido prisioneira sob o jugo do diabo. Nós não poderíamos ter tido parte à gloriosa vitória dele se a vitória tivesse sido reportada fora da nossa natureza. Por causa desta admirável participação à nossa natureza resplendeu para nós o sacramento da regeneração, para que, em virtude do mesmo Espírito por obra do qual foi gerado e nasceu Cristo, também nós, que nascemos da concupiscência da carne, nascêssemos de novo de nascimento espiritual”

E Santo Agostinho no De Civitate Dei escreve:

“A natureza corrupta pelo pecado gera, portanto, os cidadãos da cidade terrena, enquanto a graça que libera a natureza do pecado gera os cidadãos da cidade celeste. Por isso os primeiros são chamados vasos de ira: os outros são chamados vasos de misericórdia. Existe um símbolo disso também nos dois filhos de Abraão. Um, Ismael, nasceu segundo a carne da escrava Agar, o outro, Isaac, nasceu segundo a promessa de Sara, que era livre. Ambos são estirpe de Abraão, mas uma relação puramente natural fez nascer o primeiro, enquanto que a promessa que é o sinal da graça doou o segundo. No primeiro caso se revela um comportamento humano, no segundo caso se revela a graça de Deus”

É suficiente voltar ao Novo Testamento, e ao modo com que São João, o discípulo predileto, descreve a filiação divina, para mostrar como esta filiação não é uma imediata posse natural mas sempre um dom gratuito que o Senhor entrega a quem escolhe, e que se ampara na fé (“Não fostes vós que Me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi”, Jo 15, 16).

São principalmente três os textos de João que tratam da filiação divina prometida por Jesus e experimentada pelo cristão:

1) Um versículo do Prólogo (Jo 1,12), que fala do nosso poder de tornarmo-nos filhos de Deus;
2) A primeira parte do diálogo com Nicodemos (Jo 3,1-8), que descreve tudo o que o Espírito Santo cumpre em nós para realizar a nossa geração e o nosso nascimento como filhos de Deus;
3) Enfim duas passagens da primeira carta (1Jo 3,6-9; 5,18-19) onde são descritos os efeitos espirituais e morais na vida concreta do cristão, quando ele vive a sua divina filiação e torna-se assim “impecável”.
Para o argumento que estamos tratando, são significativas principalmente as duas primeiras passagens citadas acima.

No Prólogo (Jo 1,12-14) João escreve:

“A todos que O receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus, aos [isto é] que creem em Seu Nome: [o Nome daquele que][…] de Deus foi gerado [egennete]. Sim, o Verbo Se fez carne, e habitou entre nós, e nós vimos a Sua glória, a glória do Unigênito [monogenous] que veio de junto do Pai [parà Patros], cheio da graça da verdade”

É importante notar neste trecho do Prólogo sobretudo o uso do verbo tornar (ginestai), sobre o qual os comentários não dizem quase nada.
Justamente esta escolha linguística testemunha como João entende a filiação divina: filhos de Deus se torna, não se é ab initio (desde o nascimento) somente em virtude da própria natureza humana. A filiação divina não é um dado adquirido a priori, uma posse estática, implícito no próprio nascimento natural. Torna-se filhos de Deus – como Jesus diz no diálogo com Nicodemos – quando se é ‘gerado do alto”, isto é quando se é “gerado da água e do Espírito’”. E isto ocorre quando um acontecimento, o batismo e a fé, nos introduzem em uma nova dinâmica do ser, coloca um dinamismo novo na nossa existência. Este tesouro faz de toda a vida um caminho, um progredir, sempre precedidos e acompanhados daqueles fatos de graça operados pelo Senhor que voltam a surpreender o coração nutrindo assim a fé.

Em suma, a filiação divina não é uma marca metafísica imprimida no destino de cada um, o saiba ou não o saiba, o queira ou não o queira. É mais que tudo um dom que se reconhece e se acolhe na fé, que interpela a nossa liberdade, tanto que o próprio Deus, segundo a imagem belíssima de São Bernardo, esperou com ânsia o sim de Maria.

O outro termo chave do trecho do Prólogo é a palavra poder (exousian), que também indica não uma posse, mas um dinamismo. Não se pode tornar-se filhos de Deus de maneira automática; por lei da natureza, mas pela fé.

É a fé o poder dado para se tornar filhos de Deus: não uma fé vaga e anônima, mero desejo religioso, comum ao menos em algumas ocasiões na vida de todos os homens, mas a fé de quem “crê no Seu Nome”. Uma expressão que encontramos muitas vezes em João: a verdadeira fé consiste em “crer no Nome do Filho unigênito de Deus” (Jo 3,18).

Consequentemente, a nossa filiação não pode ser que uma participação à filiação Daquele que se manifestou entre nós como “o Filho unigênito vindo de junto do Pai”. Este poder de se tornar filhos de Deus, esta fé surge, permanece e cresce como se deu com a fé dos primeiros discípulos. Justamente o que aconteceu aos primeiros discípulos resta para sempre a experiência paradigmática de como se torna filhos de Deus. Porque a mesma Presença, que provocou a fé nos primeiros que escolheu, continua a operar no presente, a ponto de surpreender e provocar a fé também hoje nos corações dos homens que o Pai lhe dá (cf. Jo 17,2).

O diálogo com Nicodemos constitui o trecho mais longo e explícito para o tema da filiação divina. Dos vários aspectos aqui tocados, é preciso sublinhar sobretudo a insistência sobre a ação do Espírito Santo na experiência da filiação divina. Jesus explica a Nicodemos:

“Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5)

Portanto a via de acesso para se tornar “filhos no Filho” é possível apenas aos que são gerados pelo Espírito na fé e no batismo (indicado por Jesus nesta passagem com o sinal da água).

Também as teorias que reduzem a filiação divina a um automatismo, quase como fosse uma marca de domínio adquirido imprimido por Deus sobre cada homem, muitas vezes indicam o Espírito como artífice desta operação. Segundo estas teorias, os homens seriam por natureza titulares da filiação divina, prescindindo da fé, do batismo e do próprio livre consentimento, exatamente porque o Espírito, na Sua ilimitada liberdade, aplica a cada um, o saiba ou não, o queira ou não, os frutos da redenção.

Exatamente o Evangelho de João testemunha que o Espírito Santo não é uma entidade separada e independente, que opera no íntimo secreto das consciências com uma ação paralela à ação de Jesus Cristo Filho de Deus.

Toda a missão do Espírito Santo na história da salvação pode ser expressa com as palavras de São Basílio, lidas na liturgia do Tempo de Natal:

“Como o Pai Se torna visível no Filho, assim o Filho se torna presente pelo Espírito”

E Basílio acrescenta que isto se aprende do que Jesus disse à samaritana: “’É preciso adorar em Espírito e em Verdade’ (Jo 4,23) claramente definindo a Si mesmo ‘a Verdade’”.

Basta ler as promessas que o próprio Jesus faz aos discípulos a respeito do Paráclito no Evangelho de João. O Espírito “ensinará”, recordando o que disse Jesus (14,26); “dará testemunho” de Jesus (15,26); “não falará de Si mesmo, mas dirá o que ouve” (16,13).

O Espírito Santo não é, portanto, uma entidade arbitrária: Ele possui uma clara embora misteriosa intencionalidade (“O Espírito sopra onde quer” Jo 3,8) opera algumas coisas, que estão sempre em relação com a missão e o ensinamento de Jesus. Como o Espírito é o “Espírito da verdade” (Jo 15,26; 16,13), qual outra verdade poderia nos fazer conhecer o Espírito senão a verdade Daquele que disse: “Eu sou a Verdade” (Jo 14,6)?

O Espírito conduz o cristão para Jesus Cristo, para a verdade plena (Jo 16,13); ajuda-o a descobrir cada vez melhor o mistério de Jesus Cristo e a permanecer na Sua memória. Há um trecho da constituição dogmática Lumen gentium que pode resumir aquilo que dissemos:

“Cristo, levantado da terra atraiu todos a Si. Ressurgindo dos mortos, enviou aos discípulos o Seu vivificante Espírito, e por Ele constituiu Seu corpo, que é a Igreja, como sacramento universal da salvação. Estando assentado à direita do Pai, opera continuamente no mundo para conduzir os homens à Igreja e por ela ligá-los mais estreitamente a Si e fazê-los participantes de Sua Vida gloriosa nutrindo-os com o próprio corpo e sangue” (48)

Se filhos de Deus não se nasce, mas se torna, deve-se dizer que isso não é jamais tema para presunção e condenação para os outros. Como lembrou João Paulo II na encíclica Redemptoris missio “a fé que recebemos” é um “dom do Alto sem nosso mérito”.

A experiência da filiação é, ao invés, toda plena de gratidão, pelo dom não merecido, e de esperança para com todos. Por isso não se trata de julgar os descrentes, os afastados, ou até aqueles que podem parecer adversários. Mesmo porque cada um deles pode quando menos se espera, encontrar o fato cristão. Como escrevia Charles Péguy, comentando um verso de Corneille:

“Deus toca os corações quando menos se o espera. É a mesma fórmula da mordida, é a fórmula do ataque, do golpe, da penetração da graça. Mas ela implica também que aquele que pensa nisso, que tem o costume de pensar nisso, que está coberto pela camada do costume é também aquele que menos se expõe e por assim dizer que dá menos possibilidade à presa”

Esta gratidão não julga ninguém, mas é magnânima e misericordiosa mesmo diante do erro e do pecado. Como aconteceu a São Francisco Xavier, o discípulo predileto que Inácio de Loyola mandou evangelizar no longínquo Oriente. Diante dos pecados, mesmos os obscenos dos pagãos, Francisco Xavier se surpreendia que sem a fé, os sacramentos e a oração filial não os fizessem ainda mais graves. Como escreve numa carta enviada aos seus colegas de Cochin em 1552:

“Eu não me admiro pelos pecados que existem entre bonzos e bonzas, mesmo que sejam em grande quantidade. Ao contrário, me admiro que não os façam mais do que fazem…”