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Doçura ou Mansidão

Doçura ou Mansidão, Tesouros de Cornélio à Lápide

Necessidade da doçura

Cuidai de que não desapareça jamais a mansidão de vosso coração, diz Santo Agostinho: De corde lenitas non recedat (Medit.). Não vos vingueis por vossa própria conta, mas dai lugar a que passe a cólera, diz São Paulo: Non vos metipsos defendentes, sed date locum irae (Rm 12, 19).

Deixai passar a ira, isto é, guardai silêncio, cedei aquele que se enfurece, sede dóceis, sofrei com paciência a injúria, não digais nada até que a calma tenha modificado vosso coração para que caiba nele a doçura e a caridade.

Irmãos meus, diz São Paulo aos Gálatas, se alguém cair desgraçadamente em algum delito, vós que sois espirituais, cuidai de levantá-lo com doçura, refletindo naquilo que se passa com cada um de vós mesmos, e temendo cair, como ele, na tentação: Fratres, et si praeoccupatus fuerit homo in aliquo delicto; vos, qui spiritales estis, hujusmodi instruite in spiritu lenitatis, considerans te ipsum ne et tu tempteris (Gl 6, 1).

Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, pronunciou estas palavras: Aprendi de mim, não a fazer um mundo, não a criar as coisas visíveis e invisíveis, não criar outras maravilhas aqui na terra, nem a ressuscitar os mortos; mas, sim, aprendei de mim como ser manso e humilde de coração: Discite a me, non mundum fabricare, non cuncta visibilia et invisibilia creare, non ipso in mundo mirabilia facere, et mortos suscitare; sed quoniam mitis sum et humilis corde (Serm. de Verb. Dom. in Matth.).

Praticai a mansidão com todos, disse São Paulo a seu discípulo Timóteo: Sed mansuetum esse ad omnes (2 Tm 2, 25).

Somente com a mansidão destroem-se os abusos.

Em que consiste a mansidão

Vejamos em que consiste a mansidão. Esta consiste:

1.° Em conservar para com todos a bondade do coração e da linguagem;

2.° Em moderar a ira dos demais por uma resposta honrosa, quieta, e sem fel;

3.° Em sofrer com paciência as injúrias;

4.° Em alegrar-se nelas;

5.° Em vencer a malquerença de um inimigo, atraí-lo, ganhá-lo e convertê-lo em amigo, com bons procedimentos e benefícios;

6.° Não buscar a vingança;

7.° Em operar sem acritude, sem soberba, sem desdém, sem querer se antepor a ninguém, sem insultar ao desgraçado, sem chocar ao soberbo; senão procurando ganhar a uns e a outros com tato; e insinuar-se com habilidade no coração deles, sem que ninguém se aperceba disso.

Quando mais azeda é a pessoa, ou quanto mais extravagante o caráter daquele com quem tenhamos de tratar, mais doçura, mais mansidão, e modos mais amistosos e sinceros devemos empregar na ocasião. Não devemos opor jamais raiva a raiva, violência a violência; pois, ao contrário, a paciência e a caridade devem ser nossa norma.

A doçura é certa habilidade de espírito que, tanto nas honras quanto nas humilhações, mantém ao homem em uma perfeita igualdade de caráter. É uma virtude que chega até a fazer-nos rezar, sem que nos perturbemos, por aqueles que nos perturbam e nos molestam.

Pode-se comparar a mansidão a um rochedo elevado e inabalável que resiste aos furores do mar e arrebenta suas ondas embravecidas.

Convém não fazer resistência aos que nos maltratem. A lã detém uma bala de canhão; e, entretanto, a bala rompe, atravessa, destrói as mais duras e sólidas muralhas.

Não resistir, é vencer pela virtude aquele que nos ataca pela paixão. Assim, nós nos manifestamos mais fortes que ele. Não resistir, é retirar da ira os meios de acender-se. Não contestando nada e conservando a calma e um rosto pleno de doçura, o homem manso triunfa de tudo.

Devemos tomar parte nos males que nosso próximo sofre, aguentar seu mau humor, desculpar seus defeitos, condescender a seus desejos quando o possamos, e humilhar-nos sem obstáculos.

Há doçuras fingidas, doçuras desdenhosas, plenas de um orgulho oculto: existe uma ostentação e afetação de mansidão mais repugnante e insultante que o azedume declarado; é a mansidão do tigre, é uma doçura hipócrita, soberanamente detestável e perigosa.

Nossa mansidão deve ser sincera, consciente, modelada sobre a de Nosso Senhor Jesus Cristo, e semelhante à mansidão de Moisés, de Davi, de São Francisco de Sales e de tantas outras almas escolhidas.

Excelência e vantagens da doçura

A mansidão e a humildade são irmãs, como a ira é irmã do orgulho. O homem não pode ser manso se não é humilde, e se o sopro das paixões não se acalma em seu coração. Somente quando os ventos cessam, está tranquilo o mar.

1.° A mansidão faz-nos agradáveis a Deus e aos homens;

2.° Faz-nos imitar a Jesus Cristo, modelo de mansidão;

3.° Proporciona-nos a paz do coração: Discite a me, quia mitis er humilis corde; et invenietis réquiem animabus vestris (Mt 11, 29).

4.° Faz-nos aptos para receber a sabedoria e adquirir os bens celestiais, segundo aquelas palavras do Rei Profeta: Diriget mansuetos in judicio: decebit mites vias suas (Sl 24, 9).

Bem-aventurados os mansos e humildes, porque eles possuirão a terra, disse Jesus Cristo: Beati mites, quoniam ipsi possidebunt terram (Mt 5, 4). Jesus Cristo classifica essa virtude entre as oito bem-aventuranças, em seu sublime Sermão da Montanha. Jesus Cristo não diz: Bem-aventurados os ricos, os homens que possuem os prazeres e as honras; mas, sim, bem-aventurados os homens dirigidos e guiados pela mansidão.

São João Clímaco expõe as razões que obrigaram a Jesus Cristo a dizer: Bem-aventurados os que tem a mansidão. A doçura ou mansidão, diz o Santo, auxilia à obediência, dirige a sociedade religiosa, reprime a ira, acalma o furor, dá nascimento à alegria, imita a Jesus Cristo, adorna aos leitos, aprisiona o Inferno, e chega a ser uma defesa contra o pesar e a amargura. A alma plena de doçura oferece ao Senhor um agradável lugar de descanso, ao passo que a alma turbulenta e arrebatada é o ninho do demônio (Gradu XXV).

Os mansos, diz o Real Profeta, serão os herdeiros da terra, e regozijar-se-ão na abundância e na paz: Mandueti hereditabunt terram, et delectabuntur in multitudine pacis (Sl 36, 11).

Bem-aventurados os mansos, eles possuirão a terra, disse Jesus Cristo (Matth. V, 4). Possuirão a terra, até mesmo esta em que vivemos; porque ninguém inquieta aos homens de doçura e mansidão em suas possessões. Logo, o homem manso está contente com tudo; tudo é riqueza para ele. Porém aquela terra prometida é principalmente o Céu, a verdadeira terra dos vivos.

São Bernardo entende que a terra que os homens mansos hão de possuir, é o corpo e o coração porque o homem que transborda mansidão possui a si mesmo reinando sobre os movimentos sensuais, mandando sobre eles e fazendo-os obedecer (Serm. in Fest. Omn. Sanct.).

A terra prometida aos homens plenos de mansidão, diz São Leão Magno, é a ressurreição de seu corpo para a glória (Serm. in Fest. Omn. Sanct.). Os homens mansos possuirão a terra, isto é, os corações mesmos dos homens da terra.

Meu filho, diz o sábio, cumpre teus afazeres com mansidão, e além de ser louvado serás amados pelos homens: Filii, in mansuetudine opera tua perfice, et super hominum gloriam diligeris (Eclo 3, 19).

Nada é penoso aos corações que praticam e amam a doçura, diz São Leão Magno: Nihil asperum est mitibus (Serm. in Fest. Omn. Sanct.).

A mansidão é o fundamento da paciência, o princípio, ou melhor, a mãe da caridade; é a mais visível proba da prudência; procura o perdão; é o recurso dos pecadores que querem mudar de vida, e o domicílio do Espírito Santo, diz São João Clímaco (Gradu XXV).

Se nos manifestássemos mansos, diz São João Crisóstomo, seríamos invencíveis; nenhuma injúria nos alcançaria: Se mansuetudinem exhiberemus, essemus omnibus insuperabiles; nec ulla ad nos injuriapervenieret (Homil. 58).

A mansidão faz o coração dócil e disposto a receber a Lei de Deus. A doçura é a serenidade, a tranquilidade e claridade do espírito; dá a sabedoria e sustenta o bom agir.

Assim como a arca de Noé, diz Gerson, elevava-se à medida que cresciam as águas, assim eleva-se a alma plena de mansidão à medida que aumentam as águas das tribulações: Ut arca Noe, qui magis abundarent aquae diluvii, tanto altius ferebatur, sic mansuetus animus, quo majores erunt tribulationis aque, tanto erit celsior (Part. II Serm. de Omn. Sanct.).

O Senhor recolhe sob sua proteção os homens mansos, diz o Salmista: Suscipiens mansuetos Dominus (Sl 111, 6).

O homem doce, diz Sêneca, faz-se superior à injúria (Epist. IV).

Nada é tão poderoso como a mansidão, diz São João Crisóstomo. A água apaga o fogo mais ardente; e uma palavra pronunciada com doçura, acalma o espírito mais furioso. Encontramos dupla vantagem em pronunciá-la: por um lado, damos prova de mansidão, e por outro, pomos fim à irritação de nosso irmão, e livramos a sua alma do perigo de sucumbir. O fogo não pode apagar o fogo, nem a ira acalma a ira; senão que a água é para o fogo o que a mansidão é para a cólera[1].

Com a mansidão, elevam-se os homens aos primeiros postos; porque são amados e julgados como capazes de governar, posto que sabem dominar suas paixões.

O homem doce, diz São João Crisóstomo, é agradável e amável aos que tratam consigo, e deleita inclusive aqueles que somente de nome o conhecem. A ninguém achareis que, ouvindo falar de um homem pleno de mansidão, não cuide de o ver e de aproximar-se dele, considerando como uma grande vantagem conseguir sua amizade[2] .

A mansidão, acrescenta aquele Santo Doutor, põe nossa alma em uma perpétua tranquilidade; e, como que no porto da paz. Tal virtude proporciona-nos toda classe de consolação e de descanso. Qual é a coisa mais venturosa do que se ver livre de uma guerra mortífera? Por mais que gozemos de uma completa paz no exterior, se a tempestade, o tumulto e a sedição da ira despedaçam nossa alma, de nenhuma utilidade terá para nós a paz exterior[3].

Uma palavra doce multiplica os amigos e aplaca aos inimigos, diz o Eclesiástico: Verbum Dulce multiplicat amicos, et mitigat inimicos (Eclo 6, 5). A Escritura diz-nos que Deus santificou a Moisés por meio de sua mansidão e de sua fé: In lenitate ipsius santum fecit illum (Eclo 45, 4).

O homem de mansidão, diz São João Crisóstomo, é feliz em si mesmo, e presta grandes serviços aos demais, porém, o homem iracundo acha-se desgraçado, e é o açoite dos outros: Mansuetus sibi ipsi est dulcis, et alii utilis; iracundus vero, et sibi insuavis, et aliis damnosus (Homil. XXXV, in Gen.).

Que a discussão seja sem ira, diz Santo Ambrósio, a mansidão sem amargura, a advertência sem aspereza, e a exortação sem ofensa: Disceptatio sine ira, suavitas sine amaritudine sit, monitio sine asperitate, hortatio sine offensa (Offic.).

A aspereza, a dureza ou uma dominação demasiadamente imperiosa, não previvem o pecado; este cessa com avisos plenos de doçura, no lugar de ameaças terríveis. É preciso, numerosas vezes, agir com doçura ao dirigir-nos a culpáveis. A severidade não deve ser empregada em particular senão no que diz respeito aos obstinados e orgulhosos, e também deve estar mesclada de mansidão.

Se nos vemos obrigados a ameaçar, façamo-lo com sentimento, pondo ante os olhos do culpável a vingança divina, a fim de que não tema a nós mesmos, mas a Deus. A mansidão e a exortação caritativas atraem aos pecadores.

Os homens mansos alegram-se cada dia mais e mais no Senhor, diz Isaías: Addent mites in Domino laetitiam (Is 29, 19).

Jesus Cristo é um modelo de mansidão

Aprendei de mim que sou manso, diz Jesus Cristo: Discite a me, quia mitis sum (Mt 11, 29).

Os profetas haviam-No representado como tendo a mansidão do cordeiro; e, ao manifestá-Lo, São João Batista dizia: Eis aqui o Cordeiro de Deus… Ecce agnus Dei (Jo 1, 29).

Para perpetuar eternamente a recordação da mansidão de Jesus Cristo, quando a Igreja O apresenta aos fiéis antes da Comunhão, recorda que é o Cordeiro de Deus (Ecce Agnus Dei...).

Falando Isaías da mansidão do Salvador do mundo, diz: Será conduzido à morte sem resistência de sua parte, como a ovelha ao matadouro; e guardará silêncio sem sequer abrir a boca diante de seus verdugos, como o cordeirinho que está mudo diante daquele que o tosquia: Sicut ovis ad occisionem docetur; et quase agnus coram tondente se obmulescet, et non aperiet os suum (Is 53, 7). Nesta cruel tosquia não Lhe tiram a lã, mas a carne, o Sangue e a vida. Açoitaram-No, cobriram-Lhe de profundas feridas, crucificaram-No; e, contudo, Ele não deu nenhum gemido, não se queixava, nem resistia, mas sofria tudo no silêncio da paciência e da mansidão supremas.

No tempo do Dilúvio, Deus apresentou-se como um leão, e fez desaparecer da terra os pecadores; Jesus Cristo, no momento da Redenção, veio como um Cordeiro, e justificou-os.

O dilúvio das águas varreu a raça humana, porém não apagou os pecados; o dilúvio do Sangue do Cordeiro sem mancha apagou os pecados e devolveu a vida aos homens. Este Cordeiro tão manso fez-nos semelhantes a Ele; todos os que praticaram a paciência e perseveraram, todos os humildes, todos os mansos, todos os mártires, encontraram sua força, sua paciência e sua mansidão no divino Cordeiro.

Que força tão admirável resplandece neste Cordeiro tão pleno de mansidão! Quanta glória conquistou? Venceu ao mundo:

1.° Não com o aço, senão com a cruz;

2.° Não por meio da espada, senão derramando seu Sangue;

3.° Não ferindo, mas sofrendo;

4.° Não exterminando, senão morrendo sem queixar-Se.

A vitória pertence à mansidão. E Isaías, depois de ter pintado a Jesus Cristo tão humilde, tão paciente, tão manso, conclui dizendo que Ele alcançará a vitória, que ganhará sua causa no tribunal de Deus, e que os gentios depositarão Nele sua esperança (Is 53, 11-12).

Consideremos a mansidão de Jesus Cristo naquelas palavras de Isaías: Eis aqui meu servo; eu estarei com Ele, meu escolhido, em quem se compraz a minha alma; sobre Ele derramei meu Espírito; ele mostrará a justiça às nações. Não fará acepção de pessoas; não gritará, nem se ouvirá sua voz nas praças; não quebrará a cana rachada, nem apagará o pavio que ainda fumega (Is 42, 1-3).

O divino Cordeiro é doce com os pecadores e os débeis: não apaga a mecha que, todavia, ainda fumega, isto é, não aniquila aqueles homens que, plenos de raiva, estão acesos de ira contra Ele. Ele sofre todas as injúrias, todos os ultrajes sem incomodar-se e com uma confiança absoluta. Estais possuídos do espírito maligno, dizem-Lhe. Quem pensa em dar-vos a morte? E responde sem comover-se: Eu não estou possuído pelo demônio, senão que honro a meu Pai; e vós me desonrastes a mim: Ego daemonium non habeo, sed honorifico Patrem meum, et vos inhoronastis me (Jo 8, 49).

Se os judeus enfureceram-se porque Ele curou um enfermo no dia de sábado, responde com mansidão a tanta hipocrisia, insolência, perversidade e furor. Vós vos irritais contra Mim porque, para curar a um homem, fiz um milagre em dia de sábado; porém, quem entre vós, se uma de suas ovelhas cai em um buraco no dia de sábado, deixará de a retirar dali no mesmo instante? Entretanto, não vale mais um homem que uma ovelha? (Mt 12, 11-12).

Toda a vida de Jesus Cristo foi plena de doçura. Apresentaram-Lhe a mulher adúltera, e perguntou-lhe: “- Ninguém te condenou?” “- Ninguém, Senhor” “­Então, nem eu condenarei. Vai. E não voltes a pecar” – Nemo te condemnavit? – Nemo, Domine. – Nec ego te condemnabo. Vade, et jam amplius noli peccare (Jo 8, 10-11).

Ao princípio de sua Paixão, deixou-Se beijar por Judas. Amaldiçoaram-No, e não amaldiçoou; prenderam-No, cuspiram-Lhe o rosto, caluniaram-No, foi objeto de zombaria, e não Se queixou. Pedro negou-se a reconhecer-Lhe; e Ele olhou-o com doçura, despertando o arrependimento em seu coração culpável. Acoitaram- No, foi condenado à morte e crucificado, e não proferiu nem uma queixa; antes, pelo contrário, pediu graças para seus algozes, tendo sede da salvação deles. Ó divina mansidão! Ah, com quanta razão podia dizer: Aprendei de mim, que sou a mesma Mansidão: Discite a me, quia mitis sum (Mt 11, 29).

Mansidão dos Santos

Santo Efrém tinha natural inclinação à ira; porém, venceu tão perfeitamente esta paixão que a mansidão era uma das virtudes que mais lhe brilhavam, de tal modo que o chamavam “o manso e o pacífico de Deus”. Jamais se ouviu dizer que ele travasse contestações com alguém; a mansidão, as lágrimas e as orações eram as armas que empregava contra os pecadores endurecidos (Surius, in ejus vita).

São Bernardo era todo mansidão ao tratar com seus religiosos. Seguia a máxima, tantas vezes repetida em suas obras, de que um superior deve governar mais como pai que mandar como dono. Se, porventura, devia repreender a algum monge tíbio ou se lhe impunha alguma penitência, fazia-o com tanta ternura e mansidão que claramente se via que a sua compaixão para com o culpável era superior à confusão de sentimentos que experimentava o castigado, e até teria desejado tomar parte naquelas penalidades. Em suas exortações comparava-se a uma mãe; chamava a seus discípulos de seus olhos, suas entranhas e coração seu. Nas ternas expansões de sua alma, parecia de destilava de seus lábios mel e doce maná; e é indubitável que, se a mansidão em pessoa pudesse fazer homilias ou escrever livros, expressar-se-ia como São Bernardo. O resultado de tal conduta foi o seguinte: aqueles que, a princípio, foram vistos desanimados correram com santa alegria ao caminho da perfeição, e o mosteiro de Claraval converteu-se em um paraíso. A experiência ensinou àquele ilustre Doutor, segundo ele mesmo o declara, que não se faz nenhum bem quando não se governa aos outros com espírito de mansidão (Surius, in ejus vita).

Se é impossível agradar a Deus sem fé, como diz São Paulo aos Hebreus (Hb 11, 6), também é impossível conquistar o coração dos homens ou guiá-los sem mansidão. Obedecemos com gosto a um homem manso, antecipamo-nos a seus desejos, e até vamos além daquilo que mandou.

A força de vencer-se a si mesmo, São Sisoés, anacoreta no Egito, adquiriu uma mansidão que nada era capaz de alterar. Seu zelo contra o vício não lhe acarretava amarguras. Não lhe surpreendiam as faltas de seus irmãos; e, em vez de lançá-las no rosto com indignação, ajudava-lhes a remediá-las com uma bondade e doçura admiráveis (Vit. Patr.).

Santo Elzeário[4] viu-se obrigado, depois da morte de seu pai, a passar ao reino de Nápoles para tomar posse do condado de Arian; porém, o povo que favorecia à casa de Aragon contra os franceses, negou-se a reconhecê-lo. Somente com doçura e paciência resistiu aos rebeldes durante três anos, apesar das razões que alegavam seus amigos para obrigar-lhe a fazer justiça. O príncipe de Tarento, seu parente, disse-lhe um dia: Dai-me o encargo de castigar aos rebeldes; farei enforcar a alguns, e vereis como prontamente se submetem os demais; se temos de ser cordeiros com os bons, devemos também ser leões com os maus; chegou a hora de castigar tamanha insolência. O quê?, contestou Santo Elzeário, quereis que meu governo comece com matanças? Eu conseguirei fazer-me senhor dos rebeldes com meus bons serviços. Não há glória em que um leão despedace aos cordeiros. Grandioso é ver como um cordeiro triunfa de um leão. E eu espero que, com o auxílio de Deus, prontamente vereis este milagre. Os sucessos não tardaram em dar cumprimento à predição. Os de Arian, envergonhados com sua rebelião, submeteram-se voluntariamente, convidaram ao santo para tomar posse do condado; e, desde então, amaram-no e honraram-no sempre como a um bom pai. O mesmo Elzeário manifestou a causa da admirável mansidão com que sofria as injúrias e afrontas. Quando recebeu alguma afronta, dizia:

“Ó, apenas sinto que se levanta em meu coração algum movimento de impaciência, dirijo, logo, os meus pensamentos até Jesus Cristo Crucificado, e digo para mim mesmo: Pode se comparar aquilo que sofro com aquilo que Jesus Cristo dignou-se sofrer por mim?”.

A conduta deste Santo não era, portanto, uma falta de valor, mas agia assim por mansidão e grandeza de alma, e por uma generosidade verdadeiramente cristã (Giodesc., in ejus vita)

Apesar de suas austeridades, Santo Odilon, sexto abade de Cluny, observava para com os demais um comportamento plenos de bondade e mansidão. Ordinariamente dizia que, se tivesse que optar entre extremos, preferiria pecar por excesso de mansidão que por excesso de severidade (Surius, in ejus vita).

Por sua inalterável doçura quando provado em todas as contradições, São Francisco de Sales ganhava eficazmente todos os corações. Nem todos sabem talvez os rudes combates que lhe custaram para adquirir esta virtude. Sabemos, por ele mesmo, que era naturalmente vivo e inclinado à ira; e, em seus escritos, nota-se certo fogo, certa impetuosidade que não dão lugar a colocar o fato em dúvida. Desde sua juventude, violentou-se extraordinariamente para reprimir os ímpetos de sua natureza; e, a força de estudar na escola de um Deus manso e humilde de Coração, conseguiu estabelecer sobre a ruína de sua paixão dominante o reino da mansidão, que constitui seu caráter distintivo. Esta virtude principalmente foi a qual abriu os olhos aos mais obstinados calvinistas, e arrancou setenta e duas mil almas do seio da heresia.

Um dia, em uma conferência com Monsenhor Camus, bispo de Belley, pronunciou o mesmo Santo estas notáveis palavras sobre a correção fraternal:

Sempre deve ser caritativa a verdade; um zelo amargo somente produz males; as reprimendas são um alimento que dificilmente se digere; é preciso cozinhar também por meio do ardente fogo da caridade, para que percam toda a sua aspereza. De outra sorte, parecer-se-ão à uma fruta não muito madura, que dá cólicas. A mansidão não busca seus interesses, senão unicamente a glória de Deus; jamais a amargura e a dureza proveniente da paixão, da vaidade e do orgulho. Um bom remédio, quando aplicado inoportunamente, converte-se em veneno. Sempre é melhor um silêncio judicioso que uma verdade não caritativa.

Aquele grande Santo tinha um talento admirável para fazer-se dono de seus inimigos: consistia em responder com mansidão aos insultos, e com benefícios aos ultrajes.

A mansidão era sua virtude dominante. Um dia, dizia que tinha empregado três anos em estudá-la na escola de Jesus, e que seu coração não podia satisfazer-se com isso. Se aquele grande Santo, que era a mesma mansidão, acreditava estar tão desprovido desta virtude, que diremos, então, daqueles cujo coração está tão cheio de amargura, e cujos modos e palavras revelam a perturbação e a ira?

Estou pleno de negócios, dizia aquele grande bispo; todas estas pessoas que acodem, umas após outras, são filhos que se dirigem ao seio de seu pai. Uma galinha jamais se cansa quando seus pintinhos chegam juntos debaixo de suas asas; pelo contrário, procura estendê-las o mais que pode, a fim de cobri-los a todos. Parece-me que meu coração dilata-se à medida que cresce o número dessas boas pessoas. O remédio mais eficaz que conheço contra as súbitas emoções de impaciência, é um silêncio doce e sem mel. Por poucas palavras que se digam, interessa-se o amor próprio, e escapam-se coisas que amargam o coração por vinte e quatro horas. Quando não se diz uma palavra, sorrindo de boa vontade, passa a tempestade, afugenta-se a indiscrição e a ira, e é possível gozar uma alegria pura e duradoura. Quem quer que possua a mansidão cristã tem um coração terno para todo o mundo; está inclinado a perdoar e a desculpar as fragilidades alheias. Manifesta a bondade de seu coração com uma doce afabilidade que influi sobre suas palavras e ações, e o faz encontrar-se todo agradável; abstém-se de todo discurso seco, brusco e imperioso. Sempre revela em seu rosto uma amável serenidade, e não se parece em nada àqueles que, lançando olhares furiosos, não sabem mais que recusar, ou se concedem, o fazem com tão má vontade, que perdem todo o mérito do benefício.

Tendo-lhe algumas pessoas vituperado, um dia, por sua indulgência para com os pecadores, respondeu-lhe: Se houvesse algo melhor que a mansidão, Deus no-lo haveria ensinado; porém, as duas coisas que Ele mais nos encarregou de fazer é que tenhamos mansidão e sejamos humildes de coração. Quereis me impedir de observar o mandamento de Deus e de imitar com todas as minhas forças a virtude de que Ele nos deu exemplo e que tanto e tanto aprecia? Haveríamos de pretender saber mais que Deus?

Quando os apóstatas e os mais abandonados pecadores recorriam a Ele, abria-lhes seu Coração com indizível ternura e uma mansidão celestial. Recebia-os como aquele pai do Evangelho recebeu a seu filho pródigo. Vinde, dizia-lhes, filhos queridos; vinde a que eu vos abrace e vos estreite em meu coração: Deus e eu vos assistiremos. Não vos peço mais que uma coisa, e é que não vos desespereis; encarrego-me de tudo o mais. E mirava-lhes com olhos plenos de doçura que revelavam a sinceridade de seus sentimentos; abria-lhes sua bolsa, seu coração e todas as suas entranhas. Aos que se escandalizavam deste proceder e faziam-lhe tomar consciência de que com a impunidade alentava a muitos no pecado, o Santo respondia-lhes: Não vedes que são minhas ovelhas? Havendo Nosso Senhor Jesus Cristo dado por elas todo o seu Sangue, como poderia eu negar-lhes minhas lágrimas? Estes lobos converter-se-ão em cordeiros, e dias virão em que serão mais santos que todos nós. Se Saulo houvesse sido rejeitado, jamais teríamos a São Paulo (Guodesc., in ejus vita).

Lede a vida dos Santos, e achareis em todos eles uma doçura, uma mansidão admiráveis; porque todos seguiram as pegadas de Jesus Cristo, todos tomaram por regra de sua conduta aquelas palavras do Salvador: Aprendi de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis o repouso para vossas almas: Discite a me, quia mitis sum et humilis corde, et invenietis réquiem animabus vestris (Mt 11, 29). É muito certo que sem o cumprimento e a prática destas sublimes virtudes, a saber: a mansidão e a humildade, é impossível ganhar a salvação e chegar a ser santo.

Meios para adquirir e praticar a mansidão

Para adquirir a mansidão, é preciso:

1.° Ser humilde. Jamais o orgulhoso conheceu a mansidão;

2.° Meditar sobre a dignidade, a formosura, a bondade da mansidão;

3.° Não dizer nem fazer nada quando nos sintamos agitados;

4.° Sobrepor-se às injurias;

5.° Deixar a Deus o cuidado de vingar-nos. A mim me cabe toda a vingança, diz o Senhor; Eu darei a cada um o merecido segundo suas obras: Mihi vindica; ego retribuam (Rm 12, 19).

6.° Desprender-se de tudo, e unir-se tão somente a Deus; e

7.° Propor-se frequentemente os modelos de Jesus Cristo e dos Santos.

Esforcemo-nos em adquirir o espírito de mansidão, que é o verdadeiro espírito do Cristianismo. Modifique-se nosso caráter, e apague-se o nosso orgulho pela unção do Espírito Santo. Não levantemos jamais a voz com dureza e fatuidade, porque daríamos provas de ser débeis; a força consiste em expor tranquilamente os motivos que nos impulsionam a agir, e quase sempre nos falta esta força quando recorremos à pendência e á altivez.

É preciso falar com espírito de mansidão junto àqueles contra quem a verdade nos fornece armas. Assim, sem disputar e sem perturbar-nos, faremos com que reconheçam visivelmente sua insensatez; e, assim, também seremos verdadeiros cristãos e imitadores de Jesus Cristo.

Servi a Deus com mansidão; sede cristãos perfeitos; e, por conseguinte, humildes cordeiros. Não murmureis, não façais ruídos; não vos deixeis arrastar pelo espírito de contradição. E manifestai constantemente uma imperturbável doçura.

Tende mansidão: ela gera a paciência. Tende paciência: dela nasce a mansidão. Estas duas virtudes constituem o caráter próprio da piedade cristã e os frutos da unção de Jesus Cristo derramada em nós.


Referências:

[1]  Nihil mansuetudine violentius; nam, sicut rogum cum valde accenditur, aqua injectarestinguit; ita et animum caminho magis exardenscentem, verbum cum mansuetudine prolatum extinguit. Et duplex inde nobis lucrum accrescit, tum quod mansuetudinem declaramus, tum quod fratris indignationem cessare facimus, et mentem ejus a turbatione liberamus. Non potest ignis igne extingui; sic nec furor furure demulaeri: verum, quod igni est aqua, hoc irae est mansuetudo (Homil. de Mansuet.).

[3] Mansuetus gratus et amabilis est videntibus; gatus etiam et his quibus nomine notus est. Neque facile illum invenies, qui audiens laudari hominem mansuetum, illum videre, et exosculari non desideret, et non habeat in aliqua lucri sui parte, ejus amicitia posse perfrui (Homil. de Mansuet.).

[4] Mansuetudo animam mostram in perpétua tranquillitate, et quase in portu constituite et omnis recreationis ad quietis nobis occasio est. Quid enim beatius quam intestino liberari bello? Nam, quamvis plurima pace externa fruamur, si intra nos irarum nascatur tempestas, tumultus et seditio, nihil externa pax proderit (Homil. XXXIV in Gen.).